O mito de esquerda e a prática académica • Marcela Uchôa

 

 

O discurso de que as universidades públicas são espaços de doutrinação académica de esquerda já se tornou comum no debate político, tanto nos círculos de direita, quanto como nos de extrema-direita. Ainda em 2019, o atual Presidente do Brasil Jair Bolsonaro em um post no Twitter, alertou que “o ambiente acadêmico com o passar do tempo vem sendo massacrado pela ideologia de esquerda (…)”, tendo defendido ainda que a academia prioriza muito mais a conquista dos militantes políticos do que o ensino.

Também em Portugal, numa coluna no Observador em março deste ano, o vice-presidente do Chega Gabriel Mithá Ribeiro defende que a “universidade do conhecimento” deu lugar à “universidade da doutrinação” e sugere que este “é dos mais violentos ataques ao coração da civilização ocidental”. Mesmo alguns académicos têm-se manifestado contra uma suposta cultura de “cancelamento” e “politicamente correto”.

Numa entrevista recente, o professor de filosofia política da Universidade de Coimbra Alexandre Franco de Sá descreve como “o campus universitário tem sido paulatinamente conquistado por um tipo de discurso incapaz de se diferenciar da mobilização e do ativismo”. Mas será mesmo a academia um lugar assim tão radical, ou mesmo indiscutivelmente progressista?

Não é difícil desmistificar a ideia de uma hegemonia de “esquerda académica”. Embora os estudantes, nos anos 60 e 70 do século passado tenham tido um papel importante na resistência contra o fascismo, Portugal resguarda em sua história um espaço académico conservador e hierárquico. Existem inclusivamente muitas ligações históricas à extrema-direita. Salazar foi professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O ditador fascista espanhol Francisco Franco não só foi condecorado nesta mesma universidade como doutor honoris causa, como também nunca perdeu esse título. O processo revolucionário pós-abril ocasionou várias mudanças, não há dúvidas; mas daí a afirmar que existe uma hegemonia de esquerda não é só um tendencioso exagero, como vai contra a lógica material de como as universidades funcionam hoje em dia.

As políticas neoliberais que se aplicaram ao ensino superior, à investigação e à ciência – desde Bolonha, ao RGIES, às formas de financiamento de investigação, à seleção de pessoal nas universidades – tendem, na verdade, a construir uma hegemonia de direita no espaço académico.

Esse processo já começa desde a seleção dos próprios estudantes. O background social é um enorme entrave à participação no ensino superior não só sob forma de propinas e custos de vida, mas também graças à cultura universitária, que é tendencialmente elitista e hierárquica. Uma cultura que não só existe nas instituições formais, entre professores e alunos, mas também nos espaços informais que vão muito além das práticas abjetas nas praxes universitárias. Apesar do direito constitucional ao ensino, a academia tende a excluir a grande maioria da população e a formar um círculo social à volta das mesmas famílias.

Mas é no próprio funcionamento da ciência contemporânea que hoje em dia encontramos ainda mais entraves. A ciência está alicerçada num modelo de competição feroz, exceto para uns poucos catedráticos de carreira. Predomina no ambiente académico uma precariedade do trabalho, na qual o individualismo é forçado. O académico de hoje poderia facilmente ser considerado como um pequeno empreendedor que gere recursos humanos escravos para cumprir metas. Está à procura constante de financiamento precário e competitivo, muitas vezes no sector privado, assim como é incentivado a inflacionar o currículo sob um discurso da eficiência e meritocracia.

É no mínimo paradoxal defender que este modelo de academia seja formatado para privilegiar académicos de esquerda. Na verdade, valoriza investigadores e professores que se dão bem com o individualismo, a competição, o elitismo, o oportunismo e valores conservadores; ou seja, valores que se associam à direita.

A contradição primária só existe, ou é somente levada a público, quando um/a académico/a com um perfil público de esquerda é o praticante desse tipo de comportamentos. Obviamente muitas das práticas são eticamente muito questionáveis e repudiáveis, sobre isto não restam dúvidas; mas estas já se constituem quase como uma norma de comportamento no ambiente académico atual. A realidade é que cada vez mais difícil alguém ser “politicamente correto” nas suas práticas, mantendo-se neste formato de academia moldado pelas normas e práticas ideológicas neoliberais. No fundo o mito da esquerda académica só serve para combater e deslegitimar os poucos setores mais progressistas que ainda resistem dentro dessa academia neoliberal.

 

 

Marcela Uchôa


Doutora em Filosofia pela Universidade de Coimbra; membro do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (IEF); membro do grupo de trabalho Ecologias Feministas de Saberes.

 

Imagens

1. Manifestações em Paris, durante o Maio de 1968.

 

Nota de edição

O texto de Marcela Uchôa foi originalmente publicado no Jornal Público, na edição do dia 29 Outubro de 2021, disponível em https://www.publico.pt/2021/10/29/opiniao/opiniao/mito-esquerda-pratica-academica-1982861

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 15.02.2022

Edição #34 • Inverno 2022 •