Por cada casa vazia: a questão dos devolutos e o Direito à Habitação • Habitação Hoje

 

 

Já todos ouvimos a frase “Tanta gente sem casa e tanta casa sem gente”. Essas casas, ou terrenos, sem gente, que não estão a cumprir nenhum uso, são o que se chama de devolutos.

Nos Censos de 2021 identificaram-se 72.3214 alojamentos vagos. Em 2018, identificaram-se 25.762 famílias a precisar de realojamento. As contas não são difíceis, o número de casas vazias em Portugal permitiria alojar 28 vezes as famílias identificadas. É claro que o número de famílias a precisar de casa ultrapassa largamente as 26 mil; no entanto, dificilmente seria necessário mobilizar todos os devolutos para garantir o Direito de todos à Habitação. Perante este cenário de profunda ineficiência na distribuição social de bens considerados essenciais, interessa levantar duas questões: porque é que existem tantas habitações devolutas? E porque é que uma contradição tão evidente tem tão pouca presença no debate público sobre habitação?

Responder a estas perguntas implica perceber o enquadramento actual da habitação enquanto mercadoria e a sua consequente negação enquanto direito. A habitação, inserida num mercado global, é transaccionada pelo seu valor de troca, deixando muitas vezes de parte o seu valor de uso. O valor de uso de uma habitação depende da sua utilização como tal, enquanto casa, abrigo, ponto de partida para o direito ao trabalho, à educação, à saúde e tantos outros. Ora, há uma incompatibilidade de fundo entre estas duas realidades – valor de uso e valor de troca – porque o objectivo do mercado nunca é a prossecução de direitos, o seu objectivo é sempre lucrar com uma determinada mercadoria. Neste sentido, há algumas características que explicam a preferência da finança pelo imobiliário, no geral, e pela habitação, em particular:

-O facto de o mercado imobiliário concentrar muito valor. Isto reflecte-se num mercado que vale mais de “217 biliões, 36 vezes o valor de todo o ouro alguma vez minerado. Este mercado perfaz 60% dos activos financeiros mundiais e a maioria dessa riqueza - aproximadamente 75% - é em habitação.” [1] Isto também fica claro quando olhamos para Portugal, já que o ano passado, mesmo em plena pandemia, “foi o melhor de sempre” [2] para o mercado imobiliário, venderam-se mais casas, e mais caras.

1. Samuel Stein, Capital City. Gentrification and the Real Estate, Londres, Verso, 2019, p.2.

2. Para mais sobre o assunto, cf. https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/imobiliario/detalhe/ano-de-2021-foi-o-melhor-de-sempre-para-a-venda-de-casas.

-O facto de a habitação ser essencial para garantir uma vida condigna. Enquanto direito basilar, a habitação compromete o cumprimento de tantos outros direitos fundamentais, como vimos acima. Isto significa que, ao torná-la mercadoria, nunca terá falta de procura, levando muitas famílias a ter taxas de esforço - a percentagem do rendimento gasto na renda ou na prestação ao banco - muito elevadas. No Porto, por exemplo, se compararmos o preço médio da renda de um apartamento e os rendimentos dos agregados, vemos que apenas 25% da população consegue aceder a um T2 com a taxa de esforço recomendada [3] pelo governo: 27% do rendimento mensal. Nessa condição, como se garante alimentação, água, luz, internet, transportes e tantas outras necessidades a todo o agregado? 

3. Este cálculo foi realizado a partir dos valores medianos dos novos contratos de arrendamento fornecidos pelo INE (2021), em comparação com o rendimento bruto declarado dos agregados ficais (2018). Ambos os dados são relativos ao município do porto.

-O facto de cada habitação ter uma localização única. A quantidade de espaço é limitada, principalmente em áreas mais desejáveis e melhor situadas em termos de acesso a emprego, educação, transportes, actividades recreativas e serviços. Nesse sentido, cada proprietário tem uma espécie de monopólio, onde através da acumulação de ‘mercadorias únicas’ ganha poder sobre a inflação do mercado. Isto porque, não sendo possível produzir mais espaço para responder à procura, os preços estão sempre a subir, excluindo as populações mais pobres do acesso a uma habitação digna e do acesso à cidade, agravando ainda mais as desigualdades existentes.

-O facto de ser possível prever onde é que o valor do solo, que representa a maior fatia do valor da habitação, vai valorizar. Claro que canalizar investimentos para um sítio a fim de o valorizar, significa tirar de outro, que vai ser desvalorizado. No entanto essa valorização pode ser prevista e manipulada, através do planeamento urbano, porque, ao contrário do que acontece com a construção, que pode desvalorizar por degradação material, a valorização e desvalorização do solo está à mercê do interesse do capital. Uma determinada parcela de espaço no território vê muitas vezes o seu solo valorizado pela perspectiva de intervenções no espaço urbano envolvente. Investimento público em infraestruturas como espaço público ou transportes que aumentam o valor dos terrenos privados. 

Estas características, aliadas ao facto de, depois de 2008, a confiança nos bancos ter caído, ajudaram a que o mercado imobiliário se reforçasse enquanto depósito de valor, exactamente por representar um investimento seguro e lucrativo. E é precisamente perante esta realidade que o neoliberalismo encontra as condições para tornar o mercado imobiliário um sector extremamente rentável. Os devolutos assumem nestas dinâmicas uma posição central para a manutenção dos ciclos de acumulação de capital: são garantias de um valor em constante crescimento enquanto o processo de valorização do solo urbano não está ainda concretizado. Como é que um edifício degradado e vazio pode ser usado para especulação? Imaginemos um proprietário que sabe que a zona da cidade em que se encontra a sua propriedade vai sofrer uma forte renovação urbana. Com isso vai obviamente ser valorizada e é mais rentável esperar que este processo ocorra do que colocar as casas no mercado enquanto o seu valor ainda não está no seu máximo potencial. 

Acreditamos que o que temos vindo a explicar deixa claro o confronto que existe entre o direito ilimitado à propriedade e o direito à habitação. Nesse sentido, é pela separação destas duas esferas, que os devolutos não surgem no debate público sobre habitação. Mas se o problema afecta cada vez mais gente, qual a razão para negarmos o potencial valor de uso destes edifícios devolutos? A resposta a essa pergunta é tanto circunstancial quanto estrutural: um devoluto pode estar neste estado por ser fruto de uma herança indivisa, pelo proprietário não poder arcar com os custos de uma renovação ou então com propósitos especulativos. 

Fica claro que é preciso que as habitações devolutas cumpram a sua função social e se tornem casa. O facto de processos como a gentrificação, renovação urbana e especulação imobiliária estarem no centro da discussão sobre o urbanismo e o território nas últimas décadas é consequência desse planeamento urbano que favorece o valor de troca e da acumulação de capital e que se tornou uma verdadeira máquina de produzir desigualdades. Quantas pessoas foram expulsas das suas casas para dar lugar a um edifício devoluto? Uma violência silenciosa e camuflada que é cometida contra os mais vulneráveis, em nome da ‘renovação urbana’.

 

Que soluções para este problema?

Para procurar soluções é primeiro necessário aceder a um diagnóstico mais fino da realidade. Nesse sentido, a reivindicação mais imediata é, naturalmente, uma maior transparência nos dados de propriedade imobiliária. Porque sem conhecer a circunstância que envolve cada devoluto, não é possível perceber os efeitos e consequências que determinada proposta de solução arrastará consigo. Os devolutos não são todos iguais e qualquer medida séria terá de saber distinguir essas diferenças. Quantas propriedades tem o proprietário desse devoluto? Quantas dessas estão devolutas? Tem dívidas acumuladas? Há quanto tempo não vive lá ninguém? Quantas vezes foi transaccionada? Há projectos públicos previstos na zona?

Para além disso, se o direito à habitação é um direito fundamental, devemos reivindicar a utilização de todas as ferramentas ao nosso alcance para o concretizar e as casas vagas, que são um claro abuso do direito à propriedade, são um recurso óbvio para este problema, tanto pela abundância como pela prontidão com que lhe dariam resposta - uma vez que mais de metade dos devolutos identificados pelo INE estão em bom estado de conservação. Mas que estratégias podem desencadear um processo que leve à utilização dos devolutos identificados para responder às carências habitacionais existentes? 

Por um lado, mexer na política fiscal parece ser um caminho para fazer estas propriedades voltarem ao mercado. No entanto, parece-nos essencial confrontar o aumento das taxas com duas questões. (1) A reabilitação desses edifícios não garante a sua entrada no mercado de arrendamento para quem têm dificuldades em encontrar uma casa a preços que consiga comportar, podendo esta medida ser mais um factor de gentrificação. E (2) o aumento da taxa sobre estes edifícios pode potenciar a criação de monopólios por parte de fundos imobiliários e grandes investidores, que estarão disponíveis para adquirir edifícios de pequenos proprietários que se vejam obrigados a pôr os imóveis à venda, tanto por falta de capacidade para o reabilitar, como para suportar o acréscimo das taxas.

Por outro lado, a expropriação parece ecoar como caminho lógico para que tanta gente sem casa passe a ocupar as centenas de milhares de casas sem gente. Esta ferramenta pode ser utilizada por ‘causa de utilidade pública’, no entanto, na letra da lei, a expropriação parece estar desenhada apenas para não atropelar o direito à propriedade e nunca para potenciar uma gestão activa do território. A expropriação está então empurrada para situações limite, muitas vezes relacionadas com projectos de infraestruturas de grande escala, de modo a indemnizar os afectados. Ao mesmo tempo, para além de constituir um processo jurídico lento, o valor pelo qual se pauta a expropriação é muitas vezes mais alto do que o próprio valor de mercado. Noutros termos, a ‘tomada de posse administrativa’ parece ganhar terreno nas políticas de habitação, estando referida na regulamentação da Lei de Bases da Habitação, aprovada em 2021. No entanto, a proposta passa por trazer os custos de reabilitação para a esfera pública e devolver, depois de um período de arrendamento que permita cobrir esses custos, o imóvel à esfera privada, valorizado. Apesar de aumentar durante alguns anos a oferta de habitação pública, esta medida não contribui para uma solução estável e permanente do problema. 

 Torna-se então essencial repensar o modo como a expropriação está desenhada, para que possa servir de ferramenta jurídica e urbanística no sentido de fazer cumprir o direito à habitação e à cidade, para fazer cumprir um direito comum. Isto faz ainda mais sentido dado que, regra geral, os devolutos se localizam em zonas fortemente infraestruturadas - com proximidade a redes de transporte, a emprego, a escolas e universidades, a centros de saúde e hospitais, a creches e lares, a espaços públicos qualificados e a oferta cultural. Nesse sentido, voltar a habitar os devolutos é uma decisão ambiental, económica e socialmente mais justa do que construir habitação num terreno devoluto público que se encontre completamente afastado destes serviços e bens. Porque a verdade é que só com habitação nas mãos de um Estado que tenha o interesse da classe trabalhadora como prioridade, é que o processo de reabilitação para arrendamento se poderá traduzir na prática de rendas adequadas aos rendimentos de cada família. 

Sabemos que entre 1991 e 2011, o número de alojamentos cresceu o dobro em relação ao número de famílias, e que é nos municípios com as maiores carências habitacionais que se concentram mais edifícios devolutos. Estes dados continuam a comprovar o que Engels já afirmava no século XIX: «certo é que existem já nas grandes cidades prédios de habitação em número suficiente para remediar sem demora, pelo uso racional, toda a verdadeira "crise da habitação”» [4] Continuamos a ter nos devolutos, então, a resposta para o problema da habitação no século XXI.

4 Friedrich Engels, O problema da habitação, Lisboa, Estampa, 1975,  [1872], p.37.

A discussão pública deste problema é necessária para começarmos a encarar as contradições que ignoramos diariamente. É legítimo aceitarmos que o governo utilize a habitação como bandeira quando não está disposto a reverter projectos especulativos como os Vistos Gold e a liberalização dos despejos (Lei Cristas)? É legítimo aceitarmos que uma pessoa em situação de sem abrigo permaneça na condição de dormir no átrio de um edifício devoluto? É justo que o Estado despeje famílias para a seguir entaipar os edifícios e deixá-los fechados durante décadas? Como é que podemos aceitar que o direito de uma pessoa a ter várias casas seja superior ao direito de outra de ter uma casa?

Assegurar o acesso à habitação implica reconhecer que o problema é colectivo. Implica questionar a ideologia que nos foi imposta, onde somos culpabilizados individualmente por não conseguirmos aceder a uma habitação e onde aceitamos que o mercado faça lucro com sectores básicos como o acesso a uma casa digna. Mas, precisamente por pôr em causa os fundamentos do modo de produção capitalista, sabemos que esta contradição nunca será resolvida pelas forças no poder - só uma luta organizada e colectiva poderá inverter o sistema de forças e garantir os direitos essenciais à vida digna da maior parte da população.

 

 

Habitação Hoje

A Habitação Hoje é uma organização que nasceu no Porto para os que defendem o cumprimento radical e absoluto do Direito à Habitação, para os que querem lutar para que ninguém fique sem tecto e para os que acreditam que é possível resolver este problema.

Defendendo que a organização é a única forma de reverter os problemas criados ao longo de tantos anos, trabalha em várias frentes: na solidariedade e na luta com os que estão mais longe de ver este direito cumprido; na compreensão de que a habitação tem um papel de base no cumprimento de outros direitos e na análise dos mecanismos e das múltiplas políticas que encobrem os problemas com falsas esperanças e que afectam sempre as classes mais baixas.

 

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1. n.84 da Rua D.João IV, Porto, ©Alexandre Alves Costa / Arquivo Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra

 

Nota de edição

Este texto foi escrito pela Habitação Hoje a convite do Jornal Punkto, na sequência do debate organizado pela organização sobre a questão, que teve lugar no dia 14 de Dezembro de 2021, no Porto.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 22.02.2022

Edição #34 • Inverno 2022 •