Antes de tudo, creio que é necessário evidenciar que
a minha posição sobre a pandemia dista temporalmente da larga maioria dos
textos contidos neste caderno (há uma óbvia diferença de
contextos entre a actual situação pandémica e o momento vivido em 2020 que não
pode ser ignorada). Até porque, a pandemia volatilizou o espaço (o espaço
público transformou-se em espaço interdito, as estradas e os aeroportos que anteriormente
nos ligavam foram bloqueadas, a funcionalidade dos locais alteradas, servindo
de morgues improvisadas ou centros de vacinação) e o tempo (houve uma clara
disrupção rítmica, o que permitiu a coexistência simultânea entre o
abrandamento da vida, tão visível no apelo feito por parte do governo alemão
para que os seus cidadãos se entregassem à inércia, enquanto o mundo científico
unia esforços e criava uma vacina em tempo recorde).
No entanto, tal como o vírus, houve uma variante
que rapidamente se impôs sobre todas as outras – o desaceleramento global do
sistema capitalista (o que permitiu a alguns vislumbrar mais um dos fins do
sistema capitalista). Graças à catástrofe do SARS-CoV-2, a travagem súbita do
progresso económico (o progresso que suplantou e subjugou todos os outros
progressos), expôs a nossa condição actual – somos todos consumidores (sobre
este aspecto, creio que o texto de Nancy é fundamental, na medida em que relaciona
a ligação entre o curso da pandemia e o curso do capitalismo, enquanto «produto
da globalização»). Impedidos de celebrar o contínuo festim das pulsões
produzidas pelo capitalismo – porque a transformação da realidade numa
sociedade capitalista depende apenas da acumulação de bens e experiências –, deparámo-nos
com tempo homogéneo, reduzido à monocromia de um presente sem produção ou
consumo.
De um momento para o outro, o silêncio abateu-se
sobre tudo aquilo que era externo à pandemia, como se o SARS-CoV-2 tivesse extinguido
magicamente os restantes males do mundo. Mesmo aquilo que indiferente à
pandemia seguia o seu curso, – a guerra no Afeganistão, as alterações
climáticas ou a crise dos refugiados –, viu-se eclipsado dos jornais e das
televisões, dando lugar à experiência totalitária da vida pandémica. Tal como
corredores kafkianos, as notícias acumulavam-se de nadas, a administração da
vida e da morte ficou a cargo dos matemáticos, as vagas e as variantes obrigavam
a novos desdobramentos das técnicas governamentais, a cacofonia médica punha em
causa a ciência enquanto disciplina exacta, a palavra retrocesso emergia a todo o
momento da boca de políticos e epidemiologistas ciosos, traindo a velha crença
do progresso.
Não deixa por isso de ser curioso que nesta
situação feita de avanços e retrocessos, a vida que desejamos viver não esteja projectada
para diante, mas para trás. O vírus bloqueou-nos a ideia de futuro e o tempo da
“vida normal” pressupõe recomeçarmos no momento anterior à pandemia. Como se o
momento de alguma forma estivesse à nossa espera, cristalizado, precisando
apenas de um toque de mágica feito às arrecuas. As próprias imagens anteriores
à pandemia que emergiam das televisões, do cinema ou das fotografias, colidiam
com a nossa experiência e causavam estranheza ao vermos uma vida de cara
destapada, sem distanciamento obrigatório ou de mãos compulsivamente lavadas. É
evidente que a pandemia do coronavírus estabeleceu uma cesura, mas a
prontificação histórica enquanto acontecimento, merece o nosso questionamento.
Toda a História do mundo tem sido feita através da
história europeia-americana e nem mesmo a contemporaneidade veio destabilizar
esse centro gravitacional. Pelo contrário, o 11 de setembro reafirmou a tendência
de uma história global feita a partir desse mesmo eixo. A própria pandemia do
coronavírus é em Itália e não na China que estabelece o seu epicentro. Neste
sentido, a designação de uma “vida normal” não revela a pluralidade da vida no
mundo, mas antes a sobrevalorização de um modo de vida sobre os restantes
modos.
Considerações, ainda que legítimas e absolutamente
pertinentes, sobre democracia, estado de excepção, controlo ou medidas de saúde
pública, fazem parte de um léxico essencialmente europeu-americano. O modo como
estes estados administram a vida dos seus cidadãos, assim como a própria
resposta gerada por parte de intelectuais, filósofos, críticos, economistas,
etc., face a tais medidas, continuam a alimentar e a sedimentar uma visão de
uma filosofia colonialista, ao reflectir o particular sobre o todo.
Não pretendo com isto participar da justa conversa
que actualmente decorre sobre a desconstrução de determinadas narrativas, na
medida em que não me sinto capacitado para encetar tal discussão. No entanto, é
importante recordarmos o pertinente texto de Deleuze e Guattari, no livro O
que é a Filosofia?, contra a visão europeísta de Hegel. Para ambos os
autores, o pensamento filosófico nasce na Europa, graças às trocas comerciais e
ao desenvolvimento do sistema capitalista. É por isso urgente desfazer
determinadas mitologias em torno deste primado, para que possamos pensar num
modo de vida exterior ao próprio capitalismo. Replicar a ideia de que a
pandemia suspendeu a vida, revela muitíssimo mais sobre a suspensão de um
determinado modo de vida consumista, do que nos remete para a existência de uma
«vida nua» ou de uma «subvida».
O próprio lamento patético de alguns pensadores anticapitalistas,
que entreviram no vírus a possibilidade de um «novo comunismo», legitimava não
só a ideia perigosa das baixas necessárias (o texto de Esposito alerta-nos
precisamente sobre os riscos de uma «interpretação totalmente positiva» do
vírus), como reiterava a ideia burguesa de que perante os vírus somos todos
iguais (opacificando assim as assimetrias entre classes). Zizek, ao concordar com o Vice-Ministro
da Saúde do Irão, de que estamos todos no «mesmo barco», não pode deixar de
causar alguma perplexidade. Porque a pandemia, pelo contrário, demonstrou
rapidamente que ricos e pobres não estão no mesmo barco, visto que os pobres
vivem em condições de habitação precárias, sobrelotadas, sem acesso aos mesmos
cuidados de saúde e são mais vulneráveis às crises económicas e laborais.
Relembro ainda que dentro dos pobres, os negros nos Estados Unidos da
América, apresentavam uma taxa de mortalidade superior à dos brancos na mesma
condição, apesar do número de infectados brancos ser superior. Ainda hoje
assistimos à diferença abismal entre o número de vacinados nos países
desenvolvidos e nos países de terceiro mundo.
Foi com igual perplexidade que li os textos de
Agamben sobre a pandemia. Dado que, independentemente do importante aviso sobre
os perigos da protecção da vida a todo o custo poder significar a negação da
própria vida, o cenário distópico que Agamben projectou sobre o território
europeu, não só pecava por um excesso desmedido, como demonstrou uma imensa
insensibilidade perante a realidade da situação pandémica (enquanto
empilhavam-se corpos, Agamben escrevia sobre «a invenção de uma pandemia») e foi grotesco no
modo como estabeleceu pontes entre a resposta dada pelos estados modernos e o
nazismo. O que me leva a concordar com os textos de Maria Filomena Molder e de Donatella di Cesare, de que Agamben
ficou refém da sua própria teoria. Além de que, apesar das inúmeras críticas
aos estados europeus, Agamben é incapaz de mencionar uma única vez a China, o lugar
por excelência onde o estado de excepção passou a ser regra. O próprio Sloterdijk, confortavelmente distante
da máquina estatal chinesa, comparou de forma esdruxula a China e a Europa,
sem, no entanto, pensar que a entrevista dada ao Le Point jamais poderia
ser lá dada.
Mesmo o texto de Byung-Chul Han, que enumera alguns
aspectos positivos da mentalidade asiática (o sentido colectivista, a adopção
do uso das máscaras, a confiança nos estados) por oposição à mentalidade
europeia (que o próprio vê falhar na contenção do vírus), serve-se de métodos
de análise demarcadamente europeus. O problema não está na transposição de
Agamben ou Foucault para uma outra realidade, mas no modo como a outra
realidade é moldada para servir a teoria e não o seu contrário (a única excepção
é o texto de Paul B. Preciado, que parte de Foucault, mas que vai além do mesmo).
Inevitavelmente, regresso a Deleuze, porque
parece-me essencial recuperar duas ideias: «conceito» e «esquerda». Desde o
primeiro livro, que o projecto de Deleuze assenta na «destruição da imagem de
um pensamento que se pressupõe a si próprio», ou seja, de uma doxa. É
preciso recomeçar tudo outra vez, criar novos «conceitos», eliminar o senso
comum. Apesar de Deleuze reconhecer que a criação de um «conceito» é a tarefa
filosófica mais exigente de todas, a persistência com que sempre se manteve
fiel a este pressuposto na sua filosofia, fê-lo um dos autores mais admiráveis
do século passado. É esta vitalidade que sinto que falta à maioria dos
filósofos actuais, incapazes de criar novos conceitos, presos a modelos de
pensamento desfasados da realidade e sobretudo escravos do presente.
A própria «esquerda» que Deleuze pensa do todo para
o particular, é traída pela actual esquerda enredada no seu solipsismo e
pessimismo. O «outro» deixou de ser o lugar de onde partimos, para se
constituir como barreira ao «eu». Os fenómenos tribalistas desmultiplicam-se,
as minorias atomizaram-se e a ideia do colectivo serve apenas de caldo
reaquecido ao espírito órfão do Maio de 68. Ao contrário do «médico da
civilização», tal como Nietzsche compreendeu o filósofo, a figura do filósofo
actual vai-se esboroando à medida que o capitalismo avança.
Mas o avanço do capitalismo, não deve ser
confundido como uma vitória do mesmo. É precisamente contra a aceitação do
«realismo capitalista», que Mark Fisher escreveu. Não basta dizer que o
capitalismo é mau, para que possamos de consciência livre, gozar dos seus
privilégios. Assim como, não basta construir um pensamento revolucionário,
ancorado em figuras «kitsch» ou «nostálgicas», que ele nos devolve das
revoluções passadas ou das revoluções futuras que ficaram por cumprir. O
capitalismo não é uma inevitabilidade, assim como quanto maior ele é, maiores
serão as suas fissuras. É nesse lugar que o pensamento deve operar, nos espaços
não capturados, onde a linguagem não reproduz as palavras de ordem e a economia
libidinal não se esgota nas imagens.
Concluo, que a maior potência do vírus não está na
possibilidade de travar o capitalismo, mas antes de nos devolver aquilo que o
capitalismo nos roubou. Foi o tempo acumulado pelo capitalismo ao longo da
“vida normal”, que a “vida pandémica” nos restituiu. É esse excesso de tempo
que desabou sobre as nossas cabeças, e que nem mesmo a esquerda soube o que
fazer com ele (tão enredados que estão quanto os capitalistas, que apenas vêm
no tempo a sua utilidade prática), que surge como vital para que possamos
constituir um novo tempo de acção. Longe dos ritmos, da linguagem, do
pensamento constituído, tudo aquilo que é sólido deve por fim dissolver-se no
ar.
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Bernardo Vaz de Castro
Bernardo Vaz de Castro é doutorando na área das
Ciências da Comunicação na FCSH. Desde o início do seu percurso académico que
procurou desenvolver questões relacionadas com literatura, filosofia e cinema.
A par do âmbito universitário, desenvolveu alguns projectos com o Museu
Berardo, Mala Voadora, Festival Queer Lisboa, DocLisboa e Fundação Calouste
Gulbenkian, local onde ainda mantém uma participação activa enquanto júri para
a área do cinema. É também crítico de cinema no site www.apaladewalsh.com.
Imagem
1. Brassaï, Maquete original de
"Nocturne", 1968-1972. Collection Centre Pompidou, musée national
d'art moderne, Paris.
Ficha Técnica
Data de publicação: 20.01.2022
Edição #34 • Inverno 2022 •