Le Point: O que lhe inspira esta paragem forçada da
actividade humana, estas cidades mortas, estes aviões, estes estádios e estas
escolas vazias, esta forma de reconexão com os grandes medos medievais, o
pensamento apocalíptico?
Peter Sloterdijk: É preciso antes de mais constatar que vivemos na era da
sobre-reacção. Desde há um século pelo menos, a simetria do par acção/reacção,
estabelecida por Newton, e estudada por Starobinski ao nível da sua aplicação
cultural e política, foi ultrapassada por uma assimetria em favor da acção. Ser
moderno quer dizer acreditar no primado do agir. Portanto, no momento em que
nos encontramos, por uma vez, numa situação que nos imporia um pouco de
passividade, escolheu-se a fuga pelo activismo exagerado. Encontramo-nos no
caso de uma hiper-alergologia por referência a agentes que nos farão
eventualmente sofrer. Assim, porque um contágio sobrevém devido a um novo
membro do universo macrobiótico acerca do qual não se sabe grande coisa,
fecham-se todas as escolas, mesmo sabendo que as crianças não estão ameaçadas,
já que dispõem de uma imunidade natural, espantosa, de resto. Doravante, todo o
mundo, absolutamente todo o mundo, é convidado a sentir-se ameaçado. E o homem
é de tal maneira disposto a fantasmar-se ameaçado que uma boa parte da
população europeia assume já a ideia de fazer parte de uma espécie em vias de
extinção!
Faz-se demais? Os Franceses foram porém
acusados de não fazer o suficiente…
Digamos que o sistema do stress do
homem contemporâneo está habitualmente sub-ocupado. E aqui, em face de um novo
inimigo do género humano, ele desperta. O superego colectivo parece impor aos
governantes não falhar nenhum dos seus deveres «maternantes». Nomeadamente a
promessa da esperança de vida de 80 anos e mais, que devem absolutamente reter
sob pena de ver os seus administrandos sentirem-se traídos. A fuga em frente é
então a única forma de se desculpabilizar, sobretudo para os membros do
complexo médico-político. É também para eles uma maneira de se
desresponsabilizarem. Se se faz dez vezes demais, então ninguém poderá ser
declarado culpado de negligência.
Acusa os responsáveis de agir sem
razões suficientes?
A vantagem de um vírus – contanto que
seja o resultado de uma mutação espontânea e não, com a sua redondez perfeita
de bola de futebol, uma criação de laboratórios de guerra biológica – é o de
poder ser atribuído à dimensão que nomeamos «natureza». No entanto, o direito
de defesa contra agressores naturais é raramente posto, politicamente, em
questão… A crise «corona» exibe assim todos os sintomas de uma tomada de poder
pela «securo-cracia» camuflada sob as aparências de uma «médico-cracia»
benevolente. Anunciam-se-nos cada dia a contagem dos mortos – dia 16 de Março,
três mortos na Baviera – mas continua-se a ignorar que na Alemanha, em tempos
normais, há uma mortalidade de quase 3000 pessoas por dia. Em 2017, o Gabinete
de estatística federal contou 932272 mortos, na grande maioria devido aos
flagelos da nossa época, de que não é necessário pronunciar os nomes medicais.
Em França é semelhante: 2000 mortos por dia. Ninguém fala deles – com a
excepção dos pequenos avisos de falecimento colados nas portas das mercearias
de aldeia. O novo vírus de proveniência chinesa não é senão um dos múltiplos
pseudónimos da mortalidade humana média. Não se quer ver que ela sempre fez o
seu trabalho com aplicação, bastante serenamente, e na maior parte do tempo sem
a participação da imprensa e dos chefes de Estado.
Quer dizer que, com a actual crise
sanitária, a mortalidade geral não encontrou senão uma causa suplementar?
Macron, no entanto, fala de «guerra»…
Conduzem-se por vezes falsas guerras.
As medidas de precaução contra um vírus desconhecido não têm nada que ver com
uma mobilização ao combate militar. Pelo contrário, desmobiliza-se à força de
utilizar metáforas belicistas. Enquanto admirador do presidente francês, teria
preferido que lhe dessem conselhos no sentido da retórica pacífica.
Esperava-se o caos da contestação
política ou de uma agitação geopolítica no Médio-Oriente ou na Ásia, mas eis
que surge de uma doença…
Não é o caos que surge desta doença
mas, de modo bastante antiliberal, o fantasma da ordem reencontrada.
Curiosamente, isto assemelha-se um pouco ao estado de excepção com que sonhavam
certos pensadores políticos dos anos 1920 e 1930, há um século, como Carl
Schmitt. Para ele, o soberano, é aquele que decide do estado de emergência. E a
validade de uma decisão não é determinada pelo seu conteúdo mas pelo facto que
ela é tomada por uma autoridade considerada legítima. Pergunto-me se não
vivemos um momento histórico louco. Fecham-se as fronteiras quando toda a gente
sabe que um vírus viaja sem passaporte. Se não fossem as consequências destas
decisões, seria até um pouco cómico, como nas peças do século XVII onde um
histrião e o grande médico de fato negro e longo nariz se encontravam. Veja o
que se passou em Itália, onde as pessoas confinadas cantam ópera nas varandas,
em mundovisão! Tocando música nas varandas, troça-se da sua própria submissão à
ditadura médico-colectivista.
Alguns convidam os seus contemporâneos
a mudar a sua maneira de viver e a romper com a hipermundialização e a
interdependência que vai a par… É o fim de um mundo ou simplesmente uma pausa?
Sobre as autoestradas francesas, lia-se
em tempos um painel com estas palavras: «Após algumas horas a pausa impõe-se.»
É uma divisa útil para um mundo ultra-acelerado. Vejamos se a desaceleração dos
processos à escala global conduz a algo de positivo. Eu não creio. A peste do
século XIV não fez parar a ascensão da Europa e o vírus, mil vezes mais inocente,
não fará parar a da China.
Parece que, de resto, se resolve na
China. Trata-se da vingança dos modelos autoritários sobre as democracias,
julgadas demasiado laxistas, não suficientemente protectoras? Em França, as
autoridades mantiveram as eleições, o que deu muito murmúrio.
Não se inquiete, o sistema ocidental
irá revelar-se tão autoritário quanto o da China. O erro capital, connosco como
com eles, é o de proteger a quase totalidade daqueles que não estão tão
ameaçados e de negligenciar a protecção dos grupos de risco aumentado.
«Nós, Europeus, seremos salvos pela
nossa mediocridade enérgica», dizia-nos da última vez. Mas a Europa,
reclinada sobre as suas nações, existe ela ainda? Ou apenas nas palavras do
presidente francês?
Fico bastante contente que reste na
Europa pelo menos um Europeu! Sejamos sérios: não se pode dizer que a Europa
terminou. Hoje, é verdade, um número importante de nações europeias formata a
sua política imunológica segundo as fronteiras nacionais. Mas não se trata
necessariamente de um reprego identitário, antes a expressão do facto de que a
faculdade de agir de acordo com a legislação em vigor está restringida ao
espaço dos direitos nacionais. Todas estas restrições vão desaparecer uma vez
que a crise esteja superada. Tanto pior para esta parte da população que sentia
uma certa satisfação – como se o stress da globalização, da concorrência
mundial, da ditadura da mobilidade tivesse sido suspenso. Erro. Tudo isto vai
ser retomado mais ou menos rapidamente e mais forte do que antes, sob pretexto
de se dever compensar as perdas.
Enquanto se espera, como sair disto?
Antes de mais, já que vamos estar
confinados e que vamos poder ler mais, relendo antes Boccaccio em vez de Camus!
Explico-me. Neste momento, fala-se muito da Peste, de Camus, que, creio, batia
recordes convosco nas livrarias. Antes de encerrarem… O verdadeiro assunto da
Peste seria, Camus ele mesmo o teria escrito a Barthes: «a resistência europeia
contra o nazismo». Dificilmente transponível… Camus não é a boa peste. Mas o
Decameron, de Boccaccio, oferece pistas… Esta obra prima foi escrita aquando da
maior crise que a Europa conheceu, a Peste negra do século XIV, provocada pela
guerra biológica conduzida contra uma cidade de comerciantes, Caffa, na costa
do mar Negro, que era parceira de Génova. O Decameron é uma história de
confinamento em meio rural. Para se divertirem face ao mal que atinge a cidade,
dez jovens florentinos partem sobre as colinas e instauram uma regra simples:
cada um deverá, cada dia, contar uma história aos outros. Segundo um tema
previamente escolhido por aquele ou aquela que é eleito(a) rei ou rainha do
dia. No primeiro dia, fala-se «daquilo que é o mais agradável a cada um». No
segundo, «daqueles que atormentados pelo azar, acabam além de toda a esperança por
escapar de boa». Em suma, contam-se histórias que dão vontade de viver. Nada
melhor, neste momento! Variante muniquense: no pico de uma epidemia de peste no
século XIV, os tanoeiros dançavam na rua da cidade para reanimar o espírito
colectivo… Outra pista: estudar uma ciência inexistente, a labirintologia.
A labirintologia?
No sentido próprio, a ciência dos
labirintos. Num labirinto, é preciso esperar não encontrar o caminho de saída à
primeira tentativa. Tudo depende da boa memória que se tem das bifurcações. Por
agora – diante da bifurcação «deixar andar» ou «confinamento» – o mundo dito
«razoável» optou pela segunda opção, tão louca quanto possa parecer com os seus diktats desmesurados. Finge-se vencer o
inimigo obscuro opondo-lhe um máximo de obstáculos, enquanto ao mesmo tempo os
especialistas de imunologia nos explicam que não se chegará a um estado de nova
normalidade senão na altura em que dois terços ou três quartos da população
terão atravessado o seu episódio individual com o vírus. Portanto, tentando
evitar a todo o custo a propagação do agressor desconhecido, escolhe-se uma
bifurcação que conduzirá a uma porta condenada. Em breve, ver-se-à que a
politologia, a imunologia, a ecologia e a labirintologia se encontram em face
de um conjunto de desafios comuns. Trabalhemos então esta nova ciência, teremos
necessidade dela!
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Peter
Sloterdijk
Filósofo alemão, nasceu em Karlsruhe em
1947, professor na Universidade de Arte e Design de Karlsruhe, autor de Crítica da Razão Cínica e Regras para o Parque Humano, publicados
em português.
Nota
da edição
Esta entrevista foi originalmente publicada no Jornal Le Point, a 18 de Março de
2020. A tradução foi realizada por Luís Carneiro.
Ficha Técnica
Data de publicação: o7.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •