Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da SIDA e tivesse
resistido até se ter inventado a triterapia, teria hoje 93 anos: teria ele
aceite de bom grado fechar-se no seu apartamento da rue Vaugirard? O primeiro
filósofo da história a morrer devido a complicações geradas pelo síndrome da
imunodeficiência adquirida [SIDA] deixou-nos algumas das noções mais eficazes
para pensar a gestão política da epidemia que, no meio do pânico e da desinformação,
se tornam tão úteis como uma boa máscara cognitiva.
O aspecto mais importante que podemos aprender com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objecto central de toda a política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps [Não há política que não seja política dos corpos]. Mas, para Foucault, o corpo não é um organismo biológico dado sobre o qual o poder viria a actuar. A própria tarefa da acção política é fabricar um corpo, pô-lo a trabalhar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades do discurso por meio das quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer “eu”. Poder-se-ia olhar para todo o trabalho de Foucault como uma análise histórica das várias técnicas por meio das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e Punir e o primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault utilizou a noção de «biopolítica» para falar de uma relação que o poder estabelecia com o corpo social na modernidade. Foucault descreveu a transição daquilo que ele chamava de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinária” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas estendiam-se como uma rede de poder que excedia o âmbito legal ou a esfera punitiva, convertendo-se numa forma “somato-política”, uma forma de poder espacializado que se estendia pela totalidade do território até penetrar no corpo individual.
O aspecto mais importante que podemos aprender com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objecto central de toda a política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps [Não há política que não seja política dos corpos]. Mas, para Foucault, o corpo não é um organismo biológico dado sobre o qual o poder viria a actuar. A própria tarefa da acção política é fabricar um corpo, pô-lo a trabalhar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades do discurso por meio das quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer “eu”. Poder-se-ia olhar para todo o trabalho de Foucault como uma análise histórica das várias técnicas por meio das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e Punir e o primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault utilizou a noção de «biopolítica» para falar de uma relação que o poder estabelecia com o corpo social na modernidade. Foucault descreveu a transição daquilo que ele chamava de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinária” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas estendiam-se como uma rede de poder que excedia o âmbito legal ou a esfera punitiva, convertendo-se numa forma “somato-política”, uma forma de poder espacializado que se estendia pela totalidade do território até penetrar no corpo individual.
Durante e após a crise da SIDA, inúmeros autores ampliaram e radicalizaram
as hipóteses de Foucault e as suas relações com as políticas imunitárias. O
filósofo italiano Roberto Esposito analisou as relações entre a noção de
política da “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”.
Comunidade e imunidade partilham uma mesma raiz latina, munus, que
significa o tributo que alguém devia pagar devido ao facto de viver ou formar
parte da comunidade. A comunidade é cum (com) munus (dever,
lei, obrigação, mas também oferenda): um grupo humano conectado por uma lei e
uma obrigação comum, mas também por um presente, uma oferenda. O substantivo inmunitas é
um vocábulo privativo que deriva da negação munus. No direito
romano, a inmunitas era a dispensa ou o privilégio que
exonerava alguém dos deveres sociais comuns a todos. Aquele que tivesse sido
exonerado era imune. Ao passo que aquele que estava desmunido era
aquele ao qual se haviam retirado todos os privilégios da vida em comunidade.
Roberto Esposito ensina-nos que toda a biopolítica é imunológica: ela supõe
uma definição da comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre, por um
lado, os corpos que estão isentos de tributos (os que são considerados imunes)
e, por outro, aqueles que a comunidade percebe como potencialmente perigosos
(os demuni) e que serão excluídos por meio de um acto de protecção
imunológica. Eis o paradoxo da biopolítica: todo o acto de protecção implica
uma definição imunitária da comunidade segundo a qual esta se outorga a si
mesma a autoridade de sacrificar outras vidas em benefício de uma ideia da sua
própria soberania. O estado de excepção é a normalização deste paradoxo
insuportável.
A partir do século XIX, com o descobrimento da primeira vacina contra a
varíola e as experiências de Pasteur e Koch, a noção de imunidade é extraída do
âmbito do direito e adquire uma significação médica. As democracias liberais e
patriarco-coloniais europeias do século XIX constroem o ideal do indivíduo
moderno não apenas como agente (masculino, branco, heterossexual) económico
livre, mas também como um corpo imune, radicalmente separado, que nada deve à
comunidade. Para Esposito, o modo pelo qual a Alemanha nazi caracterizou uma
parte da sua própria população (os judeus mas também os ciganos, os
homossexuais, as pessoas com deficiências) como corpos que ameaçavam a
soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos da gestão
imunitária. Esta compreensão imunológica da sociedade não acabou com o regime
nazi; pelo contrário, ela sobreviveu na Europa através da legitimação das
políticas neoliberais de gestão das suas minorias racializadas e das populações
migrantes. Foi esta compreensão imunológica que a comunidade económica europeia
foi forjando, desde o mito de Shengen às técnicas da Frontex nos últimos anos.
Em 1994, em Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade de
Princeton, Emily Martin, analisou a relação entre imunidade e política na
cultura americana durante as crises da poliomielite e da SIDA. Martin chegou a
algumas conclusões que se tornaram pertinentes para analisar a crise actual. A
imunidade corporal, diz Martin, não é apenas um mero facto biológico
independente de variáveis culturais e políticas. Muito pelo contrário: o que
entendemos por imunidade constrói-se colectivamente através de critérios
sociais e políticos que produzem, alternativamente, ora soberania ora exclusão,
ora protecção ora estigma, ora vida ora morte.
Se voltarmos a pensar na história de algumas das epidemias mundiais dos
últimos cinco séculos a partir das análises que nos oferecem Michel Foucault,
Roberto Esposito e Emily Martin, é-nos possível elaborar uma hipótese que
poderia tomar a forma de uma equação: diz-me como é que a tua comunidade
constrói a sua soberania política, e eu dir-te-ei que formas tomarão as tuas
epidemias e como as irás combater.
As várias epidemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões
que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado
período. Para o dizer em termos do próprio Foucault, uma epidemia radicaliza e
desloca as técnicas biopolíticas que se aplicam ao território nacional até ao
nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo,
uma epidemia permite aplicar a toda a população as medidas de “imunização”
política que, até hoje, haviam sido aplicadas de forma violenta contra aqueles
que eram considerados, tanto dentro como nos limites do território nacional,
como “estrangeiros”.
A gestão política das epidemias coloca em cena a utopia de comunidade e as
fantasias imunitárias de uma sociedade, externalizando os sonhos de
omnipotência (e os falhanços desastrosos) da sua soberania política. A hipótese
de Michel Foucault, Roberto Esposito e de Emily Martin não tem nada que ver com
uma teoria de complot. Não se trata
da ideia absurda de que o vírus é uma invenção de laboratório ou um plano
maquiavélico que visa a expansão de políticas cada vez mais autoritárias. Pelo
contrário, o vírus actua à nossa imagem e semelhança, não faz outra coisa que replicar, materializar, intensificar e estender a toda a população as
formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já operavam sobre o
território nacional e os seus limites. Daí cada sociedade se poder definir pela
epidemia que a ameaça e pelo modo como se organiza face a ela.
Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela primeira vez a
cidade de Nápoles em 1494. O empreendimento colonial europeu tinha acabado de
começar. A sífilis foi como que o pontapé de saída da destruição colonial e das
políticas raciais que com elas viriam. Os ingleses deram-lhe o nome de “a
doença francesa”, os franceses disseram que era “o mal napolitano”, e os
napolitanos diziam que tinha vindo da América: disse-se que tinha sido trazida
pelos colonizadores que teriam sido infectados pelos indígenas… Como nos
ensinou Derrida, o vírus é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estranho.
Como infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos
séculos XVI ao século XIX as formas de repressão e exclusão social que
dominavam a modernidade patriarco-colonial: a obsessão pela pureza racial, a
proibição daquilo a que se chamava de “casamentos mistos” entre pessoas de
classe e “raça” diferentes e as múltiplas restrições que se impunham sobre as
relações sexuais e extra-matrimoniais.
A utopia de comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo
branco burguês sexualmente confinado à vida matrimonial enquanto núcleo da
reprodução do corpo nacional. Daí que a prostituta se tenha convertido em corpo
vivo que condensou todos os significantes políticos abjectos durante a
epidemia: mulher operária e frequentemente racializada, corpo externo às
regulamentações domésticas e matrimoniais, que fazia da sua sexualidade o seu
meio de produção, a trabalhadora sexual foi vista, controlada e estigmatizada
como vector principal da propagação do vírus. Mas não foi a repressão da
prostituição nem o encarceramento das prostitutas em bordéis nacionais (como
imaginou Restif de la Bretonne) que levou à cura da sífilis. Muito pelo
contrário. O encarceramento das prostitutas só as tornou mais vulneráveis à
doença. O que curou a sífilis foi a descoberta dos antibióticos e,
especialmente, a descoberta da penicilina em 1928, precisamente num momento de
profundas transformações da política sexual na Europa, com os primeiros
movimentos de descolonização, pelo acesso de mulheres brancas ao voto, as primeiras
despenalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética
matrimonial heterossexual.
Meio século depois, a SIDA foi para a sociedade neoliberal heteronormativa
do século XX aquilo que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e
colonial. Os primeiros casos apareceram em 1981, justamente quando a
homossexualidade, após décadas de perseguição e discriminação social, começava
a deixar de ser considerada uma doença psiquiátrica. A primeira fase da
epidemia afectou maioritariamente aqueles que, então, eram chamados de 4H:
homossexuais, hookers (trabalhadoras ou trabalhadores
sexuais), hemofílicos e heroin users (consumidores de
heroína). A rede de controlo sobre o corpo e a sexualidade tecida pela sífilis,
e que a penicilina e os movimentos de descolonização, feministas e homossexuais
haviam desarticulado e transformado nos anos sessenta e setenta, foi reforçada
e reactualizada pela SIDA. Tal como com as prostitutas durante a crise da
sífilis, a repressão da homossexualidade só veio causar mais mortes. O que tem
vindo a transformar progressivamente a SIDA numa doença crónica é a
despatologização da homossexualidade, a autonomização farmacológica do Sul
global, a emancipação sexual das mulheres, o seu direito a dizer “não” ao
não-uso de preservativo, e o acesso da população afectada às triterapias,
independentemente da sua classe social ou do seu grau de racialização. O modelo
de comunidade/imunidade da SIDA tem que ver com a fantasia da soberania sexual
masculina entendida como direito inegociável de penetração, ao passo que todo o
corpo penetrado sexualmente (o homossexual, a mulher, toda a forma de
analidade) é visto como algo a que lhe falta soberania.
Voltemos agora à nossa situação actual. Muito antes do CoVid-19 ter
aparecido, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Muito antes
do vírus, já estávamos a atravessar uma mudança social e política tão profunda
como aquela que afectou as sociedades que desenvolveram a sífilis. No século
XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, deu-se a
passagem de uma sociedade oral para uma sociedade [da] escrita, de uma forma de
produção feudal para uma forma de produção industrial-esclavagista, e de uma
sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos nos
quais as noções de sexo, raça e sexualidade viriam a converter-se em
dispositivos de controlo necro-biopolítico da população.
Hoje, estamos a passar de uma sociedade [da] escrita a uma sociedade
ciberoral, de uma sociedade orgânica a uma sociedade digital, duma economia
industrial a uma economia imaterial, duma forma de controlo disciplinário e
arquitectónico a formas de controlo microprostéticas e mediático-cibernéticas.
Noutros textos, chamei de farmacopornográfica ao tipo de
gestão e produção do corpo e da subjectividade sexual dentro desta nova
configuração política. O corpo e a subjectividade contemporâneos já não são
apenas regulados pela sua passagem por instituições disciplinárias (a escola, a
fábrica, o quartel, o hospital, etc.) mas também, e sobretudo, por um conjunto
de tecnologias biomoleculares, microprostéticas, digitais e de transmissão e de
informação. No âmbito da sexualidade, a modificação farmacológica da
consciência e do comportamento, a mundialização da pílula para todas as
“mulheres”, assim como a produção de triterapias, das terapias de prevenção à
SIDA ou o viagra são alguns dos índices desta gestão biotecnológica. A extensão
planetária da Internet, a generalização do uso de tecnologias informáticas
móveis, o uso da inteligência artificial e de algoritmos na análise de big
data, a troca de informação a grande velocidade e o desenvolvimento de
dispositivos globais de vigilância informática via satélite são índices desta
nova gestão semiótico-técnica digital. Se lhes dei o nome de pornográficas,
isto deve-se, em primeiro lugar, ao facto de estas técnicas de bio-vigilância
se introduzirem dentro do corpo, de atravessarem a pele, de nos penetrarem; e,
em segundo lugar, ao facto dos dispositivos de biocontrolo já não funcionarem
através da repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas sim através da
incitação ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e
quantificável. Quanto mais consumimos e mais sãos estamos, melhor somos
controlados.
A mutação em curso nos dias de hoje, poderia também ser a passagem de um
regime patriarco-colonial e extractivista, duma sociedade antropocêntrica e
duma política em que uma muito pequena parte da comunidade planetária humana se
autoriza a si mesma a levar a cabo práticas de predação universal, a uma
sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. Duma sociedade de
combustíveis fósseis a uma outra de energias renováveis. Está também em aberto
a passagem de um modelo binário de diferença sexual a um paradigma mais aberto,
no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva dum corpo
não definem a sua posição social a partir do nascimento; e também a passagem
dum modelo hétero-patriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida.
Durante e após esta crise, a questão central de todo o debate será sobre quais
as vidas estaremos dispostos a salvar e quais as que terão de ser sacrificadas.
É no contexto desta mutação, da transformação dos modos de compreender a
comunidade (uma comunidade que, hoje, é a totalidade do planeta) e a imunidade,
que o vírus opera e se converte em estratégia política.
Imunidade e política da fronteira
O que tem vindo a caracterizar as políticas governamentais dos últimos 20
anos, pelo menos desde a queda das torres gémeas, em relação às ideias
aparentes de liberdade de circulação que dominavam o neoliberalismo da era
Thatcher, tem sido a redefinição dos estados-nação em termos neocoloniais e
identitários e o regresso à ideia de fronteira física como condição para o
restabelecimento da identidade nacional e da soberania política. Israel, os
Estados Unidos, a Rússia, a Turquia e a Comunidade Económica Europeia (CEE)
encabeçaram o projecto de definição de novas fronteiras que, pela primeira vez
em muitas décadas, foram não só vigiadas ou colocadas sob custódia, como foram
também reinscritas através da decisão de levantar muros e construir diques, e
defendidas não com medidas biopolíticas mas necropolíticas, com técnicas de
morte.
Enquanto sociedade europeia, decidimos construir-nos colectivamente como
comunidade totalmente imune, fechada a Oriente e a Sul, ainda que o Oriente e o
Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de
consumo, sejam o nosso armazém. Fechámos a fronteira na Grécia, construímos os
maiores centros de detenção a céu aberto da história nas ilhas que fazem
fronteira entre a Turquia e o Mediterrâneo, acreditando na fantasia de que
assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou,
paradoxalmente, com esta construção de uma comunidade europeia imune, aberta no
seu interior e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.
O que tem vindo a ser testado a uma escala planetária através da gestão do
vírus é um novo modo de compreender a soberania num contexto no qual a identidade
sexual e racial (até agora eixos da segmentação política do mundo
patriarco-colonial) estão a ser desarticuladas. O CoVid-19 deslocou as
políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no
superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o
teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de
produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as
agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há
vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o
vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia
para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E
a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo.
Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que
respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é
a tua pele.
As políticas da fronteira e as medidas estritas de isolamento e
imobilização que, enquanto comunidade, aplicámos durante estes últimos anos a
migrantes e refugiados – ao ponto de os expulsar de toda e qualquer comunidade
– reproduzem-se agora sobre os [nossos] corpos individuais. Mantivemo-los
durante anos no limbo dos centros de retenção. Agora somos nós que vivemos no
limbo do centro de retenção das nossas próprias casas.
A biopolítica na era da ‘farmacopornografia’
As epidemias, pelo seu apelo ao estado de excepção e pela imposição
inflexível de medidas extremas, são também grandes laboratórios de inovação
social, a ocasião de uma reconfiguração a grande escala das técnicas do corpo e
das tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão da lepra à
gestão da peste como o processo por meio do qual se aplicaram as técnicas
disciplinárias de espacialização do poder da modernidade. Se a lepra foi
confrontada através de medidas estritamente necropolíticas que excluíam o
leproso condenando-o, se não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a
reacção contra a epidemia da peste inventa a gestão disciplinária e as suas
formas de inclusão exclusiva: uma estrita segmentação da cidade, o isolamento
de cada corpo em cada casa.
As várias estratégias que os vários países têm tomado contra a disseminação
do CoVid-19 mostram dois tipos de tecnologias biopolíticas totalmente
distintas. A primeira, que opera sobretudo em Itália, Espanha e França, aplica
medidas estritamente disciplinárias que não são, em vários sentidos, muito distintas
das que se utilizaram conta a peste. Trata-se do isolamento domiciliário da
totalidade da população. Vale a pena reler o capítulo de Vigiar e Punir sobre
a gestão da peste na Europa para nos darmos conta de que as políticas francesas
de gestão do CoVid-19 não mudaram muito desde então. Nestes casos, aplica-se a
lógica da fronteira arquitectónica e o tratamento dos casos de infecção dentro
dos limites hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou provas de
eficácia total.
A segunda estratégia, levada a cabo pela Coreia do Sul, Taiwan, Singapura,
Hong-Kong, Japão e Israel, supõe a passagem das técnicas disciplinárias e de
controlo arquitectónico modernas às técnicas farmacopornográficas de
biovigilância [1]: nestes casos, a ênfase é colocada na detecção
individual do vírus através da multiplicação dos testes e de uma estrita e
constante vigilância dos enfermeiros através dos seus dispositivos informáticos
móveis. Os telemóveis e os cartões de crédito convertem-se, aqui, em
instrumentos de vigilância que permitem rastrear os movimentos do corpo
individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o telemóvel tornou-se a
melhor pulseira, ninguém se separa dele nem sequer para dormir. Uma aplicação
de GPS informa a polícia sobre os movimentos de qualquer corpo suspeito. A
temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorizados através das
tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olho digital de um Estado
ciber-autoritário para quem a comunidade é uma comunidade de ciber-usuários e a
soberania é sobretudo transparência digital e gestão de big data.
1.Veja-se a
este propósito o artigo de Byung-Chul Han, “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”.
Mas estas políticas de imunização política não são novas e não foram apenas
postas em prática para a procura e captura dos chamados terroristas: desde o
início da década de 2010 que Taiwan legalizou o acesso a todos os contactos dos
telemóveis nas aplicações de encontro sexual com o objectivo de “prevenir” a
expansão da SIDA e a prostituição na Internet. O CoVid-19 legitimou e estendeu
essas práticas estatais de biovigilância e controlo digital normalizando-as e
tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto,
os mesmos Estados que implementam medidas de vigilância digital extrema não
estão a pensar proibir o tráfico e o consumo de animais selvagens nem a
produção industrial de aves e mamíferos nem sequer a redução das emissões de CO2.
O que aumentou não foi a imunidade do corpo social mas a tolerância cidadã em relação
ao controlo cibernético estatal e corporativo.
A gestão política do CoVid-19 enquanto forma de administração da vida e da
morte desenha os contornos de uma nova subjectividade. O que se terá inventado
depois da crise é uma nova utopia da comunidade imune e uma nova forma de
controlo do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal
fabricado pelo CoVid-19 não tem pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens
físicos, nem toca em moedas, paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não
tem língua. Não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Não se reúne nem se
colectiviza. É radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara. O seu corpo
orgânico oculta-se para poder existir segundo uma série indefinida de mediações
semio-técnicas, segundo uma série de próteses cibernéticas que lhe servem de
máscara: a máscara do endereço de e-mail, a máscara da conta de Facebook, a
máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um
tele-produtor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um
nome, um apartamento para o qual a Amazon pode enviar os seus pedidos.
A prisão soft: bem-vindo à tele-república da tua casa
Um dos deslocamentos centrais das técnicas biopolíticas farmacopornográficas que
caracterizam a crise do CoVid-19 é que o domicílio pessoal – e não as
instituições tradicionais de enclausuramento e normalização (o hospital, a
fábrica, a prisão, a faculdade) – aparece agora como o novo centro de produção,
consumo e controlo biopolítico. Já não é apenas uma questão de a casa ser o
lugar de isolamento do corpo, como era o caso na gestão da peste. O domicílio
pessoal converteu-se agora no centro da economia do tele-consumo e da
tele-produção. O espaço doméstico existe agora como um ponto num espaço
ciber-vigiado, um lugar identificável num mapa da google, uma caixa
reconhecível por um drone.
Se, a dada altura, me interessei pela Playboy Mansion, foi porque esta
funcionou em plena guerra fria como um laboratório onde se inventavam os novos
dispositivos de controlo farmacopornográficos do corpo e da
sexualidade que viriam a ser aplicados no início do século XXI e que, agora, se
ampliaram à totalidade da população mundial com a crise do CoVid-19. Quando fiz
a minha investigação sobre a Playboy, chamou-me à atenção o facto
de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos
sem sair da Mansão, vestido apenas com um pijama, um roupão e umas pantufas, a
beber coca-cola e a comer Butterfingers [chocolate tipo Twix], e ter conseguido
criar e produzir a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de sua
casa ou, inclusive, da sua cama. Com uma câmara de vídeo, uma linha directa de
telefone, rádio e sistema de som, a cama de Hefner era uma autêntica plataforma
de produção multimédia da vida do seu habitante.
O seu biógrafo, Steven Watts, definiu Hefner como “um recluso voluntário no
seu próprio paraíso.” Um defensor de dispositivos de arquivo audiovisual de
todo os géneros e feitios, Hefner enviava, muito antes da existência do
telemóvel, do Facebook ou do WhatsApp, mais de vinte fitas de áudio e de vídeo
com ordens e mensagens que iam desde entrevistas em directo a directrizes de
publicação. Hefner havia instalado na mansão, na qual viviam também uma dezena
de Playmates, um circuito fechado de câmaras de vigilância e podia,
desde o seu centro de controlo, aceder a todos os quartos em tempo real.
Coberta de painéis de madeira e com espessas cortinas, mas penetrada por
milhares de cabos e repleta daquilo que na altura era visto como a mais alta
tecnologia de telecomunicação (e que hoje nos parecerão tão arcaicas como
um tam-tam [tambor chinês]), era ao mesmo tempo totalmente
opaca e totalmente transparente. Os materiais filmados pelas câmaras de
vigilância acabavam também nas páginas da revista.
A silenciosa revolução biopolítica liderada pela Playboy supunha,
além da transformação da pornografia heterossexual na cultura de massas, um
questionamento da divisão sobre a qual se fundava a sociedade industrial do
século XIX: a separação das esferas de produção e da reprodução, a diferença
entre a fábrica e o lar e, com ela, a distinção patriarcal entre masculinidade
e feminidade. A Playboy respeitou esta diferença propondo a
criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente
conectado às novas tecnologias de comunicação do qual o novo produtor semiótico
não precisa de sair, nem para trabalhar nem para fazer sexo – actividades que,
além disso, se haviam tornado indiscerníveis. A sua cama giratória era ao mesmo
tempo a sua mesa de trabalho, um escritório de direcção, um cenário fotográfico
e um lugar de encontros sexuais, além de um cenário de televisão a partir do
qual se filmava o famoso programa Playboy after dark. A Playboy antecipou
os discursos contemporâneos sobre o teletrabalho, assim como a produção
imaterial que a gestão da crise do CoVid-19 transformou num dever cidadão.
Hefner chamou a este novo produtor social o “trabalhador horizontal”. O vector
de inovação social que a Playboy pôs em marcha era a erosão
(para não dizer a destruição) da distância entre trabalho e ócio, entre
produção e sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e difundida pelos
meios de comunicação da revista e da televisão, era totalmente pública, ainda
que o playboy não saísse de sua casa ou, inclusive, da sua cama. Nesse sentido,
a Playboy colocava também em questão a diferença entre as
esferas masculinas e femininas, fazendo do novo operário multimédia um homem
doméstico – o que na altura parecia um oxímoro. O biógrafo de Hefner
relembra-nos que este isolamento produtivo precisava da ajuda de químicos:
Hefner era um grande consumidor de Dexetrina, uma anfetamina que eliminava o
cansaço e o sono. De modo que, paradoxalmente, o homem que não saía da sua
cama, nunca dormia. A cama como novo centro de operações multimédia era uma
célula farmacopornográfica: só poderia funcionar com a pílula, com
drogas que mantivessem o nível produtivo em alta e um constante fluxo de
códigos semióticos que se haviam tornado no único e verdadeiro alimento do
playboy.
Isto parece-vos familiar agora? Será que tudo isto é assim tão estranho às
vossas próprias vidas em isolamento? Relembremos agora as declarações do
presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e
trabalhem a partir de casa. As medidas biopolíticas de gestão do contágio
impostas para fazer frente ao coronavírus fizeram com que cada um de nós se
transformasse num trabalhador horizontal mais ou menos playboyiano.
O espaço doméstico de qualquer um de nós está hoje em dia dez mil vezes mais
apetrechado de tecnologias do que a cama giratória de Hefner em 1968. Os
dispositivos de tele-trabalho e tele-controlo estão, agora, nas palmas das
nossas mãos.
Em Vigiar e Punir, Michel Foucault analisou as células
religiosas de enclausuramento unipessoal como autênticos vectores que serviram
de modelo para a passagem das técnicas soberanas e sangrentas de controlo do
corpo e da subjectividade anteriores ao século XVIII, às arquitecturas
disciplinárias e aos dispositivos de enclausuramento como novas técnicas de
gestão da totalidade da população. As arquitecturas disciplinárias foram
versões secularizadas das células monásticas nas quais se dá, pela primeira
vez, a gestação do indivíduo moderno como alma encerrada num corpo, como um
espírito leitor capaz de ler as palavras-de-ordem do Estado. Quando o escritor
Tom Wolfe visitou Hefner, disse que ele vivia numa prisão tão suave como o
coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão Playboy e
a cama giratória de Hefner, convertidos em objecto de consumo pop,
funcionaram durante a guerra fria como espaços de transição nos quais se
inventou o novo sujeito prostético, ultra-conectado, e as novas formas de
consumo e controlo farmacopornográficas e de bio-vigilância
que dominam a sociedade contemporânea. Esta mutação expandiu-se e amplificou-se
ainda mais durante a gestão da crise do CoVid-19: as nossas máquinas portáteis
de telecomunicação são os nossos novos guardas prisionais e os nossos
interiores domésticos converteram-se na prisão soft e
ultra-conectada do futuro.
Mutação ou submissão
Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É
justamente por os nossos corpos serem os novos enclaves do biopoder e os nossos
apartamentos as novas células de biovigilância que se torna mais urgente que
nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e de resistência e
pôr em marcha novos processos antagonistas. Ao contrário do que se poderia imaginar, o nosso bem-estar não virá da
imposição de fronteiras ou da separação, mas de uma nova compreensão da
comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres
vivos do planeta. Precisamos de um parlamento dos corpos planetário, um
parlamento definido, não em termos de políticas de identidade nem de
nacionalidades, mas um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no
planeta Terra. O acontecimento CoVid-19 e as suas consequências são a chamada
para nos libertarmos de uma vez por todas da violência com a qual definimos a
nossa imunidade social. A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto
imunológico negativo de afastamento do social, de encerramento da comunidade. A
cura e o cuidado só podem surgir dum processo de transformação política.
Tornarmo-nos sãos enquanto sociedade significa inventar uma nova comunidade
além das políticas de identidade e da fronteira com a qual, até agora, temos
produzido a soberania, mas também além da redução da vida à sua bio-vigilância
cibernética. Continuar com vida, mantermo-nos vivos como planeta, face ao
vírus, mas também face ao que lhe pode suceder, significa pôr em marcha formas
estruturais de cooperação planetária. Assim como o vírus sofre mutações, também
nós teremos de nos mutar se queremos resistir à submissão.
É necessário passar de uma mutação forçada a uma mutação deliberada. Devemos
reapropriar-nos criticamente das técnicas biopolíticas e dos seus
dispositivos farmacopornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo
mudar a relação dos nossos corpos com as máquinas de biovigilância e de
biocontrolo: eles não são simples dispositivos de comunicação. Temos de
aprender colectivamente a alterá-los. Mas é também preciso desalienarmo-nos. Os
Governos apelam ao isolamento e ao teletrabalho. Nós sabemos que apelam à
descolectivização e ao telecontrolo. Utilizemos o tempo e a força do isolamento
para estudar as tradições de luta e resistência minoritárias que nos ajudaram a
sobreviver até aqui. Desliguemos os telemóveis, desconectemo-nos da Internet.
Façamos o grande blackout face aos satélites que nos vigiam e
imaginemos juntos na revolução que vem.
•
Paul
B. Preciado
Filósofo e escritor feminista transgénero,
tem uma extensa obra por entre temas que passam pela filosofia de género,
teoria queer, arquitectura, identidade e pornografia.
Nota
da edição
Ficha Técnica
Data de publicação: o9.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •