Aprendendo com o vírus • Paul B. Preciado




Se Michel Foucault tivesse sobrevivido ao flagelo da SIDA e tivesse resistido até se ter inventado a triterapia, teria hoje 93 anos: teria ele aceite de bom grado fechar-se no seu apartamento da rue Vaugirard? O primeiro filósofo da história a morrer devido a complicações geradas pelo síndrome da imunodeficiência adquirida [SIDA] deixou-nos algumas das noções mais eficazes para pensar a gestão política da epidemia que, no meio do pânico e da desinformação, se tornam tão úteis como uma boa máscara cognitiva. 

O aspecto mais importante que podemos aprender com Foucault é que o corpo vivo (e, portanto, mortal) é o objecto central de toda a política. Il n’y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps [Não há política que não seja política dos corpos]. Mas, para Foucault, o corpo não é um organismo biológico dado sobre o qual o poder viria a actuar. A própria tarefa da acção política é fabricar um corpo, pô-lo a trabalhar, definir os seus modos de reprodução, prefigurar as modalidades do discurso por meio das quais esse corpo se ficcionaliza até ser capaz de dizer “eu”. Poder-se-ia olhar para todo o trabalho de Foucault como uma análise histórica das várias técnicas por meio das quais o poder gere a vida e a morte das populações. Entre 1975 e 1976, os anos em que publicou Vigiar e Punir e o primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault utilizou a noção de «biopolítica» para falar de uma relação que o poder estabelecia com o corpo social na modernidade. Foucault descreveu a transição daquilo que ele chamava de “sociedade soberana” para uma “sociedade disciplinária” como a passagem de uma sociedade que define a soberania em termos de decisão e ritualização da morte para uma sociedade que gere e maximiza a vida das populações em termos de interesse nacional. Para Foucault, as técnicas governamentais biopolíticas estendiam-se como uma rede de poder que excedia o âmbito legal ou a esfera punitiva, convertendo-se numa forma “somato-política”, uma forma de poder espacializado que se estendia pela totalidade do território até penetrar no corpo individual.

Durante e após a crise da SIDA, inúmeros autores ampliaram e radicalizaram as hipóteses de Foucault e as suas relações com as políticas imunitárias. O filósofo italiano Roberto Esposito analisou as relações entre a noção de política da “comunidade” e a noção biomédica e epidemiológica de “imunidade”. Comunidade e imunidade partilham uma mesma raiz latina, munus, que significa o tributo que alguém devia pagar devido ao facto de viver ou formar parte da comunidade. A comunidade é cum (com) munus (dever, lei, obrigação, mas também oferenda): um grupo humano conectado por uma lei e uma obrigação comum, mas também por um presente, uma oferenda. O substantivo inmunitas é um vocábulo privativo que deriva da negação munus. No direito romano, a inmunitas era a dispensa ou o privilégio que exonerava alguém dos deveres sociais comuns a todos. Aquele que tivesse sido exonerado era imune. Ao passo que aquele que estava desmunido era aquele ao qual se haviam retirado todos os privilégios da vida em comunidade.

Roberto Esposito ensina-nos que toda a biopolítica é imunológica: ela supõe uma definição da comunidade e o estabelecimento de uma hierarquia entre, por um lado, os corpos que estão isentos de tributos (os que são considerados imunes) e, por outro, aqueles que a comunidade percebe como potencialmente perigosos (os demuni) e que serão excluídos por meio de um acto de protecção imunológica. Eis o paradoxo da biopolítica: todo o acto de protecção implica uma definição imunitária da comunidade segundo a qual esta se outorga a si mesma a autoridade de sacrificar outras vidas em benefício de uma ideia da sua própria soberania. O estado de excepção é a normalização deste paradoxo insuportável.

A partir do século XIX, com o descobrimento da primeira vacina contra a varíola e as experiências de Pasteur e Koch, a noção de imunidade é extraída do âmbito do direito e adquire uma significação médica. As democracias liberais e patriarco-coloniais europeias do século XIX constroem o ideal do indivíduo moderno não apenas como agente (masculino, branco, heterossexual) económico livre, mas também como um corpo imune, radicalmente separado, que nada deve à comunidade. Para Esposito, o modo pelo qual a Alemanha nazi caracterizou uma parte da sua própria população (os judeus mas também os ciganos, os homossexuais, as pessoas com deficiências) como corpos que ameaçavam a soberania da comunidade ariana é um exemplo paradigmático dos perigos da gestão imunitária. Esta compreensão imunológica da sociedade não acabou com o regime nazi; pelo contrário, ela sobreviveu na Europa através da legitimação das políticas neoliberais de gestão das suas minorias racializadas e das populações migrantes. Foi esta compreensão imunológica que a comunidade económica europeia foi forjando, desde o mito de Shengen às técnicas da Frontex nos últimos anos.

Em 1994, em Flexible Bodies, a antropóloga da Universidade de Princeton, Emily Martin, analisou a relação entre imunidade e política na cultura americana durante as crises da poliomielite e da SIDA. Martin chegou a algumas conclusões que se tornaram pertinentes para analisar a crise actual. A imunidade corporal, diz Martin, não é apenas um mero facto biológico independente de variáveis culturais e políticas. Muito pelo contrário: o que entendemos por imunidade constrói-se colectivamente através de critérios sociais e políticos que produzem, alternativamente, ora soberania ora exclusão, ora protecção ora estigma, ora vida ora morte.

Se voltarmos a pensar na história de algumas das epidemias mundiais dos últimos cinco séculos a partir das análises que nos oferecem Michel Foucault, Roberto Esposito e Emily Martin, é-nos possível elaborar uma hipótese que poderia tomar a forma de uma equação: diz-me como é que a tua comunidade constrói a sua soberania política, e eu dir-te-ei que formas tomarão as tuas epidemias e como as irás combater.

As várias epidemias materializam no âmbito do corpo individual as obsessões que dominam a gestão política da vida e da morte das populações num determinado período. Para o dizer em termos do próprio Foucault, uma epidemia radicaliza e desloca as técnicas biopolíticas que se aplicam ao território nacional até ao nível da anatomia política, inscrevendo-as no corpo individual. Ao mesmo tempo, uma epidemia permite aplicar a toda a população as medidas de “imunização” política que, até hoje, haviam sido aplicadas de forma violenta contra aqueles que eram considerados, tanto dentro como nos limites do território nacional, como “estrangeiros”.

A gestão política das epidemias coloca em cena a utopia de comunidade e as fantasias imunitárias de uma sociedade, externalizando os sonhos de omnipotência (e os falhanços desastrosos) da sua soberania política. A hipótese de Michel Foucault, Roberto Esposito e de Emily Martin não tem nada que ver com uma teoria de complot. Não se trata da ideia absurda de que o vírus é uma invenção de laboratório ou um plano maquiavélico que visa a expansão de políticas cada vez mais autoritárias. Pelo contrário, o vírus actua à nossa imagem e semelhança, não faz outra coisa que replicar, materializar, intensificar e estender a toda a população as formas dominantes de gestão biopolítica e necropolítica que já operavam sobre o território nacional e os seus limites. Daí cada sociedade se poder definir pela epidemia que a ameaça e pelo modo como se organiza face a ela.

Pensemos, por exemplo, na sífilis. A epidemia atingiu pela primeira vez a cidade de Nápoles em 1494. O empreendimento colonial europeu tinha acabado de começar. A sífilis foi como que o pontapé de saída da destruição colonial e das políticas raciais que com elas viriam. Os ingleses deram-lhe o nome de “a doença francesa”, os franceses disseram que era “o mal napolitano”, e os napolitanos diziam que tinha vindo da América: disse-se que tinha sido trazida pelos colonizadores que teriam sido infectados pelos indígenas… Como nos ensinou Derrida, o vírus é, por definição, o estrangeiro, o outro, o estranho. Como infecção sexualmente transmissível, a sífilis materializou nos corpos dos séculos XVI ao século XIX as formas de repressão e exclusão social que dominavam a modernidade patriarco-colonial: a obsessão pela pureza racial, a proibição daquilo a que se chamava de “casamentos mistos” entre pessoas de classe e “raça” diferentes e as múltiplas restrições que se impunham sobre as relações sexuais e extra-matrimoniais.

A utopia de comunidade e o modelo de imunidade da sífilis é o do corpo branco burguês sexualmente confinado à vida matrimonial enquanto núcleo da reprodução do corpo nacional. Daí que a prostituta se tenha convertido em corpo vivo que condensou todos os significantes políticos abjectos durante a epidemia: mulher operária e frequentemente racializada, corpo externo às regulamentações domésticas e matrimoniais, que fazia da sua sexualidade o seu meio de produção, a trabalhadora sexual foi vista, controlada e estigmatizada como vector principal da propagação do vírus. Mas não foi a repressão da prostituição nem o encarceramento das prostitutas em bordéis nacionais (como imaginou Restif de la Bretonne) que levou à cura da sífilis. Muito pelo contrário. O encarceramento das prostitutas só as tornou mais vulneráveis à doença. O que curou a sífilis foi a descoberta dos antibióticos e, especialmente, a descoberta da penicilina em 1928, precisamente num momento de profundas transformações da política sexual na Europa, com os primeiros movimentos de descolonização, pelo acesso de mulheres brancas ao voto, as primeiras despenalizações da homossexualidade e uma relativa liberalização da ética matrimonial heterossexual.

Meio século depois, a SIDA foi para a sociedade neoliberal heteronormativa do século XX aquilo que a sífilis havia sido para a sociedade industrial e colonial. Os primeiros casos apareceram em 1981, justamente quando a homossexualidade, após décadas de perseguição e discriminação social, começava a deixar de ser considerada uma doença psiquiátrica. A primeira fase da epidemia afectou maioritariamente aqueles que, então, eram chamados de 4H: homossexuais, hookers (trabalhadoras ou trabalhadores sexuais), hemofílicos e heroin users (consumidores de heroína). A rede de controlo sobre o corpo e a sexualidade tecida pela sífilis, e que a penicilina e os movimentos de descolonização, feministas e homossexuais haviam desarticulado e transformado nos anos sessenta e setenta, foi reforçada e reactualizada pela SIDA. Tal como com as prostitutas durante a crise da sífilis, a repressão da homossexualidade só veio causar mais mortes. O que tem vindo a transformar progressivamente a SIDA numa doença crónica é a despatologização da homossexualidade, a autonomização farmacológica do Sul global, a emancipação sexual das mulheres, o seu direito a dizer “não” ao não-uso de preservativo, e o acesso da população afectada às triterapias, independentemente da sua classe social ou do seu grau de racialização. O modelo de comunidade/imunidade da SIDA tem que ver com a fantasia da soberania sexual masculina entendida como direito inegociável de penetração, ao passo que todo o corpo penetrado sexualmente (o homossexual, a mulher, toda a forma de analidade) é visto como algo a que lhe falta soberania.

Voltemos agora à nossa situação actual. Muito antes do CoVid-19 ter aparecido, já tínhamos iniciado um processo de mutação planetária. Muito antes do vírus, já estávamos a atravessar uma mudança social e política tão profunda como aquela que afectou as sociedades que desenvolveram a sífilis. No século XV, com a invenção da imprensa e a expansão do capitalismo colonial, deu-se a passagem de uma sociedade oral para uma sociedade [da] escrita, de uma forma de produção feudal para uma forma de produção industrial-esclavagista, e de uma sociedade teocrática para uma sociedade regida por acordos científicos nos quais as noções de sexo, raça e sexualidade viriam a converter-se em dispositivos de controlo necro-biopolítico da população.

Hoje, estamos a passar de uma sociedade [da] escrita a uma sociedade ciberoral, de uma sociedade orgânica a uma sociedade digital, duma economia industrial a uma economia imaterial, duma forma de controlo disciplinário e arquitectónico a formas de controlo microprostéticas e mediático-cibernéticas. Noutros textos, chamei de farmacopornográfica ao tipo de gestão e produção do corpo e da subjectividade sexual dentro desta nova configuração política. O corpo e a subjectividade contemporâneos já não são apenas regulados pela sua passagem por instituições disciplinárias (a escola, a fábrica, o quartel, o hospital, etc.) mas também, e sobretudo, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprostéticas, digitais e de transmissão e de informação. No âmbito da sexualidade, a modificação farmacológica da consciência e do comportamento, a mundialização da pílula para todas as “mulheres”, assim como a produção de triterapias, das terapias de prevenção à SIDA ou o viagra são alguns dos índices desta gestão biotecnológica. A extensão planetária da Internet, a generalização do uso de tecnologias informáticas móveis, o uso da inteligência artificial e de algoritmos na análise de big data, a troca de informação a grande velocidade e o desenvolvimento de dispositivos globais de vigilância informática via satélite são índices desta nova gestão semiótico-técnica digital. Se lhes dei o nome de pornográficas, isto deve-se, em primeiro lugar, ao facto de estas técnicas de bio-vigilância se introduzirem dentro do corpo, de atravessarem a pele, de nos penetrarem; e, em segundo lugar, ao facto dos dispositivos de biocontrolo já não funcionarem através da repressão da sexualidade (masturbatória ou não), mas sim através da incitação ao consumo e à produção constante de um prazer regulado e quantificável. Quanto mais consumimos e mais sãos estamos, melhor somos controlados.

A mutação em curso nos dias de hoje, poderia também ser a passagem de um regime patriarco-colonial e extractivista, duma sociedade antropocêntrica e duma política em que uma muito pequena parte da comunidade planetária humana se autoriza a si mesma a levar a cabo práticas de predação universal, a uma sociedade capaz de redistribuir energia e soberania. Duma sociedade de combustíveis fósseis a uma outra de energias renováveis. Está também em aberto a passagem de um modelo binário de diferença sexual a um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais e a capacidade reprodutiva dum corpo não definem a sua posição social a partir do nascimento; e também a passagem dum modelo hétero-patriarcal a formas não hierárquicas de reprodução da vida. Durante e após esta crise, a questão central de todo o debate será sobre quais as vidas estaremos dispostos a salvar e quais as que terão de ser sacrificadas. É no contexto desta mutação, da transformação dos modos de compreender a comunidade (uma comunidade que, hoje, é a totalidade do planeta) e a imunidade, que o vírus opera e se converte em estratégia política.

Imunidade e política da fronteira
O que tem vindo a caracterizar as políticas governamentais dos últimos 20 anos, pelo menos desde a queda das torres gémeas, em relação às ideias aparentes de liberdade de circulação que dominavam o neoliberalismo da era Thatcher, tem sido a redefinição dos estados-nação em termos neocoloniais e identitários e o regresso à ideia de fronteira física como condição para o restabelecimento da identidade nacional e da soberania política. Israel, os Estados Unidos, a Rússia, a Turquia e a Comunidade Económica Europeia (CEE) encabeçaram o projecto de definição de novas fronteiras que, pela primeira vez em muitas décadas, foram não só vigiadas ou colocadas sob custódia, como foram também reinscritas através da decisão de levantar muros e construir diques, e defendidas não com medidas biopolíticas mas necropolíticas, com técnicas de morte.

Enquanto sociedade europeia, decidimos construir-nos colectivamente como comunidade totalmente imune, fechada a Oriente e a Sul, ainda que o Oriente e o Sul, do ponto de vista dos recursos energéticos e da produção de bens de consumo, sejam o nosso armazém. Fechámos a fronteira na Grécia, construímos os maiores centros de detenção a céu aberto da história nas ilhas que fazem fronteira entre a Turquia e o Mediterrâneo, acreditando na fantasia de que assim conseguiríamos uma forma de imunidade. A destruição da Europa começou, paradoxalmente, com esta construção de uma comunidade europeia imune, aberta no seu interior e totalmente fechada aos estrangeiros e migrantes.

O que tem vindo a ser testado a uma escala planetária através da gestão do vírus é um novo modo de compreender a soberania num contexto no qual a identidade sexual e racial (até agora eixos da segmentação política do mundo patriarco-colonial) estão a ser desarticuladas. O CoVid-19 deslocou as políticas da fronteira que tinham lugar no território nacional ou no superterritório europeu em direcção ao nível do corpo individual. O corpo, o teu corpo individual, como espaço vivo e como trama de poder, como centro de produção e consumo de energia, converteu-se no novo território sobre o qual as agressivas políticas de fronteira que temos vindo a desenhar e a testar há vários anos se expressam agora sob a forma de barreira e de guerra contra o vírus. A nova fronteira necropolítica passou das costas marítimas da Grécia para a porta do domicílio privado. Lesbos começa agora na porta de tua casa. E a fronteira não pára de te cercar, de se aproximar cada vez mais do teu corpo. Calais explode agora na tua cara. A nova fronteira é a máscara facial. O ar que respiras deve ser só teu. A nova fronteira é a tua epiderme. A nova Lampedusa é a tua pele.

As políticas da fronteira e as medidas estritas de isolamento e imobilização que, enquanto comunidade, aplicámos durante estes últimos anos a migrantes e refugiados – ao ponto de os expulsar de toda e qualquer comunidade – reproduzem-se agora sobre os [nossos] corpos individuais. Mantivemo-los durante anos no limbo dos centros de retenção. Agora somos nós que vivemos no limbo do centro de retenção das nossas próprias casas.

A biopolítica na era da ‘farmacopornografia’
As epidemias, pelo seu apelo ao estado de excepção e pela imposição inflexível de medidas extremas, são também grandes laboratórios de inovação social, a ocasião de uma reconfiguração a grande escala das técnicas do corpo e das tecnologias do poder. Foucault analisou a passagem da gestão da lepra à gestão da peste como o processo por meio do qual se aplicaram as técnicas disciplinárias de espacialização do poder da modernidade. Se a lepra foi confrontada através de medidas estritamente necropolíticas que excluíam o leproso condenando-o, se não à morte, pelo menos à vida fora da comunidade, a reacção contra a epidemia da peste inventa a gestão disciplinária e as suas formas de inclusão exclusiva: uma estrita segmentação da cidade, o isolamento de cada corpo em cada casa.

As várias estratégias que os vários países têm tomado contra a disseminação do CoVid-19 mostram dois tipos de tecnologias biopolíticas totalmente distintas. A primeira, que opera sobretudo em Itália, Espanha e França, aplica medidas estritamente disciplinárias que não são, em vários sentidos, muito distintas das que se utilizaram conta a peste. Trata-se do isolamento domiciliário da totalidade da população. Vale a pena reler o capítulo de Vigiar e Punir sobre a gestão da peste na Europa para nos darmos conta de que as políticas francesas de gestão do CoVid-19 não mudaram muito desde então. Nestes casos, aplica-se a lógica da fronteira arquitectónica e o tratamento dos casos de infecção dentro dos limites hospitalares clássicos. Esta técnica ainda não mostrou provas de eficácia total.

A segunda estratégia, levada a cabo pela Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong-Kong, Japão e Israel, supõe a passagem das técnicas disciplinárias e de controlo arquitectónico modernas às técnicas farmacopornográficas de biovigilância [1]: nestes casos, a ênfase é colocada na detecção individual do vírus através da multiplicação dos testes e de uma estrita e constante vigilância dos enfermeiros através dos seus dispositivos informáticos móveis. Os telemóveis e os cartões de crédito convertem-se, aqui, em instrumentos de vigilância que permitem rastrear os movimentos do corpo individual. Não precisamos de pulseiras biométricas: o telemóvel tornou-se a melhor pulseira, ninguém se separa dele nem sequer para dormir. Uma aplicação de GPS informa a polícia sobre os movimentos de qualquer corpo suspeito. A temperatura e o movimento de um corpo individual são monitorizados através das tecnologias móveis e observados em tempo real pelo olho digital de um Estado ciber-autoritário para quem a comunidade é uma comunidade de ciber-usuários e a soberania é sobretudo transparência digital e gestão de big data.
1.Veja-se a este propósito o artigo de Byung-Chul Han, “O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã”.

Mas estas políticas de imunização política não são novas e não foram apenas postas em prática para a procura e captura dos chamados terroristas: desde o início da década de 2010 que Taiwan legalizou o acesso a todos os contactos dos telemóveis nas aplicações de encontro sexual com o objectivo de “prevenir” a expansão da SIDA e a prostituição na Internet. O CoVid-19 legitimou e estendeu essas práticas estatais de biovigilância e controlo digital normalizando-as e tornando-as “necessárias” para manter uma certa ideia de imunidade. No entanto, os mesmos Estados que implementam medidas de vigilância digital extrema não estão a pensar proibir o tráfico e o consumo de animais selvagens nem a produção industrial de aves e mamíferos nem sequer a redução das emissões de CO2. O que aumentou não foi a imunidade do corpo social mas a tolerância cidadã em relação ao controlo cibernético estatal e corporativo.

A gestão política do CoVid-19 enquanto forma de administração da vida e da morte desenha os contornos de uma nova subjectividade. O que se terá inventado depois da crise é uma nova utopia da comunidade imune e uma nova forma de controlo do corpo. O sujeito do tecnopatriarcado neoliberal fabricado pelo CoVid-19 não tem pele, é intocável, não tem mãos. Não troca bens físicos, nem toca em moedas, paga com cartão de crédito. Não tem lábios, não tem língua. Não fala ao vivo, deixa uma mensagem de voz. Não se reúne nem se colectiviza. É radicalmente indivíduo. Não tem rosto, tem máscara. O seu corpo orgânico oculta-se para poder existir segundo uma série indefinida de mediações semio-técnicas, segundo uma série de próteses cibernéticas que lhe servem de máscara: a máscara do endereço de e-mail, a máscara da conta de Facebook, a máscara do Instagram. Não é um agente físico, mas um consumidor digital, um tele-produtor, é um código, um pixel, uma conta bancária, uma porta com um nome, um apartamento para o qual a Amazon pode enviar os seus pedidos.

A prisão soft: bem-vindo à tele-república da tua casa
Um dos deslocamentos centrais das técnicas biopolíticas farmacopornográficas que caracterizam a crise do CoVid-19 é que o domicílio pessoal – e não as instituições tradicionais de enclausuramento e normalização (o hospital, a fábrica, a prisão, a faculdade) – aparece agora como o novo centro de produção, consumo e controlo biopolítico. Já não é apenas uma questão de a casa ser o lugar de isolamento do corpo, como era o caso na gestão da peste. O domicílio pessoal converteu-se agora no centro da economia do tele-consumo e da tele-produção. O espaço doméstico existe agora como um ponto num espaço ciber-vigiado, um lugar identificável num mapa da google, uma caixa reconhecível por um drone.

Se, a dada altura, me interessei pela Playboy Mansion, foi porque esta funcionou em plena guerra fria como um laboratório onde se inventavam os novos dispositivos de controlo farmacopornográficos do corpo e da sexualidade que viriam a ser aplicados no início do século XXI e que, agora, se ampliaram à totalidade da população mundial com a crise do CoVid-19. Quando fiz a minha investigação sobre a Playboy, chamou-me à atenção o facto de Hugh Hefner, um dos homens mais ricos do mundo, ter passado quase 40 anos sem sair da Mansão, vestido apenas com um pijama, um roupão e umas pantufas, a beber coca-cola e a comer Butterfingers [chocolate tipo Twix], e ter conseguido criar e produzir a revista mais importante dos Estados Unidos sem sair de sua casa ou, inclusive, da sua cama. Com uma câmara de vídeo, uma linha directa de telefone, rádio e sistema de som, a cama de Hefner era uma autêntica plataforma de produção multimédia da vida do seu habitante.

O seu biógrafo, Steven Watts, definiu Hefner como “um recluso voluntário no seu próprio paraíso.” Um defensor de dispositivos de arquivo audiovisual de todo os géneros e feitios, Hefner enviava, muito antes da existência do telemóvel, do Facebook ou do WhatsApp, mais de vinte fitas de áudio e de vídeo com ordens e mensagens que iam desde entrevistas em directo a directrizes de publicação. Hefner havia instalado na mansão, na qual viviam também uma dezena de Playmates, um circuito fechado de câmaras de vigilância e podia, desde o seu centro de controlo, aceder a todos os quartos em tempo real. Coberta de painéis de madeira e com espessas cortinas, mas penetrada por milhares de cabos e repleta daquilo que na altura era visto como a mais alta tecnologia de telecomunicação (e que hoje nos parecerão tão arcaicas como um tam-tam [tambor chinês]), era ao mesmo tempo totalmente opaca e totalmente transparente. Os materiais filmados pelas câmaras de vigilância acabavam também nas páginas da revista.

A silenciosa revolução biopolítica liderada pela Playboy supunha, além da transformação da pornografia heterossexual na cultura de massas, um questionamento da divisão sobre a qual se fundava a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e da reprodução, a diferença entre a fábrica e o lar e, com ela, a distinção patriarcal entre masculinidade e feminidade. A Playboy respeitou esta diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento de solteiro totalmente conectado às novas tecnologias de comunicação do qual o novo produtor semiótico não precisa de sair, nem para trabalhar nem para fazer sexo – actividades que, além disso, se haviam tornado indiscerníveis. A sua cama giratória era ao mesmo tempo a sua mesa de trabalho, um escritório de direcção, um cenário fotográfico e um lugar de encontros sexuais, além de um cenário de televisão a partir do qual se filmava o famoso programa Playboy after dark. A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre o teletrabalho, assim como a produção imaterial que a gestão da crise do CoVid-19 transformou num dever cidadão. Hefner chamou a este novo produtor social o “trabalhador horizontal”. O vector de inovação social que a Playboy pôs em marcha era a erosão (para não dizer a destruição) da distância entre trabalho e ócio, entre produção e sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e difundida pelos meios de comunicação da revista e da televisão, era totalmente pública, ainda que o playboy não saísse de sua casa ou, inclusive, da sua cama. Nesse sentido, a Playboy colocava também em questão a diferença entre as esferas masculinas e femininas, fazendo do novo operário multimédia um homem doméstico – o que na altura parecia um oxímoro. O biógrafo de Hefner relembra-nos que este isolamento produtivo precisava da ajuda de químicos: Hefner era um grande consumidor de Dexetrina, uma anfetamina que eliminava o cansaço e o sono. De modo que, paradoxalmente, o homem que não saía da sua cama, nunca dormia. A cama como novo centro de operações multimédia era uma célula farmacopornográfica: só poderia funcionar com a pílula, com drogas que mantivessem o nível produtivo em alta e um constante fluxo de códigos semióticos que se haviam tornado no único e verdadeiro alimento do playboy.

Isto parece-vos familiar agora? Será que tudo isto é assim tão estranho às vossas próprias vidas em isolamento? Relembremos agora as declarações do presidente francês Emmanuel Macron: estamos em guerra, não saiam de casa e trabalhem a partir de casa. As medidas biopolíticas de gestão do contágio impostas para fazer frente ao coronavírus fizeram com que cada um de nós se transformasse num trabalhador horizontal mais ou menos playboyiano. O espaço doméstico de qualquer um de nós está hoje em dia dez mil vezes mais apetrechado de tecnologias do que a cama giratória de Hefner em 1968. Os dispositivos de tele-trabalho e tele-controlo estão, agora, nas palmas das nossas mãos.

Em Vigiar e Punir, Michel Foucault analisou as células religiosas de enclausuramento unipessoal como autênticos vectores que serviram de modelo para a passagem das técnicas soberanas e sangrentas de controlo do corpo e da subjectividade anteriores ao século XVIII, às arquitecturas disciplinárias e aos dispositivos de enclausuramento como novas técnicas de gestão da totalidade da população. As arquitecturas disciplinárias foram versões secularizadas das células monásticas nas quais se dá, pela primeira vez, a gestação do indivíduo moderno como alma encerrada num corpo, como um espírito leitor capaz de ler as palavras-de-ordem do Estado. Quando o escritor Tom Wolfe visitou Hefner, disse que ele vivia numa prisão tão suave como o coração de uma alcachofra. Poderíamos dizer que a mansão Playboy e a cama giratória de Hefner, convertidos em objecto de consumo pop, funcionaram durante a guerra fria como espaços de transição nos quais se inventou o novo sujeito prostético, ultra-conectado, e as novas formas de consumo e controlo farmacopornográficas e de bio-vigilância que dominam a sociedade contemporânea. Esta mutação expandiu-se e amplificou-se ainda mais durante a gestão da crise do CoVid-19: as nossas máquinas portáteis de telecomunicação são os nossos novos guardas prisionais e os nossos interiores domésticos converteram-se na prisão soft e ultra-conectada do futuro.

Mutação ou submissão
Mas tudo isto pode ser uma má notícia ou uma grande oportunidade. É justamente por os nossos corpos serem os novos enclaves do biopoder e os nossos apartamentos as novas células de biovigilância que se torna mais urgente que nunca inventar novas estratégias de emancipação cognitiva e de resistência e pôr em marcha novos processos antagonistas. Ao contrário do que se poderia imaginar, o nosso bem-estar não virá da imposição de fronteiras ou da separação, mas de uma nova compreensão da comunidade com todos os seres vivos, de um novo equilíbrio com outros seres vivos do planeta. Precisamos de um parlamento dos corpos planetário, um parlamento definido, não em termos de políticas de identidade nem de nacionalidades, mas um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que vivem no planeta Terra. O acontecimento CoVid-19 e as suas consequências são a chamada para nos libertarmos de uma vez por todas da violência com a qual definimos a nossa imunidade social. A cura e a recuperação não podem ser um simples gesto imunológico negativo de afastamento do social, de encerramento da comunidade. A cura e o cuidado só podem surgir dum processo de transformação política. Tornarmo-nos sãos enquanto sociedade significa inventar uma nova comunidade além das políticas de identidade e da fronteira com a qual, até agora, temos produzido a soberania, mas também além da redução da vida à sua bio-vigilância cibernética. Continuar com vida, mantermo-nos vivos como planeta, face ao vírus, mas também face ao que lhe pode suceder, significa pôr em marcha formas estruturais de cooperação planetária. Assim como o vírus sofre mutações, também nós teremos de nos mutar se queremos resistir à submissão.

É necessário passar de uma mutação forçada a uma mutação deliberada. Devemos reapropriar-nos criticamente das técnicas biopolíticas e dos seus dispositivos farmacopornográficos. Em primeiro lugar, é imperativo mudar a relação dos nossos corpos com as máquinas de biovigilância e de biocontrolo: eles não são simples dispositivos de comunicação. Temos de aprender colectivamente a alterá-los. Mas é também preciso desalienarmo-nos. Os Governos apelam ao isolamento e ao teletrabalho. Nós sabemos que apelam à descolectivização e ao telecontrolo. Utilizemos o tempo e a força do isolamento para estudar as tradições de luta e resistência minoritárias que nos ajudaram a sobreviver até aqui. Desliguemos os telemóveis, desconectemo-nos da Internet. Façamos o grande blackout face aos satélites que nos vigiam e imaginemos juntos na revolução que vem.


Paul B. Preciado
Filósofo e escritor feminista transgénero, tem uma extensa obra por entre temas que passam pela filosofia de género, teoria queer, arquitectura, identidade e pornografia.

Nota da edição
Artigo traduzido e originalmente publicado em português no site Situação

Ficha Técnica
Data de publicação: o9.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos