A
estrutura de metal e vidro, dita “marquise”, que Ronaldo mandou
implantar por cima da sua penthouse, no topo do edifício de 13
andares, em Lisboa, projectado pelos arquitectos José Mateus e Nuno Mateus,
tornou-se imediatamente matéria para discursos jocosos, mas é um assunto muito
sério. Só começa no entanto a ser sério se deslocarmos a questão da riqueza e
do desejo de luxo ostentado por Ronaldo (coisa, aliás, bastante inocente) para
o estetismo — a anestesia da arquitectura — e a exacerbação autoral de quem
desenhou o edifício.
Não
falarei do edifício em si, da sala de cinema, do spa, do hall de
entrada, das piscinas, dos puxadores das portas, dos corrimãos, do primor de
todos os pormenores, dos quais José Mateus falou com o orgulho de mestre de uma
bela obra que recita aos que têm o privilégio de aceder ao interior: “Vejam
como sou belo e requintado”. Exclusivo for the few. O problema
começa aqui e, como é óbvio, não se limita à Rua Castilho, 203, nem ao atelier
de arquitectos ARX. Até seria injusto tomá-lo como exemplo se não fossem as
palavras cândidas dos próprios arquitectos, para quem o pecado, que dantes
morava ao lado, se veio instalar mesmo por cima. Uma “conspurcação ignóbil da
nossa arquitectura”, disseram eles. Certamente com razão.
Mas
há uma outra razão que devia estar acima dessa. E essa serve não para
interpelar os donos dos apartamentos, mas os arquitectos, urbanistas,
vereadores e presidentes que nos espoliam a cidade que é de todos nós. Ouvindo
as reacções de José Mateus à vilipendiada “marquise” que veio
“atropelar” a “cultura” e as “autorias”, até parece ele que vive num empíreo e
que só tem de responder perante quem lhe encomendou a obra e em nome de uma
razão estética, de uma abstracta beleza. Ora, embora isso seja uma regra a que
já estamos habituados, há momentos como este em que apetece dizer que essa
regra é um atropelo ignóbil ao nosso direito à cidade. Os arquitectos daquele edifício
sabem seguramente o que significa a verticalização da arquitectura, a
transformação do skyline da cidade para oferecer a uns poucos
“um conceito único de exclusividade” (como se diz no site do
edifício). Entre essas exclusividades, está a paisagem, da qual este e muitos
outros edifícios como este se apoderam.
Se
lermos a descrição do edifício, percebemos que ele foi concebido segundo o
modelo urbano a que os urbanistas americanos chamam gated comunities,
isto é, comunidades fechadas, completamente separadas da cidade, sem alimentar
a vida que lhe corre nas veias, de onde esta se oferece apenas como uma vista
panorâmica. As gated communities que se formam nos bairros
mais ricos das cidades são “privatopias”, isto é, espaços utópicos privados,
para utilizarmos um conceito introduzido por um estudioso americano de política
urbana, Evan McKenzie. São atentados à cidade. Os arquitectos têm todo o
direito de reivindicar a sua liberdade autoral, mas na medida em que conformam
a nossa cidade e determinam o seu destino, eles não podem sentir que só têm de
responder à razão estética e à exigência dos clientes que de um modo geral não
coincide com a nosso direito a uma cidade habitável e mais produtora de uma
cultura que animou o “espírito” das grandes cidades. O “atropelo estético”
perpetrado no topo do belo edifício desenhado por José e Nuno Mateus é um crime
menoríssimo quando comparado com a arquitectura anestesiante que desconhece
completamente a responsabilidade profissional de um arquitecto, a questão ética
que lhe é inerente. Este vínculo não é de agora, vem de Vitrúvio. A bienal de
arquitectura de Veneza, no ano 2000, tinha como título Less Aesthetics,
More Ethics. Esta questão da ética da arquitectura não é certamente dos
temas mais frequentes e sempre que surge provoca polémica. O grande historiador
de arte italiano Salvatore Settis, que chegou a ocupar um cargo oficial
relacionado com o património, defendeu há alguns anos que se devia consagrar na
Constituição dos países o direito à paisagem. E, por entender que os
arquitectos deviam estar deontologicamente obrigados a defendê-la, propôs, em
jeito de provocação (bastante polémica, aliás) que eles deveriam fazer um
“juramento de Vitrúvio”, por analogia com o “juramente de Hipócrates” a que os
médicos estão obrigados. Tal como um médico não pode matar o doente, o
arquitecto não deve matar a paisagem nem deve contribuir para saquear a cidade.
Mas isto, não percebem os autores do “Castilho 203”.
António Guerreiro
Imagem
Imagem tridimensional do edifício Castilho 203, da autoria de ARX
Arquitectos, que pode ser encontrada no site
dos arquitectos na divulgação do edifício.
Nota de edição
O texto de António Guerreiro foi originalmente publicado no Jornal Público, na edição de 4 de
Junho, no caderno Ípsilon.
Ficha Técnica
Data de publicação: 08.06.2021
Edição #31 •
Primavera 2021 •