Depois
de termos ficado a saber, na semana passada, que o verdadeiro elemento que
unifica a classe dos arquitectos é uma «marquise», o texto «Arquitectura e
crime» de António Guerreiro (publicado no jornal Público e agora no Jornal Punkto) apresenta-se como uma reflexão bastante mais pertinente.
O facto de a perspectiva mais lúcida acerca deste caso vir de fora, não é
estranho nem é surpreendente. Também não são surpreendentes os comentários de
vários arquitectos (lidos aqui e ali) ironizando o texto ou mesmo o autor,
acusando-o de nada saber de arquitectura. Em todo o caso, isto apenas demonstra
que a arquitectura, no seu «complexo disciplinar-profissional», encontra cada
vez menos condições para reflectir sobre si própria.
A
generalidade da classe profissional limita-se a seguir os postulados e
princípios da disciplina em puro automatismo, sem reconhecer que se, por um
lado estes, o «absolvem» de qualquer participação-compromisso na discussão crítica dos processos (políticos, económicos e sociais) que determinam a função da
própria arquitectura na produção da cidade capitalista, por outro lado, estes
postulados não fazem mais do que reduzir a arquitectura a pouco mais que nada.
A marquise é, ironicamente, este «pouco mais que nada», sobre o qual o arquitecto se dá ao direito de exercer todo o seu aparato ético-crítico, autoral-poético, na solidão de si, na solidão de uma classe que funda o seu espaço disciplinar-profissional numa total abstracção da realidade social em que exerce. Dito de outro modo, de uma realidade da qual não só não sabe nada, como se recusa a saber, porque esse saber implica precisamente pôr em causa os postulados que absolvem o arquitecto e permitem que a máquina da arquitectura possa continuar a laborar em paz, em nome do «progresso», da «reabilitação urbana», da «poesia da arquitectura» ou da sua «autonomia».
Não
é trágico que José Mateus venha a terreno reivindicar com comoção o seu
estatuto de autor junto da sociedade, o que é trágico é que nesse movimento ele
se descubra a si mesmo sozinho. Ele fala, mas na verdade, já lá não está
ninguém para o ouvir. Depois de uma década de transformação urbana violenta em
Lisboa, crise de habitação e gentrificação, financeirização absoluta da
propriedade, aprofundamento das desigualdades urbanas e sociais, dissolução do
Estado e das instituições públicas em gerir a expansão urbana, o cavalo de
batalha que a classe encontrou para si é uma «marquise» num edifício de luxo,
este sim, signo e elemento fundamental da reprodução das desigualdades sociais
e urbanas da cidade de Lisboa e da realidade funcional de uma arquitectura que
hoje, mais do que nunca, está reduzida à condição daquilo que Pedro Vieira de
Almeida já chamava os “técnicos de luxo”.
A
marquise transformou-se, por isso, em todo um monumento onde se consubstancia a
alienação e a tragédia de uma classe que vive o seu próprio exílio naquela
candura que só às crianças é dada a possibilidade de viver e, sobretudo, e por
isso mesmo, uma classe que já só vive, já só pode viver, apenas para si
própria.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Imagem tridimensional do Edifício
Castilho 203, disponível no site dos ARX
Ficha Técnica
Data de publicação: 09.06. 2021
Edição #31 • Primavera 2021 •