Enquanto o bastonário da Ordem dos
Advogados investe escandalizado contra o vil atentado aos direitos humanos que
constituiria a requisição civil das propriedades desse resort de pobres
almas desprotegidas que dá pelo nome de Zmar, começamos finalmente a ter uma
ideia mais clara daquilo que são as reais condições em que a população imigrante
do concelho de Odemira (e não só) vive e trabalha. O Bastonário não se indigna com nada
disso, aquilo que o incomoda é o atentado aos “direitos humanos dos proprietários”,
esses, sim, vilipendiados, mais uma vez, pelo Estado-todo-poderoso. É caricato,
mas é revelador do nível de demagogia a que várias instituições chegaram, mas
isso seria assunto para outro artigo. Por outro lado, as reportagens televisivas,
passado o ímpeto inicial do “chega ao migrante”, começaram a perceber
que tinham aqui potencial de consternação nacional, nem que fosse, no caso dos media
liberais, para serem logo os primeiros a lavar mais branco o assunto em causa.
O que é certo é que a actual situação permaneceria na invisibilidade (mais uma
vez) não fosse a Covid-19. Mas, na verdade, foi sempre assim: a insalubridade
dos bairros operários (ao longo do século XIX e XX) só se tornou um problema
quando alguns iluminados começaram a perceber que estes eram focos não apenas
de imoralidade e deboche, mas de epidemias que ameaçavam a sobrevivência da
própria burguesia e das suas cidades. Ora, a burguesia, conhecida pelas suas
capacidades oculares ciclópicas no que toca a farejar ao longe o negócio,
mostra-se confortavelmente míope quando se trata de ver o mundo à sua volta,
talvez por isso tenha inventado com tanta astúcia essa corrente filosófica que
dá pelo nome de idealismo.
Mas é preciso dizê-lo, não basta a
habitual consternação em torno dos direitos humanos, aquilo que pelo menos o
digníssimo Menezes Leitão tem a bondade de nos mostrar é que os direitos
humanos são mesmo só para proprietários e cidadãos dignos desse nome. Odemira
não é simplesmente uma questão humanitária ou moral, mas é o lugar de um
conjunto específico de políticas postas em prática por governos e instituições
nacionais e europeias: é o lugar específico da desregulação do trabalho lançada
pelo PSD-CDS durante os anos da troika (como a solução milagrosa de todos os
nossos males), é o lugar específico da legislação fiscal e económica que
procura chamar o capital estrangeiro a qualquer custo, é o lugar específico do
cinismo político do Partido Socialista que se recusa a operar qualquer revisão
expressiva dessa legislação laboral, é o lugar específico das actuais políticas
económicas capturadas pela lógica da dívida externa e do investimento estrangeiro que o governo habilmente transforma no discurso do desígnio nacional da “modernização verde" e da "confiança nos portugueses".
Odemira é, por isso, o lugar específico
daquele modelo político e económico que leva o capital ao mais alto nível de
liberdade e desterritorialização, o modelo “sem complexos de culpa”, “atrevido”
e “inovador” da Iniciativa Liberal: puro capital, puro trabalho, pura exploração,
em que o Estado aparece reduzido à sua função mínima de posto avançado dos
negócios dessa “iniciativa privada”, capturado por redes de máfia com quem
colabora deliberadamente e com as quais se deixa lucrar em nome do PIB, e, por
fim, pelas multinacionais, cujo modelo latente de produção de trabalho, de vida
e de território, aparece em toda a sua grandeza enquanto “campo”. Não o
campo dito “rural”, mas o campo como “nomos” (seguindo aqui o filósofo italiano
Giorgio Agamben), como figura limite e, simultaneamente, ordinária, do espaço
biopolítico do capital, o “campo de concentração”: o campo de concentração (e acumulação)
do trabalho, o campo de concentração (e acumulação) do capital, o campo onde se
materializa a redução da vida à pura sobrevivência.
Odemira é o lugar de uma produção
inexaurível, sem tréguas, da natureza, do território, mas também da própria
vida. Odemira é o lugar do capital, daquele capital que nos asseguram que já
não existe e que nunca existiu. Odemira é o lugar onde o trabalho sem
regulação, livre de todas as restrições e empecilhos (o «Arbeit macht frei»
dos Nazis), se expõe como aquilo para o qual não cessa de tender: a escravatura
– sempre dissimulada pelos aparatos legislativos da burguesia (a começar pelos
direitos humanos). E, no entanto, se Odemira é hoje o lugar mais globalizado de
Portugal não será apenas porque é o lugar deste intenso movimento migratório,
mas porque é o lugar que reflecte a forma grotesca que o capital sempre tomou e
tem vindo a tomar, sobretudo nos países (chamados) “em vias de desenvolvimento”,
em que as condições de vida e trabalho se expõem de forma dramática (por
exemplo, na tragédia gigantesca que atravessa hoje a Índia): países que são e
foram o segredo da riqueza da Europa; países atravessados por séculos de
políticas coloniais devastadoras, mobilizadas por países ocidentais e multinacionais. No entanto, para a comunicação social, o problema é
mesmo a Venezuela…
Talvez seja tão exasperante, por isso
mesmo, por entre a propaganda auto-elogiosa ocidental e a sua autoridade tão
moral(ista), observar como estes trabalhadores imigrantes, em pleno território
europeu, são triplamente explorados: pelas empresas agrícolas – que pagam mal e
não fazem perguntas acerca dos modelos e detalhes da sua contratação; pelos
intermediários e senhorios – que lucram do trabalho dos imigrantes, e por, fim,
pelas máfias – que fazem do trabalho imigrante o pretexto de uma extorsão,
fazendo do “contrato de trabalho” uma verdadeira mercadoria, um bem de luxo,
cuja aquisição custa caro (8 mil euros, denunciava um imigrante), porque se
trata, na verdade, de um passaporte para a Europa, um visto gold, que
mobiliza um gigantesco negócio que faz da Europa, ela própria, uma mercadoria,
vendida pelas máfias e, por fim, apoiada pelo mesmo capital que já tinha
reduzido à miséria todos esses países e comunidades depois de séculos de
colonialismo
Odemira é, portanto, o lugar da
política, mas de uma política que tenta a todo o custo permanecer na
invisibilidade, porque ela reflecte não apenas a totalidade de um globo, mas
todo um modo de funcionamento de um sistema que não só produz riqueza a partir
da exploração intensiva e extensiva do trabalho, como se apoia cada vez mais numa
rede de máfias e oligarquias, para assegurar a competitividade internacional das
economias e as demandas de crescimento infinito. O sonho da Europa produz
monstros.
Odemira é a concretização material e
política desse lugar que a Iniciativa Liberal vende nos seus discursos sobre a
liberdade da iniciativa privada, sem Estado e sem o seu peso regulatório que
tanto impede o esforço heróico desses empresários guiados pelo espírito da
Divina Providência, pelo Bem Comum e pelo Progresso da Humanidade. O mito da
“mão invisível” do Mercado já foi suficientemente rebatido pela própria
história, bem como os reptos por um capitalismo mais ético, mais verde, mais
amigo. E, no entanto, a história não pára de se repetir, como tragédia, como
farsa, como catástrofe. Ao mesmo tempo, a cultura política nacional alimenta-se
de todos estes mitos tão gastos como inquestionados, com todo o optimismo
pueril como se tivessem sido descobertos ainda ontem. Por outro lado, a crise
institucional do Estado social às mãos do neoliberalismo significa a capacidade
cada vez menor de intervir na regulação e mediação do capital e do trabalho: o
Estado social não foi apenas um mecanismo de redistribuição económica, mas foi
um mecanismo de domesticação dos próprios processos de exploração do capital; e
este não resultou da consciência benemérita da burguesia (isso chama-se
caridade), mas resultou de conflitos violentos levados a cabo pela classe
operária organizada em partido, em sindicatos, em movimentos sociais, em suma,
resultou de uma pressão permanente do trabalho sobre o capital, mas também, diga-se, do peso histórico que constituiu a catástrofe da Segunda Guerra
Mundial (agora já tão esquecida).
Talvez, e por tudo isto, o aspecto mais inquietante esteja no modo como cada um destes imigrantes (trazido subitamente à grande arena da visibilidade efémera) revela a sua intrínseca solidão. Não se trata aqui de uma solidão existencial, nem mesmo de uma solidão social (embora fosse lógico notar a ausência de vínculos sociais inerente a esse tipo de trabalho), trata-se, sim, daquilo que se podia chamar uma solidão política: a solidão daqueles que foram expropriados de toda a forma política, de todo o corpo político, de toda a experiência política. Mas esta solidão não é apenas a ausência de direitos legais, é a solidão daqueles que foram expropriados da sua própria potência colectiva enquanto sujeitos políticos, ou melhor, enquanto classe. E é essa solidão, a expropriação de todo e qualquer horizonte de acção e organização política, que impende sobre eles, que impende sobre nós, com toda a sua violência, como passado e presente, como futuro cada vez mais possível, perante um inimigo que, como escrevia Walter Benjamin, nunca deixou de vencer. As condições de alojamento insalubres são certamente indignas, mas elas são apenas a expressão mais evidente dessa indigna condição impolítica a que o capital não cessa de submeter todas as suas formas de vida, ao convertê-las em pura função da sua acumulação sans rêve e sans merci.
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Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Imagem de uma reportagem da RTP
sobre os trabalhadores migrantes em Odemira.
Ficha Técnica
Data de publicação: 05.05. 2021
Edição #31 • Primavera 2021 •