Odemira: lugar do século vinte e um • Pedro Levi Bismarck




Enquanto o bastonário da Ordem dos Advogados investe escandalizado contra o vil atentado aos direitos humanos que constituiria a requisição civil das propriedades desse resort de pobres almas desprotegidas que dá pelo nome de Zmar, começamos finalmente a ter uma ideia mais clara daquilo que são as reais condições em que a população imigrante do concelho de Odemira (e não só) vive e trabalha. O Bastonário não se indigna com nada disso, aquilo que o incomoda é o atentado aos “direitos humanos dos proprietários”, esses, sim, vilipendiados, mais uma vez, pelo Estado-todo-poderoso. É caricato, mas é revelador do nível de demagogia a que várias instituições chegaram, mas isso seria assunto para outro artigo. Por outro lado, as reportagens televisivas, passado o ímpeto inicial do “chega ao migrante”, começaram a perceber que tinham aqui potencial de consternação nacional, nem que fosse, no caso dos media liberais, para serem logo os primeiros a lavar mais branco o assunto em causa. O que é certo é que a actual situação permaneceria na invisibilidade (mais uma vez) não fosse a Covid-19. Mas, na verdade, foi sempre assim: a insalubridade dos bairros operários (ao longo do século XIX e XX) só se tornou um problema quando alguns iluminados começaram a perceber que estes eram focos não apenas de imoralidade e deboche, mas de epidemias que ameaçavam a sobrevivência da própria burguesia e das suas cidades. Ora, a burguesia, conhecida pelas suas capacidades oculares ciclópicas no que toca a farejar ao longe o negócio, mostra-se confortavelmente míope quando se trata de ver o mundo à sua volta, talvez por isso tenha inventado com tanta astúcia essa corrente filosófica que dá pelo nome de idealismo.

Mas é preciso dizê-lo, não basta a habitual consternação em torno dos direitos humanos, aquilo que pelo menos o digníssimo Menezes Leitão tem a bondade de nos mostrar é que os direitos humanos são mesmo só para proprietários e cidadãos dignos desse nome. Odemira não é simplesmente uma questão humanitária ou moral, mas é o lugar de um conjunto específico de políticas postas em prática por governos e instituições nacionais e europeias: é o lugar específico da desregulação do trabalho lançada pelo PSD-CDS durante os anos da troika (como a solução milagrosa de todos os nossos males), é o lugar específico da legislação fiscal e económica que procura chamar o capital estrangeiro a qualquer custo, é o lugar específico do cinismo político do Partido Socialista que se recusa a operar qualquer revisão expressiva dessa legislação laboral, é o lugar específico das actuais políticas económicas capturadas pela lógica da dívida externa e do investimento estrangeiro que o governo habilmente transforma no discurso do desígnio nacional da “modernização verde" e da "confiança nos portugueses".

Odemira é, por isso, o lugar específico daquele modelo político e económico que leva o capital ao mais alto nível de liberdade e desterritorialização, o modelo “sem complexos de culpa”, “atrevido” e “inovador” da Iniciativa Liberal: puro capital, puro trabalho, pura exploração, em que o Estado aparece reduzido à sua função mínima de posto avançado dos negócios dessa “iniciativa privada”, capturado por redes de máfia com quem colabora deliberadamente e com as quais se deixa lucrar em nome do PIB, e, por fim, pelas multinacionais, cujo modelo latente de produção de trabalho, de vida e de território, aparece em toda a sua grandeza enquanto “campo”. Não o campo dito “rural”, mas o campo como “nomos” (seguindo aqui o filósofo italiano Giorgio Agamben), como figura limite e, simultaneamente, ordinária, do espaço biopolítico do capital, o “campo de concentração”: o campo de concentração (e acumulação) do trabalho, o campo de concentração (e acumulação) do capital, o campo onde se materializa a redução da vida à pura sobrevivência.

Odemira é o lugar de uma produção inexaurível, sem tréguas, da natureza, do território, mas também da própria vida. Odemira é o lugar do capital, daquele capital que nos asseguram que já não existe e que nunca existiu. Odemira é o lugar onde o trabalho sem regulação, livre de todas as restrições e empecilhos (o «Arbeit macht frei» dos Nazis), se expõe como aquilo para o qual não cessa de tender: a escravatura – sempre dissimulada pelos aparatos legislativos da burguesia (a começar pelos direitos humanos). E, no entanto, se Odemira é hoje o lugar mais globalizado de Portugal não será apenas porque é o lugar deste intenso movimento migratório, mas porque é o lugar que reflecte a forma grotesca que o capital sempre tomou e tem vindo a tomar, sobretudo nos países (chamados) “em vias de desenvolvimento”, em que as condições de vida e trabalho se expõem de forma dramática (por exemplo, na tragédia gigantesca que atravessa hoje a Índia): países que são e foram o segredo da riqueza da Europa; países atravessados por séculos de políticas coloniais devastadoras, mobilizadas por países ocidentais e multinacionais. No entanto, para a comunicação social, o problema é mesmo a Venezuela…

Talvez seja tão exasperante, por isso mesmo, por entre a propaganda auto-elogiosa ocidental e a sua autoridade tão moral(ista), observar como estes trabalhadores imigrantes, em pleno território europeu, são triplamente explorados: pelas empresas agrícolas – que pagam mal e não fazem perguntas acerca dos modelos e detalhes da sua contratação; pelos intermediários e senhorios – que lucram do trabalho dos imigrantes, e por, fim, pelas máfias – que fazem do trabalho imigrante o pretexto de uma extorsão, fazendo do “contrato de trabalho” uma verdadeira mercadoria, um bem de luxo, cuja aquisição custa caro (8 mil euros, denunciava um imigrante), porque se trata, na verdade, de um passaporte para a Europa, um visto gold, que mobiliza um gigantesco negócio que faz da Europa, ela própria, uma mercadoria, vendida pelas máfias e, por fim, apoiada pelo mesmo capital que já tinha reduzido à miséria todos esses países e comunidades depois de séculos de colonialismo

Odemira é, portanto, o lugar da política, mas de uma política que tenta a todo o custo permanecer na invisibilidade, porque ela reflecte não apenas a totalidade de um globo, mas todo um modo de funcionamento de um sistema que não só produz riqueza a partir da exploração intensiva e extensiva do trabalho, como se apoia cada vez mais numa rede de máfias e oligarquias, para assegurar a competitividade internacional das economias e as demandas de crescimento infinito. O sonho da Europa produz monstros.

Odemira é a concretização material e política desse lugar que a Iniciativa Liberal vende nos seus discursos sobre a liberdade da iniciativa privada, sem Estado e sem o seu peso regulatório que tanto impede o esforço heróico desses empresários guiados pelo espírito da Divina Providência, pelo Bem Comum e pelo Progresso da Humanidade. O mito da “mão invisível” do Mercado já foi suficientemente rebatido pela própria história, bem como os reptos por um capitalismo mais ético, mais verde, mais amigo. E, no entanto, a história não pára de se repetir, como tragédia, como farsa, como catástrofe. Ao mesmo tempo, a cultura política nacional alimenta-se de todos estes mitos tão gastos como inquestionados, com todo o optimismo pueril como se tivessem sido descobertos ainda ontem. Por outro lado, a crise institucional do Estado social às mãos do neoliberalismo significa a capacidade cada vez menor de intervir na regulação e mediação do capital e do trabalho: o Estado social não foi apenas um mecanismo de redistribuição económica, mas foi um mecanismo de domesticação dos próprios processos de exploração do capital; e este não resultou da consciência benemérita da burguesia (isso chama-se caridade), mas resultou de conflitos violentos levados a cabo pela classe operária organizada em partido, em sindicatos, em movimentos sociais, em suma, resultou de uma pressão permanente do trabalho sobre o capital, mas também, diga-se, do peso histórico que constituiu a catástrofe da Segunda Guerra Mundial (agora já tão esquecida).

Talvez, e por tudo isto, o aspecto mais inquietante esteja no modo como cada um destes imigrantes (trazido subitamente à grande arena da visibilidade efémera) revela a sua intrínseca solidão. Não se trata aqui de uma solidão existencial, nem mesmo de uma solidão social (embora fosse lógico notar a ausência de vínculos sociais inerente a esse tipo de trabalho), trata-se, sim, daquilo que se podia chamar uma solidão política: a solidão daqueles que foram expropriados de toda a forma política, de todo o corpo político, de toda a experiência política. Mas esta solidão não é apenas a ausência de direitos legais, é a solidão daqueles que foram expropriados da sua própria potência colectiva enquanto sujeitos políticos, ou melhor, enquanto classe. E é essa solidão, a expropriação de todo e qualquer horizonte de acção e organização política, que impende sobre eles, que impende sobre nós, com toda a sua violência, como passado e presente, como futuro cada vez mais possível, perante um inimigo que, como escrevia Walter Benjamin, nunca deixou de vencer. As condições de alojamento insalubres são certamente indignas, mas elas são apenas a expressão mais evidente dessa indigna condição impolítica a que o capital não cessa de submeter todas as suas formas de vida, ao convertê-las em pura função da sua acumulação sans rêve e sans merci.

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Imagem de uma reportagem da RTP sobre os trabalhadores migrantes em Odemira.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 05.05. 2021

Edição #31 • Primavera 2021 •