Terra prometida: a habitação da mercantilização à cooperação (1) • Aureli, Ma, Michelotto, Tattara & Toivonen



 

O pecado original

Quando se endereçam as crises contemporâneas da habitação, é comum os arquitectos, os urbanistas e o público em geral referirem-se a uma escassez de habitação acessível e de habitação social. O que está ausente nesta observação é a própria origem desta crise, que coincide com o longo e controverso processo de privatização do solo. Muito sucintamente: não existe habitação acessível sem acesso ao solo.

A privatização do solo não é nada de novo: é e sempre foi um roubo legalizado, perpetrado pelos senhorios com o consentimento do estado. O furto legalizado do solo começou com o surgimento do estado-nação (especificamente a Inglaterra) entre os séculos XV e XVIII. [1] Durante este período, os camponeses que viviam em áreas rurais de Inglaterra foram expropriados através de um processo de privatização ordenado pelos proprietários fundiários, que usaram o estado para criar uma estrutura legal que revogou os direitos tradicionais do campesinato. Isto tornou-se possível através de um processo gradual de supressão dos baldios comunitários [common field village], nos quais a propriedade do solo era organizada na forma de talhões [selions] ou parcelas dispersas de terra que os agricultores cultivavam individual e cooperativamente. [2]

1. Marx referiu-se ao roubo legal de terrenos pelos senhorios como a “acumulação primitiva de capital”. Cf. Karl Marx, “Part-Eight:  So-Called Primitive Accumulation”, Capital: A Critique of Political Economy, Volume One, trad. Ben Fowkes, Londres, Penguin, 1992, pp. 873-942.

2. Cf. Gary Fields, Enclosure: Palestinian Landscapes in a Historical Mirror, Los Angeles: University of California Press, 2017, p. 33.

A base deste sistema colectivo era um conjunto informal de direitos consuetudinários, que derivavam de práticas consolidadas relacionadas com a ocupação e o uso do solo. Contra esses direitos costumeiros, os senhorios invocaram títulos individuais de propriedade. Estes títulos, garantidos pelo estado, permitiram-lhes agregar grandes parcelas de terras como propriedades privadas suas. Este processo de privatização foi justificado com discursos sobre melhorias e eficiência: para os senhorios, apenas um terreno que fosse detido por um só proprietário poderia ser facilmente administrado, de modo a aumentar a produção. [3]

3. Ibid., pp. 115-116.

Uma consequência crucial da transformação do solo em propriedade privada foi não só a possibilidade de o proprietário vender o solo como se se tratasse de qualquer outra mercadoria, mas também a de usá-lo como garantia para empréstimos financeiros. [4] Ainda hoje o empréstimo de dinheiro com hipoteca de propriedade imobiliária é a maior fonte de crédito e de criação de dinheiro. [5] Para os proprietários, a detenção de terrenos através de títulos de propriedade não era simplesmente uma forma de poder extrair mais excedentes da produção agrícola, mas também uma forma de aumentar o capital pelo uso do solo como activo financeiro.

4. Cf. Josh Ryan-Collins, Toby Lloyd & Laurie Macfarlane, Rethinking the Economics of Land and Housing, Londres, ZED, 2006, p.30.

5. Ibid., p. 30.

Desde a segunda metade do século XIX, em países industrializados como a Inglaterra, apenas uma fracção relativamente pequena da população (20%) trabalha na produção agrícola, sendo que a restante população trabalha na produção industrial e vive em cidades. [6] Isto implicou um aumento drástico do número de habitantes nas cidades, que proporcionou aos senhorios uma oportunidade para especular com o solo para a habitação. Contra este processo de especulação, no início do século XX, vários estados europeus, como o Reino Unido, a Suécia e a Holanda, iniciaram compras massivas de terrenos de forma a apoiar os munícipios a construir habitação social.

6. Ibid., p.25.

A habitação pública ganhou impulso no pós-guerra, quando a oportunidade (e necessidade) para a reconstrução permitiu que muitos países europeus garantissem terrenos públicos em número suficiente para construir uma quantidade de habitação pública sem precedentes. No entanto, os anos em que o estado mais construiu foram também aqueles em que o mercado fez o mesmo. [7]

7. Ibid., p. 25.

No auge do Estado-providência, o objectivo político tácito de muitos estados democratas liberais na Europa foi o de construir uma “democracia de proprietários”. Mesmo os projectos de habitação social, com as suas unidades de habitação rigidamente definidas e modeladas em torno da família nuclear, instruíram os habitantes nas virtudes de um espaço doméstico privado. Eventualmente, a queda do Estado social nos anos 80 impulsionaria ainda mais a privatização da habitação social, comprovando que o Estado enquanto senhorio “benevolente” que zela pelo interesse público tinha sido apenas uma excepção na história da propriedade do solo

 


A Habitação como Activo

Ainda que os direitos de propriedade sejam hoje tomados como garantidos, o seu estatuto internacionalmente incondicional é um desenvolvimento relativamente recente. No final dos anos 40, sob a pressão de lutas sociais emancipatórias que floresciam tanto na Europa como nos Estados Unidos, capitalistas e governantes procuraram, de modo idêntico, medidas de protecção dos direitos do capital privado. O mecanismo da aquisição de casa própria foi central ao projecto de expansão da influência do capital e ao início da financeirização económica.

Ainda que possamos pensar que “somos donos” da nossa casa, a realidade é que somos donos de um crédito hipotecário. O crédito, mais do que um instrumento de endividamento, é um meio pelo qual a habitação se encaixa em fluxos globais de capital financeiro. “[Como] parte do aprofundamento sistémico de relações capitalistas corrente”, escreve Saskia Sassen, “a financeirização de hipotecas para famílias de rendimento modesto aponta à construção de um novo circuito para a alta finança, em benefício dos investidores e em total desconsideração para com os proprietários envolvidos”. [8]

8. Saskia Sassen, “Expanding the Terrain for Global Capital: When Local Housing Becomes na Electronic Instrument”, in Manuel B. Aalbers (ed.), Subprime Cities: The Political Economy of Mortgage Markets, Hoboken, Blackwell, 2012, p.78.

As economias dos principais países ocidentais não são hoje construídas com base na produção industrial, mas no crescimento dos sectores FIRE (Finanças, Seguros e Imobiliária [Finance, Insurance, and Real Estate]). Através de instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados, a habitação é introduzida na economia muito para além da mera troca de mercadorias, naquilo que Ivan Ascher designa de sociedade portfólio de bens securitizados. [9]

9. Cf. Ivan Ascher, Portfolio Society: On the Capitalist Mode of Prediction, Nova Iorque, Zone Books, 2016.

 Se a política do “Direito à Compra” [“Right to Buy”] de Thatcher serviu como a política emblemática da propriedade neoliberal, foi talvez a sua homóloga americana de 1970, a Federal Home Loan Mortgage (abreviada de Freddie Mac) que trouxe consequências mais impactantes. A Freddie Mac foi concebida para “securitizar” hipotecas ao transformá-las em activos financeiros que pudessem ser trocados no mercado. Esta política expandiu significativamente o conjunto de credores dispostos a investir em créditos hipotecários, já que a Freddie Mac conseguia manter essas hipotecas até ao seu vencimento, caso nenhum comprador fosse encontrado. [10] Os investidores poderiam então comprar estes contratos garantidos por hipotecas confiantes que, caso mudassem de ideias ou as circunstâncias se alterassem, poderiam sempre encontrar um comprador para os seus bens. Os contratos garantidos por hipotecas provaram-se extremamente atractivos, especialmente para investidores institucionais, como fundos de pensão que necessitassem de cumprir rigorosas exigências de risco. “Toda a gente” paga a sua hipoteca e, no caso improvável de não o fazerem, o bem imobiliário em questão poderia ser executado, recuperando o valor do investimento inicial.

10. Ibid., p. 74.

Através de incentivos fiscais em juros hipotecários, subsídios de renda e garantias estatais, a detenção de propriedade viria a tornar-se o pilar da política neoliberal, possibilitada pelo aumento da desregulação e pela financeirização da economia. A aquisição de casa própria, na sua condição neoliberal, não vinculava apenas uma habitação a alguém com a sorte de conseguir subir os degraus da pirâmide da propriedade, como também estabelecia essa habitação enquanto activo numa rede global de fluxos de capital. Escrevendo em 2017, o membro-especial do grupo de trabalho da habitação da ONU divulgou um relatório sobre a financeirização da habitação, afirmando que: “A habitação está no centro de uma transformação estrutural histórica no investimento global e nas economias do mundo industrializado, com consequências profundas para aqueles que necessitam de habitação adequada.” [11] A crise aguda que a habitação enfrenta hoje em todo o mundo não é apenas o resultado de uns poucos investidores especulativos que se aproveitam dos outros, mas é também uma condição sistémica, que ancorou a valorização dos bens imobiliários à própria fundação das nossas economias.

11. Assembleia Geral das Nações Unidas, “Resolution 34/51, Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to adequate standard of living and on the right to non-discrimination in this context”, 18 de Janeiro de 2017, in https://undocs.org/A/HRC/34/51.


 

Contragolpe 1: A Paisagem das Cooperativas de Habitação

Onde os estados e os mercados falharam em garantir habitação, as iniciativas da sociedade civil podem provar-se mais eficazes. Iniciativas como as cooperativas de habitação representam uma alternativa à aquisição de casa particular ao impor limitações no valor especulativo da habitação. Particularmente, em formas como a Limited Equity Housing Cooperative (LEHC) [Cooperativa de Habitação de Capital Limitado], onde os residentes não detêm as suas habitações, directamente, mas antes uma percentagem da sociedade que detém o complexo habitacional em que estes habitam. As LEHCs diferem de outros modelos cooperativos, porque o preço das acções de aquisição é determinado de antemão pelos próprios membros das associações e, portanto, não é influenciado pelas flutuações no mercado imobiliário. Por exemplo, numa Zero Equity Housing Cooperative, um tipo de LEHC, caso os residentes saiam apenas poderão embolsar a soma do valor que pagaram inicialmente.

As LEHCs estavam já presentes na América desde o final do século XIX, como empreendimentos de luxo chamados Home Clubs, mas o seu âmbito evoluiu ao longo do tempo até se tornar política e socialmente mais progressivo. [12] Por forma a assegurar a estabilidade dos estatutos empresariais e a prevenir que sejam alterados para benefício de alguns residentes em detrimento de outros, geralmente as LEHCs colaboram com agências governamentais ou fundos de investimento para o seu financiamento e para estabilizar condições contratuais.

12. Cf. James DeFilippis, Unmaking Goliath: Community Control in the Face of Global Capital, Nova Iorque, Routledge, 2004.

Um outro exemplo é o Mietshäuser Syndikat, ou Sindicato de Arrendamento alemão. Fundado em 1992, o seu objectivo é o de apropriar e reprogramar as formas existentes de aquisição capitalista, através da implementação de uma propriedade colectiva de bens comuns. [13] O esquema de aquisição de cada projecto do sindicato é dividido em duas acções principais de 51% e 49%, detidas pelos habitantes que formam a cooperativa de arrendatários e a corporação sindical, respectivamente. Desta forma, os residentes mantêm autonomia sobre o processo de tomada de decisão em relação ao desenvolvimento e administração da propriedade, enquanto que a participação do sindicato previne tentativas de exploração ou privatização da mesma. O solo e as instalações são, portanto, envolvidos numa rede de controlo social e assegurados a longo prazo, como entidades autogeridas. [14] Outro importante exemplo contemporâneo da retirada da habitação do mercado e da sua reivindicação enquanto direito social é a Community Land Trust (CLT). Introduzido pela primeira vez nos Estados Unidos por Robert Swann, em 1969, o modelo CLT foi concebido como uma forma de travar a especulação de terrenos agrícolas. Desde os anos 80, as CLTs foram também implementadas em áreas urbanas com o objectivo de proteger processos de alocação, continuidade e troca. [15]

13. Dogma and Realism Working Group, Communal Villa: Production and Reproduction in Artist’s Housing, Leipzig, Spector Books, 2015, pp. 82-83.

14. Ibid.

15. Cf. Robert S. Swann [et al.], The Community Land Trust: A Guide to a New Model for Land Tenure in America, Cambridge, Center for Community Economic Development, 1972.

O modelo CLT baseia-se na separação da propriedade do solo da propriedade da construção. O solo é detido pela CLT perpetuamente prevenindo, portanto, a sua especulação, enquanto que as unidades de habitação podem ser compradas com contratos de arrendamento do solo de longa duração. Actualmente, o modelo da CLT está a tornar-se mais e mais comum nas cidades ocidentais. Representa uma das poucas alternativas viáveis para a organização de terrenos públicos, sem interferência de investidores privados.

Em muitos países europeus, como a Bélgica, este modelo de aquisição do solo está ainda na sua fase inicial, largamente suportado por fundos públicos e, portanto, serve sobretudo as populações de baixo rendimento. No entanto, a sua versão americana está muito mais desenvolvida e consegue providenciar – para além de habitação para toda a gente – uma série de equipamentos comuns, como abrigos de emergência, habitação para necessidades especiais, e aposentos individuais [single room occupancy (SRO)] para indivíduos com rendimentos muito baixos. [16] Na Suíça, o sucesso do movimento de habitação cooperativa tem sido apoiado e tornado possível através de legislação favorável, bem como de assistência financeira e disponibilização de terrenos. [17] Em Londres, nos últimos anos, os municípios iniciaram e apoiaram vários programas que permitem que pequenos lotes de terrenos pertencentes a autoridades públicas sejam disponibilizados a pequenos investidores, associações habitacionais e organizações comunitárias, para construir projectos habitacionais alternativos através de contratos de arrendamento de longa duração.

16. Cf. James DeFillipis, op.cit.

17. Sylvia Claus, “The impressive development of Housing Cooperatives in Zurich”, in Dominique Boudet (ed.), New Housing in Zurich: Typologies for a Changing Society, Zurique, Park Books, 2017, pp.17-27.

À medida que os preços das propriedades sobem e que a hegemonia da finança continua a expandir-se, torna-se mais difícil adquirir e financiar uma estratégia contra-especulativa para a habitação. Frente a esta realidade, as incursões contemporâneas na construção cooperativa devem ser reavaliadas consoante a condição financeira neoliberal. Iniciativas de construção cooperativa como as Baugruppen na Alemanha e as Ryhmärakentaminen na Finlândia – onde os indivíduos se auto-organizam para financiar a construção dos seus próprios edifícios – aparentam ser bem-sucedidas em contornar certos mecanismos de mercado no que toca à habitação. Ao operar efectivamente como o seu próprio investidor, a construção cooperativa elimina o intermediário no processo de desenvolvimento, produzindo habitação a um custo abaixo do mercado. Se, por um lado, este processo permite a construção de formas alternativas de habitação e oferece um grau de agenciamento aos moradores na organização da vida doméstica, por outro, está limitado àqueles com acesso a crédito e capital. Porque operam essencialmente como empreendimentos individuais, os activos de construção cooperativa estão inevitavelmente sujeitos a alguma forma de cálculo empreendedor, prometendo ou grandes retornos sob o investimento ou custos de habitação estáveis no meio de rendas altíssimas. Sem um mecanismo para contrariar a tendência especulativa, as iniciativas de habitação cooperativa arriscam-se apenas a consolidar ainda mais a condição financeirizada da habitação.



Contragolpe 2: rumo a um novo modelo de habitação cooperativa

Se a valorização do ramo imobiliário foi construída sobre camadas cada vez mais abstractas de instrumentos financeiros, ela está também vinculada a uma realidade muito concreta de chãos, paredes e tectos. Ao longo dos anos, a indústria da construção sofreu uma série de transformações em termos de sustentabilidade, velocidade de construção, e desempenho técnico e estrutural. Ainda que estas transformações aleguem ter melhorado o seu desempenho, aumentaram também a complexidade dos edifícios. Simultaneamente, os avanços no betão pré-fabricado e na Madeira Laminada Cruzada aceleraram o processo de construção, com componentes construtivos a chegar à obra e requerer apenas alguns dias, senão mesmo horas, para serem montados. Tais desenvolvimentos reduziram os custos de obra, limitando a quantidade de mão-de-obra in loco, ao mesmo tempo que aumentam a viabilidade económica de grandes vãos e de espessuras reduzidas de material.

Estes desenvolvimentos não devem ser tomados levianamente, como meros indicadores de progresso. De facto, as crescentes sofisticação e complexidade da construção andam de mãos dadas com a aglomeração e crescente monopolização da indústria da construção por um número limitado de agentes. Transformações nas abordagens à gestão da obra, construção e processos construtivos serviram para tornar mais eficiente o investimento de capital, desqualificando o trabalho para reduzir os custos da mão-de-obra na construção. Estas transformações não podem ser tomadas acriticamente; reflectem, de facto, um longo legado de relação ténue entre arquitectos e construtores. Desde que Filippo Brunelleschi pôs em causa o poder colectivo das guildas de construtores de Florença, no século XV, o estatuto disciplinar da arquitectura apoiou-se, de certo modo, na sua emancipação do trabalho da construção. [18] Uma vez que os métodos construtivos contemporâneos dependem cada vez mais de componentes pré-fabricados e estandardizados, as empresas de construção são cada vez menos construtoras e mais coordenadoras de trabalho e de capital.

18. Cf. Pier Vittorio Aureli, “Do You Remember Counterrevolution?: The Politics of Fillipo Brunelleschi’s Syntactic Architecture”, AA Files, 71, 2015, pp.147-165.

Contra esta indústria incumbente, vale a pena considerar as transformações em direcção àquilo que Nick Srnicek designa de “capitalismo de plataforma”. Empresas de milhares de milhões de dólares como a Uber têm pouco em termos de bens fixos; são, pelo contrário, “plataformas” operando como intermediárias, permitindo que dois ou mais grupos interajam. [19] Com o Airbnb, o ramo imobiliário está a sofrer uma transformação semelhante, sendo que a empresa age como plataforma intermediária entre o espaço físico e os potenciais usuários. A reformulação daquilo que são essencialmente actividades imobiliárias numa “plataforma” gerou um valor especulativo tremendo. Uma vez que os construtores agem cada vez mais como promotores, e vice-versa, também eles começaram a criar as suas próprias plataformas de marketing para ligar os seus produtos a potenciais compradores.

19. Cf. Nick Srnicek, Platform Capitalism, Cambridge, Polity Press, 2017.

Neste sentido, a indústria contemporânea da construção actua mais como uma plataforma do que como um modelo industrial de produção. Construtores e investidores estabelecem uma infraestrutura intensiva de capital e métodos de produção que permitam que eles operem como intermediários, ligando uma força de trabalho precária e substituível a bens imobiliários especulativos, que são vendidos em plataformas digitais. A crescente plataformização da indústria construtiva aponta para uma ambição: a monopolização do meio construído. O que precisamos, então, é de chegar lá antes deles.

A adaptação de modelos cooperativos de construção e propriedade nas linhas do capitalismo de plataforma poderá abrir novas frentes para contestar a natureza especulativa da habitação. Comentando o estado da “economia de partilha”, o activista-académico Tremor Scholz identifica a posição precária em que as empresas de plataforma foram colocadas. Apesar de ostentarem enormes valores de mercado, a maioria das empresas de plataforma consiste essencialmente numa app ou website que lhes permite agir como intermediários. Do outro lado da moeda, a atomizada e precária mão-de-obra das empresas de plataforma, como a Taskrabbit ou a Foodora, apercebe-se cada vez mais da ilusão de se libertarem da escravatura do trabalho e de que são, pelo contrário, uma mão-de-obra híper-explorada, à mercê do capitalismo start-up e empreendedor. Para Scholz, os trabalhadores destas plataformas podem muito bem unir-se e criar para si mesmos a sua própria app ou plataforma que iguale ou melhore o serviço da sua equivalente corporativa. [20]

20. Trebor Scholz, “Platform Cooperativism vs. The Sharing Economy”, Medium, 5 de Dezembro de 2014, in https://medium.com/@trebors/platform-cooperativism-vs-the-sharing-economy-2ea737f1b5ad#.575nndfdq.

A crescente plataformização da economia pode ser uma oportunidade de considerar uma entrada da plataforma cooperativa no sector imobiliário. Mais do que iniciativas de construção cooperativa isoladas, uma plataforma cooperativa pode coordenar o trabalho e fluxos de capital a um nível capaz de desafiar as empresas de construção incumbentes. As plataformas cooperativas podem mobilizar um grupo de trabalhadores a construir habitação que é propriedade cooperativa, afastada dos mecanismos especulativos.

Se a passagem para actividades de capital intensivo transformou radicalmente a indústria da construção, uma mudança para actividades de trabalho intensivo poderia também fazê-lo. As formas alternativas de construção, ainda valorizadas pela sua durabilidade, longevidade e organização espacial, podem ser reintroduzidas fora das exigências e garantias do mercado consideradas pelas empresas de construção. Paredes de tijolo sólidas com a devida manutenção, por exemplo, podem durar essencialmente para sempre, ao contrário dos edifícios “de tijolo” correntes, que consistem apenas num revestimento superficial de tijolos colocados no topo de uma assemblagem de isolamento, betão e metal, cuja garantia é, convencionalmente, de apenas trinta a cinquenta anos. [21]

21. “How Long Do Buildings Last?”, RDH Building Science, 28 de Janeiro de 2015, in https://www.rdh.com/blog/long-buildings-last/.

Uma plataforma cooperativa para a construção permite múltiplas vias pelas quais endereçar a condição especulativa da habitação. Ao nível da finança, pode mobilizar e agrupar bens de propriedade cooperativa para financiar a expansão da habitação e a sua retirada do mercado especulativo. Até certo ponto, poderia mesmo alavancar a atractividade dos contratos garantidos por hipotecas para estabelecer capacidade de obtenção de crédito, que permanece um obstáculo para cooperativas individuais e para aqueles sem acesso a crédito ou a capital. Em termos políticos, as plataformas cooperativas posicionam-se menos como activistas, que fazem exigências ao governo, do que como elas próprias “investidoras”. Como Michel Feher observa, “para competir com empresas capitalistas que dominam a economia colaborativa, as plataformas cooperativas devem constituir-se elas próprias como investidas, isto é, como projectos merecedores de investimento”. [22] As plataformas de construção cooperativa podem posicionar-se de forma a garantir incentivos de municípios que, actualmente, não têm poder para construir e financiar habitação social, os mesmos incentivos que os investidores tão bem exploraram no passado.

22. Michael Feher, Rated Agency: Investee Politics in a Speculative Age, Nova Iorque, Zone Books, 2018, p.191.

Diante da crescente dificuldade de acesso à habitação, as cidades são cada vez mais desprovidas da vida urbana que as sustém e substituídas por uma “cidade zombie” de activos especulativos desocupados. [23] A construção cooperativa – quando organizada como um movimento de luta pelo acesso à habitação – poderá tornar-se um parceiro atractivo para as cidades e os governos, negociando com municípios que estão actualmente incapazes de construir e financiar habitação social para a sua própria população.

23. Cf. Niklas Maak, Living Complex: From Zombie City to the new Communal, Munique, Hirmer, 2015.


Segunda Parte


 

Pier Vittorio Aureli

Cofundador do atelier DOGMA, em 2002. É professor na Architectural Association School of Architecture, em Londres, e professor visitante na Universidade de Yale.

 

Leonard Ma

Arquitecto canadiano baseado em Helsínquia, é professor na New Academy.

 

Mariapaola Michelotto

Arquitecta e investigadora, diplomada pela Faculdade de Arquitectura da TU-Delft com a tese Città Fabbrica, é actualmente colaboradora do atelier DOGMA.

 

Martino Tattara

Cofundador do atelier DOGMA, em 2002. É professor na KU Leuven, na Bélgica.

 

Tuomas Toivonen

Cofundador da New Academy, uma iniciativa educativa em torno da arquitectura e do urbanismo baseada em Helsínquia, assim como do atelier de arquitectura e urbanismo NOW.

 

Imagens

1. Do you hear me when you sleep?, DOGMA, 2019.

2. Proposta para Viikinmaki, Helsínquia, New Academy, 2019.

3. Do you see me when we pass?, DOGMA, 2019.

4. Construção em tijolo, New Academy, 1937.

 

Nota de edição

Este texto foi originalmente publicado na plataforma digital e-flux Architecture, integrado na série “Collectivity. Editada por Nick Axel, Nikolaus Hirsch e Beth Hughes, “Collectivity” foi uma colaboração entre a e-flux Architecture e a Bienal de Arquitectura e Urbanismo de Seoul, 2019, no contexto da exposição temática “Collective City”.

Por questões editoriais, a versão portuguesa que aqui se apresenta será publicada em duas partes. A tradução foi realizada por Rui Fernandes, com revisão de João Paupério.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 20.04.2021

Edição #31 • Primavera 2021 •