A Superliga e a concentração de capital no futebol • Francesco Piccioni



 

Quase que devíamos estar agradecidos àqueles que tiveram a ideia de promover uma “Superliga” do futebol europeu. Estou a gozar, obviamente, mas é verdade. É sempre difícil, por vezes até “aborrecido”, explicar em termos simples, populares e com exemplos imediatamente elucidativos, o que significa a “concentração e centralização do capital”, esse processo imanente ao processo de acumulação capitalista que conduz aos monopólios.

Até que um belo dia, um Agnelli [1] de segunda categoria–aquele que foi colocado à frente da Juventus e não da Fiat ou das suas evoluções ulteriores– apresenta-nos uma prova evidente, um facto luminoso, desencadeando uma reacção da parte dos capitais “menores” (ainda assim, multimilionários, que têm gerido o futebol europeu até hoje) e outra, muito menos decisiva, dos adeptos de várias equipas.

1. Os Agnelli são uma família da alta burguesia de Turim, símbolo do capitalismo industrial italiano, nomeadamente associados à empresa automóvel Fiat, à sociedade de investimento Exor ou ao clube Juventus. O artigo faz referência a Andrea Agnelli [N.T.].

Também neste contexto, a pandemia acelerou uma crise que se cozinhava há anos. Inúmeros clubes, de todos os níveis, desmoronavam-se em dívidas acumuladas desde há vários anos. As mudanças de proprietários são frequentes, e a cada passagem de testemunho apresentam-se grandes grupos multinacionais (no caso dos clubes com melhores performances) ou aventureiros de biografia incerta.

Tantos os primeiros como os segundos procuraram e continuam a procurar um meio de romper com a tradição (“gerir uma equipa torna-vos célebres, mas faz-vos perder dinheiro”), “valorizando” projectos imobiliários (“um novo estádio!”), de contornos impróprios (derrogações relativamente ao plano director, construção de centros comerciais, “construções imobiliárias compensatórias”, etc.). Mas no fim de contas, num mundo que vê ele próprio alterarem-se as suas coordenadas fundamentais, o verdadeiro negócio são os direitos das transmissões televisivas. É de lá que provêm os milhões a investir nas infraestruturas, nos treinadores, nos jogadores, etc.

Ora, se o coração da indústria do futebol –a sua principal fonte de rendimentos, em termos de dimensão e de provisões (os contratos são assinados no início da temporada)– é a televisão, assistimos desse modo ao rompimento de quaisquer atavismos territoriais, culturais, económicos, sociais, inclusive políticos (Do you remember Berlusconi? de presidente do A.C. Milan a “novo líder da sociedade civil”).

Um exemplo simples de compreender. Há alguns anos, o presidente da Lazio, Claudio Lotito, foi posto sobre escuta e numa chamada telefónica expôs –acidentalmente– o problema: “Já disse ao Abodi (presidente da Lega B [2ª divisão italiana]): se fazes subir o Carpi, se me trazes [para a Lega A] equipas que não valem nada, em dois ou três anos não teremos um cêntimo. Se nos defrontarmos contra o Frosinone ou o Latina, quem comprará os direitos televisivos?”

Para dizê-lo de forma educada, o mercado televisivo de massas deve ser preenchido por estrelas, por sparring-partners. Toda a gente conhece e assiste aos jogos entre as equipas mais fortes, com os melhores jogadores, aqueles que asseguram o espectáculo mais divertido (hoje em dia, um Nereo Rocco ou um Helenio Herrera não seriam contratados por ninguém.) [2]

2. Nereo Rocco e Helenio Herrera foram ambos futebolistas e treinadores marcantes enquanto apologistas do catenacio, um sistema de jogo caracterizado por um forte bloqueio defensivo [N.T.].

As equipas “territoriais”, que são uma expressão da sua comunidade, maior ou menor, podem ter tudo aquilo que quiserem: bons futebolistas, descobertos pelos olheiros contratados por pouco dinheiro, treinadores brilhantes, que dão os seus primeiros passos nas divisões inferiores, alguns milhares de fiéis adeptos, dispostos a pagar cada domingo o preço justo para ver os “seus rapazes” jogar nos palcos mais importantes. Mas não garantem uma audiência de milhões –ou antes, de dezenas de milhões– de telespectadores.

Para que se compreenda. Assim que Giuliana Sgrena, jornalista do Il Manifesto, foi sequestrada no Iraque, inúmeras vedetas fizeram-se fotografar com a t-shirt “Free Giuliana”. Entre elas encontrava-se Totti, que ainda não tinha sido campeão do mundo à época. As fotos deram a volta ao mundo de tal forma que, como escreveu mais tarde Sgrena, “um dos seus captores, o mais religioso, veio-me ver com estupefação, porque as televisões mostravam o meu retrato afixado em várias cidades europeias, mas sobretudo por causa de Totti. Sim, Totti. Explicou que era apoiante da Roma e que tinha ficado espantado por ver o seu jogador preferido entrar em campo com as palavras “libertem Giuliana” impressas sobre a sua camisola.” Ficou claro?

A pandemia, dizíamos, impôs o facto de ter de se jogar em estádios vazios durante mais de um ano. As receitas provenientes dos bilhetes e do merchandising, já por si insuficiente para cobrir os custos de funcionamento, desapareceram. Os direitos das transmissões televisivas e a publicidade sobraram como únicas fontes comerciais de receita.

Mas se a dinâmica é a da “selecção”, absolutamente natural e sem alternativa –temos tendência a procurar o melhor espectáculo–, então o bolo dos direitos televisivos não pode ser partilhado “entre todos”, entre os clubes com estrelas e as equipas de jogadores honestos, cheios de vontade de deixar a sua marca no jogo. Daí a manobra do pequeno Agnelli e dos outros onze “conselhos de administração” de multinacionais europeias do futebol. “O bolo todo para nós”.

Para compreender esse processo de contração do capital e de centralização do negócio, não é preciso procurar na história dos clubes, na dimensão e nas tradições da sua base de adeptos, do seu “peso” identitário. É necessário examinar a propriedade e os seus investidores financeiros.

Entre estes últimos, o primeiro a confirmar a sua participação, com 3,5 mil milhões, foi a JP Morgan, o banco de investimentos americano que –caso não se lembrem– se tinha posicionado contra as Constituições em vigor na Europa (“os sistemas políticos dos países europeus do Sul, e em particular as suas constituições adoptadas após a queda dos fascismos, apresentam características inapropriadas ao favorecimento da sua integração. Há uma forte influência das ideias socialistas”). Os outros financiadores são ainda desconhecidos, mas os “rumores do mercado” asseguram o interesse de fundos americanos e sauditas.

Quanto às propriedades:

Dos três membros italianos da nova Superliga, dois são apêndices de grupos financeiros chineses e o terceiro –a Juventus– é uma fracção da nova multinacional Stellantis, que agrupa as marcas francesas Peugeut e Citroen, as italianas Fiat e Lancia (entre outras), a americana Chrysler (com a Jeep, a Dogde, etc.). Para além disso, é a única fracção controlada por um Agnelli e este ano até está a penar para conseguir qualificar-se para a Liga dos Campeões. Esta tem um grande historial desportivo, fãs e telespectadores no mundo inteiro, e, portanto, pode “legitimamente” (economicamente) abdicar de qualificar-se todos os anos. Mais vale participar no “Campeonato dos melhores” e pôr-se a contar o dinheiro dos direitos televisivos.

O inglês Chelsea é propriedade do “dissidente” russo Roman Abramovich. O Arsenal pertence à Kroenke Sports & Entertainment, uma holding americana de desporto e de entretenimento sediada em Denver. O Manchester United é uma empresa britânica controlada pela família do empresário americano Malcolm Glazer, activa em vários sectores por intermédio da sociedade de investimentos First Allied Corporation.

O seu primo Manchester City, treinado actualmente por Pep Guardiola, pertence ao Abu Dhabi United Group for Development and Investments (ADUG), uma sociedade detida a 100% pelo sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan, membro da família real de Abu Dhabi.

O Liverpool, que comove os seus adeptos com um hino solidário esplêndido (You’ll Never Walk Alone), é controlado pela UKSV Holdings Company Limited, que é por sua vez controlada pela UKSV I LLC, cuja sede se encontra no estado do Delaware (um paraíso fiscal made in USA). Esta última, faz parte da Fenway Sports Group, uma sociedade americana que centraliza diversos investimentos no sector do desporto, entre os quais a equipa de basebol Boston Red Sox. O principal acionista da Fenway Sports Groups é o empresário americano John W. Henry.

O Tottenham Hotspur Limited é controlado pela Enic International Limited, uma sociedade registada nas Bahamas. O principal accionista desta última, com 70,59%, é o empresário inglês Joe Lewis (residente em New Providence, nas Bahamas).

A estrutura da propriedade do Real Madrid é aparentemente diferente. O Real Madrid é um clube multidesportivo constituído sob a forma de associação privada de particulares “sem fins lucrativos”. Mas é difícil associar o nome de Florentino Pérez a qualquer coisa sem fins lucrativos.

O mesmo acontece com o Barcelona, que tem efectivamente um accionariado difuso, com cerca de 200 000 sócios. Finalmente, mais tradicional é a estrutura do Atlético de Madrid, comprado em 1987 por Jesus Gil. Hoje, o accionista principal é Miguel Angel Gil Marin.

Estas doze sociedades são também aquelas –em conjunto com mais algumas– que têm o maior valor económico na Europa (sem contar com as sociedades francesas e alemãs, que para já não participaram no “negócio”). Trata-se do processo de concentração e de centralização de capital num sector “industrial” muito específico. Mas funciona da mesma maneira que no sector automóvel (o exemplo da Stellantis é suficiente) e em qualquer outro sector. Digamos que as “desigualdades” se tornam a verdadeira marca do capital, uma vez atingido este patamar. E não falamos apenas das imensas diferenças de rendimento entre os trabalhadores e os “accionistas de referência”, entre os trabalhadores precários e os grandes gestores, mas no próprio seio dos capitais.

Aqueles que têm força para se tornar “multinacionais” seguem em frente, aqueles que conseguem apenas gerir uma empresa local ficam para trás, e mais cedo ou mais tarde serão provavelmente obrigados a fechar portas. No mundo do futebol, o nascimento real (eventual) da Superliga tem (teria) um efeito explosivo. A concentração de investimentos, propulsionada pelos direitos das transmissões televisivas, criaria um “mundo à parte”, com 15 “membros vitalícios” e cinco “convidados”, ano após ano, escolhidos entre os melhores dos diferentes campeonatos.

Fora desse mundo dos ultra-ricos, todos os outros clubes se encontrariam com rendimentos drasticamente reduzidos (os direitos televisivos levam consigo os da publicidade) e encontrar-se-iam, portanto, na impossibilidade material (“mecenas” à parte) de construir equipas importantes e competitivas. Isso implicaria uma crise para as escolas de futebol, a ser então financiadas pelas quotas demasiado caras dos estudantes futebolistas (das famílias que perseguem o sonho de ter um filho campeão ou, pelo menos, um “honesto futebolista profissional”) e pelas mais-valias ligadas à venda dos seus melhores “produtos”.

Mas sobretudo, quebraria fisicamente o vínculo social e político entre o futebol e os povos. E este é o problema habitual de toda a centralização do capital. Cada equipa da elite europeia deixaria de ser (ou passaria a ser ainda menos) o símbolo identitário de um território e de uma “forma de estar” (perguntem aos adeptos do Inter...). Qualquer futuro proprietário, como acontece por vezes nos Estados Unidos com a NBA, poderia “trocar de franchise” e associar essa equipa a uma cidade. Talvez até a outro país.

Entre as “vítimas” estariam igualmente os chefes de claque, os gestores do tráfico de droga, os canalizadores de consenso político, etc.

É o capitalismo, meu amigo.

É possível que, para já, esta “iniciativa” não seja bem-sucedida. A ausência de equipas alemãs e francesas (nomeadamente, o Paris Saint-Germain e o Bayern) atinge bastante a pretensão de representar verdadeiramente a elite imutável do futebol, a menos que os três clubes que não foram “revelados” fossem justamente originários desses mesmos países.

A reacção da “política europeia” ameaça também de forma séria a viabilidade do projecto. A exclusão de equipas das ligas nacionais e, consequentemente, dos jogadores das respectivas selecções nacionais, tornaria a Superliga muito menos atractiva. E a “competitividade” diminuiria consideravelmente (os Los Angeles Lakers são uma coisa, os Harlem Globe Trotters são outra). Mas a tendência a meio prazo parece clara. Aqueles que querem verdadeiramente ganhar dinheiro com o futebol empurram no sentido da centralização e da concentração de um espectáculo em apenas algumas mãos. É inútil derramar lágrimas sobre os nossos mitos ameaçados e/ou perdidos. Há já 165 anos, dois sábios lançaram um aviso:

Onde quer que ela conquistou o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Quebrou sem misericórdia os vários e complexos laços que uniam o homem feudal aos seus “superiores naturais” e não deixou outro laço entre homem e homem que não fosse o do interesse nu, do insensível “pagamento a pronto”. Afogou o frémito sagrado do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da melancolia pequeno-burguesa, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um mero valor de troca; substituiu as inúmeras liberdades, custosamente conquistadas, à liberdade única e impiedosa do comércio. Resumindo, no lugar da exploração mascarada pelas ilusões religiosas e políticas, pôs a nu uma exploração aberta, despudorada, directa, brutal.

A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e piamente respeitadas. O médico, o jurista, o padre, o poeta, o cientista, foram transformados em assalariados ao seu serviço. A burguesia arrancou às relações familiares o seu véu de sentimentalidade e reduziu-as a puras relações de dinheiro. (K. Marx & F. Engels, Manifesto do partido comunista)  

Acreditavam mesmo que o futebol teria outro destino?

 

 

Francesco Piccioni

Antigo militante da coluna romana das Brigadas Vermelhas e membro da sua direcção estratégica.

 

Imagem

1. Elland Road, 19 de Abril de 2021.

 

Nota de edição

Este texto foi publicado originalmente na plataforma digital Contropiano, no dia 20 de Abril de 2021. A tradução para português foi realizada com recurso à versão francesa, publicada no mesmo dia na plataforma digital Acta.Zone.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 23.04.2021

Edição #31 • Primavera 2021 •