Torre Bela (1975-2020) • Pedro Levi Bismarck




Tanta coisa condensada num só lugar, num só momento: o massacre indiscriminado de centenas de animais encurralados numa sessão de caça desportiva com o objectivo de «limpar terreno» para a construção de uma central fotovoltaica na Herdade da Torre Bela, agora propriedade de uma empresa desconhecida mascarada de «Sociedade Agrícola», num dos mais emblemáticos palcos do confronto político-ideológico que Portugal atravessou durante o PREC.

Um capital desterritorializado, globalizado e abstracto, que «sacrifica» centenas de animais selvagens, limpa e arrasa um ecossistema inteiro em nome de uma nova economia «verde», «sustentável» e «amiga» do ambiente. O sonho molhado das transições energéticas, dos Green New Deals e das Novas Bauhaus, cristalizado numa só imagem: todas as aporias de um Capital que jamais poderá ser «verde», porque assenta sobre um princípio de exploração infinita da natureza; todas as aporias de um Estado que se mostra indignado, mas que cobre com todo o seu aparato legal e institucional esse Capital que, mascarado sob o lema da «Iniciativa privada», não passa de uma Oligarquia corrupta e organizada, dissimulada pela finança, pela «social-democracia» e pelo o universalismo pueril e abstracto do «vai ficar tudo bem» da classe média.

E, ao contrário daquilo que se possa pensar, o emblemático documentário sobre a Herdade da Torre Bela de 1975 não é um documento histórico porque traça a memória de um tempo histórico determinado, de um tempo outro como curiosidade morta, passada, anacrónica, o 25 de Abril, o PREC, etc.…; ele é um documento histórico porque afirma aquilo que somos e o que não somos; porque afirma uma e outra vez aquilo que sempre foi e continua a ser – a marca de uma exploração sem fim, dos homens e da natureza, em nome do Capital, em nome de uns à custa de outros – e aquilo que nunca chegou a ser, aquilo que ficou perdido e esquecido – a marca indelével da «queda» de um projecto revolucionário e de uma democracia que não contém nenhum poder a não ser o do Capital, nenhuma vontade colectiva a não ser a indignação breve e a resignação consumada.

Mas se há indignação à direita é menos pela «moralidade dos factos públicos» e mais pela «exposição moral dos factos ao público», algo que esta jamais pode tolerar: a exposição da irracionalidade da sua própria razão, a irracionalidade da sua produção material frente à racionalidade mais pura e púdica das suas promessas. Não é a «caça» que é anacrónica, não é a burguesia pseudo-aristocrata divertindo-se com carcaças que é anacrónica, anacrónicas são todas as políticas objectivas que não só perpetuam modelos de exploração económica intensiva, de que o Alentejo de ontem e de hoje continua a ser palco (e a muitos níveis: do Olival à criação intensiva de gado), mas também modelos de organização política que a seguir ao 25 de Novembro restauraram velhos privilégios e velhas lógicas entre o Estado e a economia. Um voto de louvor pelo 25 de Novembro, pede sempre a direita todos os anos; e aí está ele, na Torre Bela, em Dezembro de 2020.

 




Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Frame do documentário Torre Bela, 1977, de Thomas Harlan.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 24.12.2020

Edição #30 • Inverno 2020 •