Tanta coisa
condensada num só lugar, num só momento: o massacre indiscriminado de centenas
de animais encurralados numa sessão de caça desportiva com o objectivo de
«limpar terreno» para a construção de uma central fotovoltaica na Herdade da
Torre Bela, agora propriedade de uma empresa desconhecida mascarada de
«Sociedade Agrícola», num dos mais emblemáticos palcos do confronto
político-ideológico que Portugal atravessou durante o PREC.
Um capital
desterritorializado, globalizado e abstracto, que «sacrifica» centenas de
animais selvagens, limpa e arrasa um ecossistema inteiro em nome de uma nova
economia «verde», «sustentável» e «amiga» do ambiente. O sonho molhado das
transições energéticas, dos Green New Deals e das Novas Bauhaus, cristalizado
numa só imagem: todas as aporias de um Capital que jamais poderá ser «verde»,
porque assenta sobre um princípio de exploração infinita da natureza; todas as
aporias de um Estado que se mostra indignado, mas que cobre com todo o seu
aparato legal e institucional esse Capital que, mascarado sob o lema da
«Iniciativa privada», não passa de uma Oligarquia corrupta e organizada,
dissimulada pela finança, pela «social-democracia» e pelo o universalismo
pueril e abstracto do «vai ficar tudo bem» da classe média.
E, ao contrário
daquilo que se possa pensar, o emblemático documentário sobre a Herdade da
Torre Bela de 1975 não é um documento histórico porque traça a memória de um
tempo histórico determinado, de um tempo outro como curiosidade morta, passada,
anacrónica, o 25 de Abril, o PREC, etc.…; ele é um documento histórico porque
afirma aquilo que somos e o que não somos; porque afirma uma e outra vez aquilo
que sempre foi e continua a ser – a marca de uma exploração sem fim, dos homens
e da natureza, em nome do Capital, em nome de uns à custa de outros – e aquilo
que nunca chegou a ser, aquilo que ficou perdido e esquecido – a marca
indelével da «queda» de um projecto revolucionário e de uma democracia que não
contém nenhum poder a não ser o do Capital, nenhuma vontade colectiva a não ser
a indignação breve e a resignação consumada.
Mas se há indignação
à direita é menos pela «moralidade dos factos públicos» e mais pela «exposição
moral dos factos ao público», algo que esta jamais pode tolerar: a exposição da
irracionalidade da sua própria razão, a irracionalidade da sua produção
material frente à racionalidade mais pura e púdica das suas promessas. Não é a
«caça» que é anacrónica, não é a burguesia pseudo-aristocrata divertindo-se com
carcaças que é anacrónica, anacrónicas são todas as políticas objectivas que
não só perpetuam modelos de exploração económica intensiva, de que o Alentejo
de ontem e de hoje continua a ser palco (e a muitos níveis: do Olival à criação
intensiva de gado), mas também modelos de organização política que a seguir ao
25 de Novembro restauraram velhos privilégios e velhas lógicas entre o Estado e
a economia. Um voto de louvor pelo 25 de Novembro, pede sempre a direita todos
os anos; e aí está ele, na Torre Bela, em Dezembro de 2020.
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Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Frame do documentário Torre Bela,
1977, de Thomas Harlan.
Ficha Técnica
Data de publicação: 24.12.2020
Edição #30 • Inverno 2020 •