Notas sobre as lutas que se aproximam • Comuna de Arroios





1.

A questão da habitação revela como o capitalismo se devora a si próprio. A diminuição histórica da sua capacidade de concretizar lucros obriga-o a explorar cada vez mais a camada social que historicamente lhe serviu de almofada de segurança – a famosa “classe média”. Fá-lo não só através da inflação e da compressão salarial, mas também através da transformação em activo financeiro dos bens que antes significavam segurança e prosperidade, ou seja, dos bens que faziam que a dita “classe média” se reconhecesse enquanto tal.

No pós-guerra, ante a ameaça de que o proletariado europeu transformasse o seu antifascismo em socialismo, o capital investiu na criação de uma classe média, primeiro através do estado social e depois, quando se esgotou essa possibilidade económica, através do crédito. Esse projecto não visava apenas criar uma pequena burguesia transnacional, que servisse enquanto novo sujeito político das democracias “ocidentais”, mas procurava também desmontar, a pouco e pouco, o mundo operário até aí existente, feito de partidos, sindicatos, cooperativas, mutualismo, associações desportivas e culturais, etc. A vida autónoma da classe era progressivamente substituída por um estado que se encarregava da sua sobrevivência, desconstruindo assim, a pouco e pouco, a ideia que a classe tinha de si própria enquanto força política e as suas múltiplas formas e ideologias.

A destruição do movimento operário clássico não foi simples. Ao mesmo tempo que o capitalismo se tornou uma forma de vida e não apenas um sistema económico, e ao mesmo tempo em que a lógica produtiva da fábrica se estendeu à totalidade da sociedade, surgiram novas formas de resistência. O eclipse do movimento operário clássico deixou aberto um campo de antagonismo que se expressou na recusa da exploração, da alienação, dos papeis de género, do imperialismo, etc, composto por novas formas de luta e de construção de comunidade. Os movimentos dos anos 60 e 70 foram derrotados, mas não sem infligir um duro golpe ao capital. A recusa do trabalho industrial implicava a diminuição do lucro que o capital era capaz de retirar das suas grandes fábricas. A produção em massa, no mundo “desenvolvido”, deixava de ser rentável. A solução é conhecida: a criação de um mercado mundial através da hegemonização geopolítica do dólar e das dividas externas, e a financeirização da economia.

A especulação financeira funciona através da circulação de unidades de valor trocáveis - vulgo assets ou activos. As propriedades imobiliárias que haviam garantido à classe média que ela era efectivamente classe média - as suas casas - tornavam-se assim um activo financeiro. O capital incapaz de realizar lucro necessitava um local seguro onde “estacionar” o seu dinheiro, e a propriedade imobiliária revelava-se rentável quanto baste. A riqueza injectada pelo capital na classe trabalhadora - de modo a criar a sua almofada de segurança, de modo a criar uma população dócil - acabava por se tornar em uma das suas garrafas de oxigénio. Para sobreviver às suas sucessivas crises e contradições, o capitalismo necessitou então de resgatar o seu seguro de vida, e esse seguro de vida era a ilusão generalizada de que agora éramos todos de classe média.

O que isto significa é que toda a segurança material, profissional e salarial que foi prometida à emergente classe média se está a esvair em fumo. Foi-lhes dito que Marx estava fora de moda, que agora todos poderiam ser médicos, arquitectos, designers, actores, encenadores, realizadores de cinema, artistas, fisioterapeutas, antrópologos, cozinheiros, que iriam passar a férias a Bali e fazer compras a Madrid, que iriam ter a sua pequena loja, a sua pequena pousada, o seu pequeno restaurante, a sua pequena casa, que os seus filhos poderiam estudar o que quisessem, que iriam ter sempre os melhores cuidados de saúde, que iriam ter uma velhice dourada. Mas nada disto aconteceu - e de repente o modo mais óbvio de sobreviver parece ser fazer da própria vida, do sitio onde se mora, das habilidades que se tem, um asset especulativo.

 

2.

Se esse processo onde os bens necessários à sobrevivência se tornam elementos de especulação financeira representa o fim desse pacto social que prometia prosperidade em troca do esquecimento das grandes paixões políticas - então não é inocente nem casual que em Portugal essa dinâmica se tenha acelerado durante a denominada “Geringonça”. A novidade da geringonça não foi a “união das esquerdas”. Para além da suas tricas e desacordos ideológicos, a esquerda portuguesa, depois de 1975, esteve sempre bastante unida no seu essencial, organizando-se à volta de uma ideia de base: a esquerda deveria a pouco e pouco construir a sua hegemonia dentro do estado e da sociedade civil. A direita prescindia da sua tentação autoritária e a esquerda prescindia da sua tentação revolucionária, aceitando as regras do jogo de modo a conseguir desenvolver o repertório de poder institucional que o estado novo não lhe tinha antes permitido. Dava-se assim uma aliança entre o proletariado que tinha feito o PREC e as novas classes médias. Os primeiros viam a suas necessidades básicas asseguradas e as segundas passavam a poder ditar algumas das políticas sociais e culturais progressistas e liberais que assumiam ser o seu papel civilizacional. Tanto as forças que existiam antes de 74 como aquelas que surgiram posteriormente foram relativamente unânimes nesta análise e nesta perspectiva, não obstante quão “revolucionárias” se tenham publicamente e romanticamente afirmado.

Foi apenas quando a direita, durante o governo de Passos Coelho, declarou nulo esse pacto social, avançando sem reservas para uma tentativa radical de reorganização do tecido produtivo, que a esquerda se viu obrigada a reagir - e reagiu tornando óbvio aquilo que antes tinha sido apenas tácito, criando a “geringonça”. Mas, no entanto, a geringonça sempre existiu. Ela podia não ter nome ou forma institucional e podia não ter sequer consciência de si, mas a “geringonça” - uma aliança informal e vasta de esquerda constituída contra a direita autoritária - foi, de facto, o nome do pacto social vigente do início dos anos oitenta até 2010.

Como não podia deixar de ser, as coisas mudam quando deixam de ser tácitas para ser explícitas, quando ganham consciência de si, quando se tornam óbvias. À “geringonça” concretizada não poderia senão seguir-se a maioria absoluta do PS de Costa, que é de facto a forma final dessa compromisso histórico. A presente maioria absoluta é o capítulo final de um ciclo do pós-25 de Abril, após a qual assistiremos a um colapso total da esquerda institucional, ao esgotamento político e existencial do “abrilismo” que marcou o ideário da esquerda durante as últimas décadas e à tomada do poder de uma nova direita, que não se reporta à direita que emerge do período revolucionário.

 

3.

Se a classe média não existe, se de facto nunca existiu senão enquanto ilusão temporária, então é necessário abandonar as formas de fazer política que a colocam em local central, que colocam a sua cultura de mediação e de representação no âmago do confronto político, que colocam o seu imaginário de compromisso social enquanto estrutura de todas  as demandas e exigências.

Torna-se necessário encontrar alternativas à ideia de representatividade, cuja génese, convém sempre relembrar, ocorreu ligada à ideia de propriedade privada. Torna-se necessário desligar a ideia de justiça da ideia de produtividade, separar a ideia de dignidade humana da ideia de riqueza produzida.

Torna-se sobretudo necessário encontrar um conceito estratégico alternativo à ideia de hegemonia, à ideia de que nos devemos multiplicar em instituições de estado e da sociedade civil que disputem a opinião pública. A "opinião pública”, hoje, não existe, pelo menos não no modo como foi concebida durante o séc. XVIII e XIX. O poder é hoje técnico, burocrático e económico - e não político. A polis existe apenas enquanto playground narcísico para os resquícios de classe média ilustrada que ainda acredita em si mesma. A ideia modernista de uma sociedade que se pensa a si própria no espaço público colapsou quando o desenvolvimento tecnológico pulverizou as instâncias onde ocorria essa reflexão. Se em 1990 uma maioria considerável da população via o mesmo telejornal público, hoje a fragmentação da esfera mediática é tal que é impossível afirmar com um mínimo grau de certeza por onde se constitui a dita “opinião pública”. Para cada velhinha que vê a CMTV e para cada Boomer que lê o Daniel Oliveira ao sábado há um jovem cuja visão do mundo é feita via twitter por tankies ou tradicionalistas católicos gringos. O que sobrevive dessa “opinião pública” é algo estranho e bizarro que oscila entre a manipulação, a conspiração e a caricatura.

À pulverização dos mecanismos de constituição e consolidação da sociedade civil corresponde também o fim desse sujeito que pareceu tornar-se universal nas últimas décadas: “as pessoas”, “os cidadãos”, “os portugueses”, “os espectadores lá em casa”, etc. Durante décadas vingou a ideia de que a transmissão de uma ideia política deveria ocorrer nos termos mais generalistas possíveis, sob pena de alienar este sujeito fantasma, uma espécie de mínimo denominador comum político, saturado de paternalismo. Hoje, finalmente, começa a vingar a ideia de que o sujeito da política não é um sujeito universal, mas um sujeito composto por inúmeras diferenças, desde logo de classe, de género, de racialização, etc.

A esta ideia de hegemonia interessaria contrapor uma ideia de autonomia.

A política a construir será uma política feita através desta fragmentação do sujeito “ideal” do capitalismo e do colapso desse ideia hegemónica de classe média. É necessário construir instituições, construir poder, construir mecanismos de intervenção. Mas esses terão de ser determinados pelos interesses e necessidades imediatos dos que sofrem essa proletarização em curso. Essas formas de poder não deverão disputar quem controla as formas de poder existentes mas criar novas formas de poder, novas formas de comunicação, novas formas de organização, novas formas de habitação, novas formas de ecologia.  

Não há poder político que não aconteça numa ruptura com a ditadura concreta e abstracta do poder económico e com as formas de ser e de existir criadas por esta. À ideia de “cidadão”, de um sujeito geral, abstracto, indistinto, “one-size-fits-all” interessaria recuperar e contrapor uma ideia de “classe”. Não classe enquanto conceito produtivo ou identitário. Não “classe” enquanto cultura popular. Não “classe” enquanto identificação com o trabalho. Não “classe” enquanto massa indistinta. Mas classe enquanto proletariado, “classe” enquanto plebe, “classe” enquanto modo de designar aqueles que pouco têm a perder, “classe” enquanto modo de congregar todos aqueles que encontram no capitalismo uma ameaça à sua vida, “classe” enquanto algo contrário à ideia de “cidadão”, de “português”, de “consumidor”, de “elite”, etc. “Classe” enquanto modo de referir o que há de comum e poderoso no gesto de ruptura e antagonismo que surge numa greve, numa ocupação, na resistência à devastação ecológica, na revolta queer, na dissidência de género, no antifascismo militante, na recusa em ser triturado por um quotidiano apocalíptico e sem sentido.

 

4.

A proposta de autonomia e classe enquanto conceitos estratégicos não reside no seu valor conceptual, poético ou romântico, mas, pelo contrário, na sua capacidade de identificar uma pertinência táctica concreta. O plano de sobrevivência do capitalismo assenta numa diminuição dos fundos que destina à reprodução social, ou seja, da riqueza que destina a fazer com que a vida continue dia após dia, implicando, portanto, uma exclusão cada vez maior das populações consideradas excedentárias.

Por outras palavras mais simples: o capital não tem hoje qualquer interesse em assegurar a sobrevivência da larga maioria da população. A sua sobrevivência já não depende da integração das classes populares nos fluxos de valorização de capital. O capital, actualmente, não precisa dos seus pobres.

Trata-se então de transformar essa exclusão em autonomia, ou seja, de construir e expandir formas de reprodução social capazes de funcionar para além das crises do estado e da economia.

Essa autonomia, no entanto, não basta. Se o plano do capital é livrar-se de parte considerável da população que foi em tempos necessária à sua reprodução – livrar-se desse capital humano que era necessário para a produção industrial – então a autonomia das populações excedentárias arrisca não ser mais do que um alívio, permitindo até que estas se mantenham em absoluta precaridade enquanto mão de obra barata para uso esporádico. A autonomia em questão não poderá ser a da autogestão da miséria. A inegável prosperidade das sociedades ocidentais do pós-guerra deveu-se a condições históricas irrepetíveis e à brutal exploração e proletarização do sul global. O mundo ecológico, afectivo, social e simbólico do capitalismo é um mundo em colapso. A função social do estado será cada vez mais exclusivamente a gestão brutal desse colapso. “Tomar os meios de produção” seria um objectivo pertinente quando o aparato produtivo e político do capitalismo era ainda um instrumento de progresso e desenvolvimento passível de redireccionamento. Hoje esse aparato soberano-industrial surge apenas enquanto uma desmedida máquina apocalíptica e não enquanto paradigma civilizacional.

Torna-se então necessário pensar a autonomia de modo que não seja apenas uma capacidade de resiliência subalterna. É na constituição de uma autonomia ofensiva que se dá a possibilidade de pensar o fim do capitalismo. Uma autonomia que exista enquanto algo que conquista território e poder ao desastre capitalista. O apoio mútuo deve tornar-se numa forma de poder ofensivo, deve colocar em crise os mecanismos de reprodução do estado e do capital. Não se trata apenas de ensaiar entre amigos os gestos bonitos de um mundo porvir, trata-se de organizar formas de entre-ajuda e de solidariedade de modo a que estes estes gestos se tornem ofensivos, onde acumulem poder, onde construam laços de solidariedade e de confiança. Construir cantinas grátis contra as grandes empresas de comércio de alimentos, de modo a que as pessoas possam a passo e passo deixar de depender da cartelização de bens essenciais. Ocupar casas contra os fundos de investimento, tornando os seus investimentos menos rentáveis, conquistando terreno onde construir ainda mais infraestruturas de apoio mútuo. Construir formas de cuidado fisico e mental contra a brutalidade e a humilhação permanente, de modo a inventar formas de saúde comunitárias, que entendam as relações entre indivíduos enquanto parte integrante de uma vida boa. Criar uma ideia e uma prática de luxo e de riqueza comunal contra a ideia de que o único modo de ter conforto e prazer é na acumulação individual de dinheiro e propriedades. Federar as formas de pensar e agir coletivamente contra a sua recuperação e institucionalização e contra a ideia de que o seu poder, seriedade e eficácia está dependente da mediação estatal. Desenvolver formas de pensar, de discutir, de criar e de comunicar contra a especialização das elites e  contra a utilização do saber enquanto forma de arrogância e de distinção social.

O desafio político das próximas décadas será reconstruir um tecido de reprodução social autónomo à devastação do capitalismo.

 

5.

O propósito de conjugar solidariedade, autonomia e poder encontra expressões ainda mais concretas e imediatas nos territórios urbanos que hoje conhecemos. O objetivo político imediato é impedir, por inúmeros meios, que a transformação da cidade de Lisboa em metrópole capitalista se concretize. Até há pouco tempo, Lisboa mantinha uma população proletária e popular no seu centro. Era essa que, de modo mais agressivo ou mais passivo, resistia à modernização capitalista da cidade, ou seja, resistia à transformação da cidade em asset financeiro, em centro comercial, em fábrica difusa. A gentrificação não significou apenas o encarecimento das rendas, foi também a tentativa de arrancar pela raiz uma cultura popular urbana que se recusava a assumir os padrões de produtividade das novas culturas metropolitanas. Foi essa cultura urbana que fez o PREC e foi essa cultura urbana que resistiu à troika e à austeridade. Para a destruir não bastou importar a cultura do empreendedorismo, foi também necessário transformar em mercadoria imaterial as formas de vida boémias e populares da cidade. Essa transformação, embora imensamente avançada, está ainda em curso. Não se trata de pedir à CML de Moedas ou de Medina que a impeçam, não se trata de apenas exigir novas leis, não se trata esperar 3 anos para votar uma nova CML de esquerda. Não se trata de adoptar as esgotadíssimas estratégias de boicote ou de denúncia moral dos turistas, de deixar cair a enésima lágrima pela “Lisboa tradicional” e pelas “lojas com história”.

Trata-se de activamente sabotar, em todas as ruas e em todas as esquinas, todos os empreendimentos económicos, comerciais e políticos que empurrem a cidade nesta direção.

Essa sabotagem deve ser diária, espontânea e ininterrupta.

Se a necessidade económica nos obriga a pagar uma renda e uma conta no supermercado então todas as nossas restantes acções deverão ir no sentido contrário, no sentido de menorizar essa necessidade e de menorizar o poder de quem a impõe.

Quem gere um prédio habitado por nómadas digitais que pagam €700 por um quarto deve acordar todos os dias com as paredes da rua pintadas de graffiti. Os supermercados que aproveitam a inflação para encaixar lucros gigantescos devem ver desaparecer das suas prateleiras o máximo de produtos possíveis. As manifestações contra a gentrificação devem causar prejuízo monetário à CML e aos fundos de investimento imobiliário.

Não se trata de conservar uma fantasia idealizada da cidade, que foi sempre um território de exploração e miséria, trata-se de perceber que essa cidade é, apesar de tudo, um instrumento político, e que a neoliberalização total de Lisboa será o primeiro passo para construir um terreno de exclusão programático. A cidade será o playground de uma elite liberal e tudo para além do seu centro será um depósito de precaridade, violência, austeridade e exclusão, com fronteiras defendidas por uma polícia cada vez mais armada e militarizada.

A acumulação de crises em curso abre a porta a uma reconsideração profunda do que significa viver e agir em conjunto, do que significa tomar uma posição, do que significa exercer e conjugar poder. Recuar deste propósito significa aceitar a chantagem apocalíptica que nos é feita e cada dia.

 

 

 

Comuna de Arroios

A Comuna de Arroios é o nome que encontrámos para dar a uma série de iniciativas informais de cuidado autónomo em curso na zona de Arroios em Lisboa. Assina este texto não enquanto organização formal, mas enquanto expressão temporária e parcial de um processo de auto-organização em curso, que em muito transcende as pessoas que escreveram estas linhas.

 

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Fotografias de Remi Moons

 

Ficha técnica

«Notas sobre as lutas que se aproximam» • Comuna de Arroios

Data de publicação • 15.02.2023

Edição #37 • Inverno 2023