Sobre o projecto: espectáculo, tempo e ideologia • Fabio Merlini em conversa com Luigi Snozzi

 

Fabio Merlini: Por entre os diferentes temas das nossas conversas emergiu, com uma certa insistência, o da espectacularização. É um dos temas que me interessa particularmente, para além do fenómeno arquitectónico. Isto porque a espectacularização dos comportamentos, das linguagens e dos gestos é um dos fenómenos que permitem ler a contemporaneidade. Porque motivo é preciso saber espectacularizar para assegurar uma visibilidade dos próprios actos? Porque motivo se torna a espectacularização um imperativo da própria lei do evento? Tudo deve ter a natureza de evento, porque o presente actual da informação e da comunicação repousa sobre a ideia de um mundo que oscila continuamente entre a dimensão trágica e a dimensão cómica: um mundo tragicómico, onde a tensão é evacuada ora numa, ora noutra. Por outro lado, é precisamente esta imagem que transmitem os média mais populares: o mundo como tragédia horrível, mas também enquanto farsa carnavalesca. E isto porque a nossa condição é determinada pelo que eu chamo o «sistema da distracção generalizada». As nossas vidas são organizadas por uma circulação contínua de mensagens, imagens, chamadas, tarefas, que são distribuídas por canais extremamente porosos entre si e cujo efeito é o declínio da temporalidade do remetimento, em favor do tempo da simultaneidade. Para os que vivem um regime de hipersolicitação, a atenção é uma comodidade rara. A política, a informação, a cultura, estão continuamente em busca de um modo mais eficaz de existir: para estas, hoje, a linguagem nunca é demasiado espectacular. A sensibilidade e a emoção requerem estímulos com recurso a um limiar perceptivo cada vez mais restrito. É por essa razão que é preciso gritar, cada vez mais alto, mensagens que de um ponto de vista argumentativo são elementares. É, no entanto, um jogo de elevação onde o despertar da atenção não está de todo garantido. Na sua Viagem a Itália, Goethe escreveu qualquer coisa que nos parece destinada. Sublinha uma diferença entre os Antigos e os Modernos que diz respeito precisamente a este ponto. Os Antigos, lemos, fizeram do existente, do terrível e do agradável, o pivot da sua representação, enquanto que se os Modernos se interessam por estes aspectos é pelo efeito que estes produzem. Mas quando o que interessa é a procura do efeito, conclui Goethe, o resultado não pode ser outro que não a hipérbole, a maneira, a afectação. Aquele que opera em busca do efeito não crê nunca tê-lo tornado suficientemente perceptível e deverá, portanto, ir sempre mais longe. É precisamente o que acontece hoje. Quem se preocupa ainda em suscitar julgamentos fundados? O que conta é, pelo contrário, solicitar e administrar as emoções: interceptá-las e fertilizar um terreno propício ao consumo de mercadorias, quer se trate de visões do mundo, de discursos, de imagens, de objectos ou de comunicações.

Luigi Snozzi: Estou plenamente de acordo contigo. Tudo o que disseste é igualmente válido para a arquitectura. Por exemplo, estes últimos anos recusei fazer parte de júris. Antes, tornávamo-nos membros de um júri porque partilhávamos um certo número de argumentos, que eram partilháveis, discutíveis, acessíveis. Hoje, isso já não é possível, porque toda a gente está interessada, antes de mais, pelo efeito que produz a obra: «É fabuloso, é interessante». Faltam os argumentos arquitecturais que permitam compreender se e por que motivo um projecto é válido ou não; o que importa é que seja espectacular. Assim sendo, são os projectos com um forte impacto espectacular que são seleccionados pelos júris. E é uma tendência que se encontra também nas escolas de arquitectura. O que faz hoje falta a esta disciplina é o interesse por uma discussão dialética sobre as razões do projecto.

Fabio Merlini: É uma tendência generalizada à qual a arquitectura não escapa. Que encontra na arquitectura, aliás, uma representação muito clara. O gesto espectaculariza-se até ao ponto em que a arquitectura se aproxima cada vez mais da escultura.

Luigi Snozzi: Se pensarmos sobre as grandes estrelas da arquitectura mundial, apercebemo-nos que são sempre os mesmos, uma dezena no total. São os autores dos maiores projectos públicos, que fizeram da espectacularização o seu cavalo de batalha. O exemplo mais flagrante é o de Bilbao, de Frank Gehry. O arquitecto não desenhou apenas o museu Guggenheim, mas co-fundou uma nova atracção para a cidade, de tal modo que toda a gente, incluindo avós com as suas crianças, acorre para fotografar um lugar que ninguém conhecia antes.

O que significa isto? Significa que o arquitecto, este tipo de arquitecto, tem um poder enorme, mesmo em termos político-económicos. Os políticos sabem perfeitamente que um certo tipo de arquitectura lhes assegura aprovação; sabem que as pessoas esperam poder reflectir-se no evento de uma construção espectacular. É do que temos necessidade: de impressões imediatas, emocionalmente marcantes, de fascinação. As comissões devem poder votar de olhos fechados, ninguém aposta num projecto que se remeta ao julgamento do tempo: é agora ou nunca. Política-espectáculo, arquitectura-espectáculo. O que é curioso é que falemos de excepcionalidade da obra, de inventividade. Apesar de apenas o tempo poder aferir se se trata de uma verdadeira obra arquitectural. Em boa verdade, já não sabemos esperar.

Fabio Merlini: As tuas observações conduzem-nos imediatamente a uma outra noção chave da nossa contemporaneidade, que é a «imediatez». Pergunto-me: por que motivo chamamos hoje real apenas ao tempo que concretiza essa dimensão de imediatez? O que é, de facto, o «tempo real» senão a eliminação desse continuum, que é justamente o tempo como duração? Um tempo que se anula a si mesmo, é esse o tempo que alegamos ser o «real». Mas porque privilegiamos nós essa abreviação do tempo, porque a identificamos como sendo a própria realidade do tempo? Porque através da eliminação da duração, temos a ilusão de alcançar a dominação total do espaço, a dominação total das coisas. Pensamos, desse modo, poder dispor do mundo como bem entendermos, tê-lo à mão, poder manipular um a um os seus segmentos, as informações, os objectos, no momento preciso em que eles nos servem. O instrumento dessa possibilidade de manipulação no imediato –em virtude do qual o tempo, como tempo real, trabalha a sua própria eliminação– é a teletecnologia. A teletecnologia, isto é, a tecnologia dedicada à supressão das distâncias, é uma grande geradora de imediatez; é, na realidade, uma infraestrutura de mediação que actua de modo a suprimir-se enquanto meio. A imediatez do mundo, isto é, que este esteja ao alcance da mão –cujo emblema é hoje o iPhone– é o objectivo do tempo real. Mesmo que quando tudo está ao alcance da mão, entenda-se, nos ponhamos a nós próprios ao alcance do mundo. A razão profunda da imediatez é, portanto, a mobilização total e incondicionada dos indivíduos e dos seus recursos; a sua disponibilidade para estarem à disposição de imperativos e ordens, dispostos a traduzi-los em acções de elevado valor acrescentado. É o preço actual da mundanidade. Como já o disse antes, o tempo da imediatez é um tempo sincrónico, que inibe a organização das formas de vida articuladas pela dimensão progressiva da duração. Trata-se de um tempo pontual: a forma do tempo mais adaptada ao que se pretende estabelecer, ou seja, ao consumo. O tempo real é o tempo do consumo –um tempo que se renova pontualmente através do consumo. Mais precisamente, um tempo que as grandes mercadorias geram, sob as suas formas contemporâneas, enquanto tempo que lhes é próprio, um tempo para seu próprio consumo. Mas o processo pode também ser invertido: quando fazes da imediatez a medida do teu tempo e do tempo do outro, tudo se apresenta sob a forma de mercadoria. Vive-se de realidades que se predispõem ao consumo, que encontram no consumo a sua modalidade relacional específica.

Em grande medida, mesmo a cultura e a investigação não escapam, hoje, a esta lei. No domínio da arte figurativa isso é evidente. Tudo o que conta, isto é, tudo o que é monetizável enquanto parte de um portfólio de investimentos diversificado, apresenta-se sob a forma de evento, de um evento predestinado ao consumo e apresentado de forma mediática enquanto ponto de encontro obrigatório: o tempo do nosso dever estar (presentes). O evento-espectáculo é, portanto, a celebração do tempo real; é a encenação organizada de um consumo que espectaculariza criação e realização; é a sua própria provocação. Nasce com esse propósito. No caso da arquitectura a principal via desta lógica é o formalismo exasperado, a autorreferencialidade do estilo, que é um fim em si mesmo. Existe «barroquismo» em tudo isto.

Luigi Snozzi: Sim, estou plenamente de acordo...

Fabio Merlini: Há qualquer coisa de barroco neste modo de considerar as coisas, porque tudo se concentra numa busca obsessiva pelo efeito. É preciso espantar. Mas não para produzir situações de desorientação capazes de reposicionar o olhar sobre o mundo. Pelo contrário: para confirmar precisamente este mundo na sua manifestação legal, no seu objectivismo inultrapassável. Parece-me que deste ponto de vista a arquitectura partilha o mesmo cinismo que as artes figurativas. Como já o sublinhei, tudo deve ser ruptura, mas «ruptura» em relação a quê, se criação e realização são principalmente feitos do mercado? Questiono-me se em tais condições é ainda possível nascer uma «escola de arquitectura». É ainda possível, hoje, criar um movimento arquitectónico? Ou devemos nós contentarmo-nos em celebrar esta dezena de personalidades geniais, cujo trabalho é por definição irredutível a qualquer «escolástica»?

Esta autorreferencialidade do produto –a sua autossuficiência em relação ao contexto– pela qual o espaço de instalação é pensado unicamente como pedestal de uma encenação espectacular, reflecte a descontinuidade da experiência actual do mundo. É por essa razão que se torna cada vez mais difícil reflectir na ordem da praxis corrente uma imagem contínua do seu eu. Vivemos principalmente numa dimensão de não-relações: as informações, os conhecimentos, a ordem das nossas actividades quotidianas advêm da mais total dispersão. Compromissos, chamadas, objectivos, sucedem-se e, sobretudo, sobrepõem-se sem que possamos tirar o mínimo sentido da sua irrupção. A história já não pertence ao nosso horizonte de vida, desaparecendo assim o sentido da continuidade da nossa relação com o mundo e da nossa relação com nós-próprios.

A arquitectura contemporânea, através da espectacularização dos seus volumes, fala-nos justamente desta experiência da descontinuidade onde as mensagens e as informações, para poder tocar-nos e chamar a nossa atenção (consequência da hiperactividade dominante), devem apresentar-se sob a forma de eventos espectaculares. Nascem assim os grandes pólos arquitecturais e museais, onde confluímos com curiosidade, como confluímos para visitar qualquer destino turístico indicado nos guias. Pólos que são, em si, capazes de gerar um rendimento económico extraordinário e de redefinir o valor de um quarteirão ou até de uma cidade.

Luigi Snozzi: Grandes pólos de consumo...

Fabio Merlini: Realidades, diria, que penetram no nosso imaginário e contribuem a orientar o desejo do homo turisticus.


Luigi Snozzi: O único gesto transgressivo que estimo ainda ser hoje possível é um regresso inteligente à tradição. É o único gesto realmente eficaz. Penso em arquitectos como Álvaro Siza ou Souto de Moura, que não fazem parte do «belo mundo» da arquitectura: são aqueles que transgridem, trabalhando sobre a banalidade, a normalidade, e não sobre a originalidade ou sobre a procura da novidade a todo o custo. Ligam-se à tradição, colocando-a como ponto de partida para sair do processo de homologação.

Fabio Merlini: É aquilo a que chamas «resistir».

Luigi Snozzi: Sim, claro: a resistência. Não vejo outra forma de resistência a não ser esta. Gostaria de regressar ao que se disse antes a propósito do confronto de ideia ensinadas dialeticamente: confronto e conflito sobre argumentos fundados. A busca pela verdade, a construção da objectividade, pressupõe uma interação deste tipo. Mas a busca exasperada do efeito, na nossa disciplina, está sem dúvida ligada ao facto de que quando o interesse por este tipo de confronto desaparece não resta nada mais a não ser a afirmação da nossa própria subjectividade.

Durante as minhas aulas em Lausanne, lembro-me de explicar que um projecto deveria servir para resolver pragmaticamente uma certa ordem de questões, para responder a certas exigências, urbanas, estruturais, etc. Enquanto que hoje constato que falamos cada vez mais de emoções, de sensações, de elementos subjectivos. Tudo em detrimento de um ensino que explique como resolver questões objectivas (que agora desapareceram) ligadas ao contexto. Tenho a impressão de que um filão de arquitectura emocional está a formar-se.

Fabio Merlini: Vejo que te sai do bolso do casaco um pequeno livro de Stravinsky... que trazes sempre contigo!

Luigi Snozzi: Sim, trago-o sempre comigo. Aqui está o que diz Stravinsky a este propósito: «E é a isto que chamamos progresso? Sem dúvida. A menos que os compositores não encontrem a energia necessária para se libertar desta herança pesada, seguindo o admirável conselho de Verdi: ‘Regressemos ao antigo e isso será um progresso!’».

Quando afirmo que é preciso regressar à tradição, é exactamente isto que pretendo dizer. Para mim, a ideia de revolução e da sua necessidade continua actual. Mas como reconciliar revolução e tradição? Como harmonizar as duas posições? É, antes de mais, um problema existencial. Militei politicamente e depois afastei-me da actividade política, porque já não me reconhecia no partido no seio do qual militava. Fazíamos grandes discursos, era bastante ideológico, mas nem sempre via de forma clara a relação com a realidade das coisas. Resumindo: sentia-me desconfortável. Mas nunca deixei de me interessar pela política, pois assumia, e assumo ainda, que a realidade política desempenha um papel fundamental para o Homem.

De seguida, procurei respostas no meu trabalho pessoal enquanto arquitecto. A revolução deve ainda fazer-se, mas por que caminho? Stravinsky também fala disto. Catalogamo-lo como revolucionário, embora não se definisse como tal; ele via a revolução como uma ruptura violenta e insensata dos equilíbrios. Quando fazemos a revolução, provocamos também o caos. Enquanto que a arte pressupõe um processo inverso ao da revolução: não gera o caos, mas procura a unidade, a harmonia, que é o seu contrário.

A certa altura, quando era jovem, tornou-se muito difícil para mim continuar a militar pela esquerda, porque vivia a crise dos grandes ideais socialistas: Estaline, Lenine, a igualdade. Havia sido muito ‘fiel’: como outros, tive contacto com as Brigadas Vermelhas, com os seus vários ‘chefes’, que frequentavam o Ticino. Num certo sábado, precisamente uma semana antes de explodir a bomba que tinha plantado sob um poste de alta tensão em Segrate, veio o próprio Feltrinelli.

O que nos salvou, impedindo que nos tornássemos nós próprios terroristas (estivemos verdadeiramente no fio da navalha) foi recusarmos a fórmula: «primeiro a revolução, depois o trabalho e a cultura». Repetíamos que não, que era preciso fazê-lo em simultâneo, a cultura política e o trabalho. Continuámos os nossos estudos, o nosso compromisso profissional, enquanto que em Itália a maioria dos arquitectos politizados abandonavam o seu trabalho. Depois, começamos a ver as coisas de outra forma e a contestar esses modelos, essas ideias revolucionárias. Se não me tivesse virado para o trabalho, poderia muito bem ter caído no terrorismo, sem hesitações. Quando leio a história dos terroristas italianos, sei perfeitamente do que falavam; sei que entre o homem normal e o terrorista há apenas um passo, sobretudo quando se frequenta «mestres» cultos e competentes.

Devo a minha salvação ao trabalho, que tinha então um grande valor ideológico. Um valor que hoje desapareceu totalmente.

A adesão à ideologia foi também a nossa sorte. Quando via uma bandeira vermelha, um retrato de Fidel Castro ou de Che Guevara, sentia uma emoção incrível. A ideologia foi o motor, a motivação até, do nosso trabalho e do nosso envolvimento. Hoje, pelo contrário, vejo estudantes que já não têm qualquer ideologia, a não ser a do capitalismo generalizado; estão perdidos, já não têm um ponto de referência. E a ideologia –continuo persuadido– é um ponto de orientação fundamental, que te dá força para pensar e fazer de outra forma. Como, por exemplo, para realizar o que Frampton chamou «projectos de guerrilha»: uma espécie de contra-projectos que comecei a elaborar gratuitamente no seio da Comissão para a protecção das belezas naturais do Cantão do Ticino, com o intuito de mostrar aos seus membros o porquê de criticar os projectos apresentados.

Fabio Merlini: Quando penso nesses anos –que conheço de forma indirecta, tendo em conta a minha idade– parece-me que podemos dizer que evidenciam perfeitamente o risco contido em qualquer ideologia, isto é, o risco de se tornarem um vazio. Há em toda a ideologia uma dimensão visionária que, por um lado, ajuda a não elevar o real à categoria de norma absoluta das nossas acções, mas que, por outro lado, se não for temperada por um realismo razoável escapa ao controlo e transforma-se em delírio mais ou menos partilhado, que exalta lógicas completamente desligadas de qualquer análise objectiva. A tua observação sobre o trabalho é, neste caso, primordial. Porque o trabalho foi o que permitiu à ideologia não entrar num processo de abstracção vicioso e perverso; foi o que lhe permitiu enraizar-se, por assim dizer, num terreno de objectividade que seja possível medir. É graças a um confronto deste tipo que pode nascer a inovação capaz de dar início à própria «objectividade» e, portanto, de abrir novos horizontes.

Sem esta imersão na objectividade, a ideologia não encontra limites –os limites que ela pretende ultrapassar– e corre o risco, como já o disse, de passar de visionária a delírio fanático.

A ideia que tens do projecto é animada, parece-me, pela presença da ideia de verdade. Mas que papel desempenha esta ideia na época pós-moderna? Coloco esta questão porque uma grande parte das reflexões críticas sobre o presente traem uma certa intolerância face a inúmeras «conquistas» pós-modernas. O problema da relação de cada um com a verdade não é apenas de ordem epistemológica, mas também ética. Quando te ouço falar –e talvez esteja aí a tua inactualidade– parece-me claramente que a tua preocupação pela verdade do projecto, pela sua capacidade em integrar-se objectivamente num contexto, depois de se ter confrontado seriamente às condições que fixam a sua liberdade criativa, é antes de mais uma questão ética –este «estar em ordem» a que tu te referes. Por detrás desta preocupação está, no meu entender, uma questão que é sobretudo existencial. Colocar-se a questão da verdade significa, em primeiro lugar, sintonizar a vida com uma realidade que transcende a expressão da individualidade subjectiva. Uma realidade à qual a existência e as suas manifestações se podem comparar.

Deste ponto de vista, a verdade opera enquanto alteridade, que fixa um limite ao desejo de dominar, próprio daquilo que Nietzsche chamaria a vontade de poder da vida. Neste sentido, mais modestamente, diria que a referência à verdade age como um medicamento contra as patologias do narcisismo e da autorreferencialidade: as duas grandes tentações de toda a actividade criativa. Sei bem que de cada vez que se fala de verdade corremos o risco de cair no dogmatismo. E é certamente um dos méritos do pós-moderno mostrar-nos como a afirmação da verdade, o discurso sobre os fundamentos, pode ser um efeito do poder para discriminar, para excluir, para pôr fora-de-jogo as posições contrárias. É por essa razão que o pós-moderno constituiu para muitos, desde o fim dos anos setenta, um factor de emancipação e de libertação. Contudo, o facto de hoje se separar a praxis de qualquer ideia fundacional mostra também, com uma evidência constrangedora, o seu lado sombrio e perverso. Como por exemplo na política, onde tudo é agora possível, onde a coerência deixou de ser um valor, onde qualquer afirmação pode ser tranquilamente contradita de seguida. Ou então, de forma mais generalizada, ao nível dos próprios comportamentos: o pudor, a responsabilidade social e a lealdade tornaram-se destroços prontos para a sucata. Sem falar da desorientação: um estado de alma que nos acompanha no quotidiano –terreno de cultura excepcional para a afirmação do populismo e das promessas de salvação dos novos gurus.

A nossa imersão total na instabilidade faz de nós sujeitos continuamente confrontados com uma fragilidade, que já não é apenas aquela, tradicional, da «condição humana». É uma exposição incessante aos caprichos de um presente que já não reconhecemos, para o bem e para o mal, como veículo da rotina. A mobilidade assume-se hoje como rosto do desmantelamento, de uma mobilização sem vizinhança à qual somos convidados hoje para acompanhar o ritmo dos acontecimentos. Um efeito da liquefação da materialidade do mundo, da qual a economia especulativa e o capitalismo teletecnológico são factores determinantes, é a insignificância do princípio da não contradição. Dever reinventar-se quotidianamente, como se devêssemos a cada dia reinventarmo-nos a partir do zero, actua como factor de incoerência das nossas biografias. O que nos empurra, sob a forma de reacção, na direcção de uma reapropriação hiper-individualista do eu, com efeitos deletérios sobre a educação do vínculo social.

Assim sendo, também na arquitectura o risco é o de nos encontrarmos face a edifícios-mónadas que já não comunicam entre si, porque cada um quer falar e fazer falar apenas de si próprio. Também nesse caso, tudo o que importa é fazer mercado e o instrumento utilizado para o fazer é exactamente a autorreferencialidade da obra. Não é por acaso que esta autorreferencialidade reflecte a autorreferencialidade característica do presente no qual estamos mergulhados: um presente que se auto-certifica declarando a sua indiferença face ao passado e ao futuro. «Ao passado»: porque nada do que foi merece sobreviver quando tudo está sujeito à inovação. «Ao futuro»: porque se podemos ainda falar de futuro, é sempre e apenas como futuro do presente, enquanto afinação das suas lógicas e aumento dos seus recursos. É a naturalização do presente: tudo o que há de mais ideológico.

Como já referi, falamos constantemente de inovação, mas na prática a inovação corre o risco de se apresentar hoje como uma força de conservação. Do meu ponto de vista, este mecanismo é uma das razões principais do impasse em que se encontra actualmente o tempo. Quando leio –e isso acontece frequentemente– que «o futuro já chegou», pergunto-me: existe algo mais frustrante do que uma mensagem publicitária como essa? Já não temos nós o direito de acreditar num futuro diferente do que veicula a nossa contemporaneidade? Fim de toda a tensão utópica. Fim de toda a diferenciação temporal. Ergo: fim do sujeito da História.

Dizer «o futuro já chegou» quer dizer que já lá estamos, num sentido preciso. Que entre aqui e , não há diferença alguma, a não ser quantitativa: cada vez mais rápidos, eficientes, produtivos. A lógica do evento, como condição para nos podermos tornar visíveis, é uma ferramenta às mãos do processo de indiferenciação do tempo, ou seja, deste mecanismo pelo qual o presente, o presente das nossas praxis actuais, evoca para si tanto o passado, espelho no qual pode ler a sua própria emancipação, como o futuro, horizonte no qual se pode ler a sua própria realização, a sua própria confirmação, o seu próprio potencial. Nada parece ser capaz de quebrar essa continuidade de fundo que se nutre da descontinuidade, da inovação, da transgressão.

Regressando à arquitectura contemporânea, o que as suas formas ousadas, os seus volumes e a originalidade das suas soluções manifestam como inovação revolucionária, devemos nós aprender a ler como expressão da sua imobilidade. É a imobilidade pela qual o presente actual afirma o seu direito a «não passar». O presente, que na lógica linear do tempo se prepara para o sacrifício e, portanto, a tornar-se passado, foge hoje dessa lógica do tempo, para se afirmar como presente eterno.

É por esse motivo que reconheço que a provocação é hoje, na verdade, conservação. É-o pela sua incapacidade em «convocar» (vocare) o tempo «por vir» (pro). Em vez de projectar o tempo, a provocação da forma é apenas capaz de reunir em si o interesse do público, encerrando-o no seu próprio círculo, bloqueando-o no seu interior. Assim, a forma paralisa-o, transformando-o em admiração: starchitecte.

Durante a vaga de grandes projectos de renovação social do século XIX e das «revoluções de emancipação» do século XX, os anos de contestação eram ainda capazes de atribuir ao futuro um papel estratégico de provocador implacável do presente. E isto, baseando-se sobre uma ideia da História herdada das filosofias dos séculos XVIII e XIX. «Provocador implacável»: porque o futuro, nos anos 70, tinha o papel de voz da consciência, capaz de antecipar e de provocar um estado de coisas inscrito ainda antes de o ser, na vontade de quem sabe ler os sinais do tempo, da continuidade do seu movimento. «Conservador» era aquele que, por interesse ou miopia, negava essa continuidade necessária do tempo; «progressista» era, pelo contrário, aquele que para além de o reconhecer fazia tudo para acelerar os seus efeitos. Apesar da indubitável presença de uma dimensão fortemente reguladora e necessitante –graças à qual parecia então possível renovar algo como uma «ciência política da História» – e apesar de todo o dogmatismo induzido por uma posição deste tipo, o futuro, na perspectiva desses anos, apresentava-se de novo como uma abertura que podia acolher grandes projectos de liberação, de autonomia, de emancipação. Mais ou menos os mesmo que nós, enquanto órfãos da História que somos, projectamos sobre a Rede, as biotecnologias, a bioengenharia.

O nosso confronto com a categoria «política» do futuro, pelo contrário, é inibida pela crise da própria ideia de civilização, pelos limites estruturais fixados aos nossos projectos de expansão e, por último, por uma crise de legitimação que os danos sociais e ambientais se limitam a acentuar. A resposta a esta dupla crise não é unívoca. As posições parecem repartir-se entre comportamentos responsáveis e comportamentos altamente irresponsáveis. Entre os processos de desresponsabilização, citarei apenas um: a infantilização do utilizador. Em retrospectiva, não há nenhum objecto destinado a ser utilizado que não procure incorporar a possibilidade de oferecer a quem o utilize uma experiência lúdica. O divertimento afirma-se sempre como regra da produção. Ao utilizar, devo sempre poder divertir-me: devo fazê-lo enquanto comunico, enquanto consumo, enquanto aprendo. A simplificação lúdica é o espectáculo ao qual nos prestamos a participar no quotidiano, a festa contínua, a promessa e o fracasso com que os objectos e os eventos se apresentam, captando o nosso interesse. Isso faz parte dessa distração generalizada de que falava.

Tomo a liberdade de terminar a nossa conversa observando que o que é para ti a resistência, Luigi, é para mim o exercício inexorável da crítica: o olhar sobre as coisas do ponto de vista do sofrimento. Este sofrimento vivido individualmente, que toda a organização de uma sociedade, por muito «reformada» que seja, implica. E que, de forma demasiado frequente, é submersa por vociferações satisfeitas, ver arrogantes, a propósito do potencial dos instrumentos e conhecimentos produzidos graças às nossas habilidades e à nossa obstinação. Algo de que podemos estar orgulhosos, mas...

 

 

Fabio Merlini

Filósofo, Director do Gabinete Regional para a Suiça Italiana do Istituto Universitario Federale per la Formazione Professionale (IUFFP), professor visitante na Universidade de Lausanne e presidente da Fundação Eranos desde 2010. Entre 1996 e 2000, codirigiu o grupo de investigação sobre ontologia da História nos Arquivos Husserl (École Normale Supérieur de Paris).

 

Luigi Snozzi

Arquitecto diplomado pela ETH Zurique. Entre 1962 e 1971, trabalhou em associação com Livio Vacchini e, posteriormente, por conta própria. Em 1985, foi nomeado professor na École Polytechnique Fédérale de Lausanne.

 

Imagens

1. «Com a arquitectura não se faz uma revolução, mas a revolução não é suficiente para fazer arquitectura: o homem precisa de ambas», L. Snozzi, 1973-75.

2. «Nada é para inventar, tudo é para reinventar», L. Snozzi, 1973-75.

3. «Toda a intervenção pressupõe destruição, destruir com sentido», L. Snozzi, 1973-75.

4. «O projecto, antes de ser instrumento de transformação, é instrumento de conhecimento», L. Snozzi, 1973-75.

 

Nota de edição

Aproveitando o repto lançado por ‘arquitectura e «pessimismo», 'Sobre o projecto: espectáculo, tempo e ideologia' é o primeiro de uma série de textos escolhidos com o propósito de (fazer) pensar sobre a produção do mundo e da sociedade a partir e através da arquitectura contemporânea. Por outras palavras, para reflectir sobre a condição política: não só da arquitectura –enquanto profissão, disciplina e prática artística– como das/dos que a trabalham e das/dos que a habitam.

A conversa entre Fabio Merlini e Luigi Snozzi, da qual se publica aqui uma sequência de excertos seleccionados, teve lugar a 3 de Dezembro de 2009, em Locarno. Integra originalmente uma recolha de textos dos autores publicada em italiano com o título «L’architettura inefficiente» (Edizioni Sottoscala, 2014). A versão portuguesa foi traduzida por João Paupério, para o Jornal Punkto, apoiando-se na versão francesa «L’architecture inefficiente» (Éditions Cosa Mentale, 2016). As imagens seleccionadas para acompanhar o texto –aforismos escritos por Luigi Snozzi entre 1973 e 1975–  assinalam os saltos na conversa. Anteriormente intitulada 'Conversa II', optou-se nesta edição por atribuir-lhe um título que sintetize e exponha as principais questões nela abordadas.

A oportunidade da sua publicação serve ainda de homenagem a Luigi Snozzi, que faleceu a 29 de Dezembro de 2020, aos 88 anos, devido a complicações decorrentes da Covid-19.

 

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 05.01.2021

Edição #30 • Inverno 2021 •