Evan
Calder Williams — Talvez um bom
ponto de partida seja falar de uma das tendências explícitas às quais, e contra
as quais, o livro trata de responder: a tendência de analogizar o
fascismo. Mais especificamente, na última década e no que respeita a regimes
autoritários e/ou populistas como a presidência de Trump, isto reflectiu-se em
debates sobre se uma determinada tendência ou um determinado momento deviam ou
não ser compreendidos através da analogia histórica com o fascismo. Estes
debates sustentam-se invariavelmente num modelo relativamente rígido daquilo
que foi, supostamente, o fascismo. O modo como o Alberto Toscano diagnostica e
desmantela efectivamente este modelo é, quanto a mim, um dos contributos mais
notáveis do livro e conduz a um outro aspecto que me parece especialmente
fecundo: um pluralismo metodológico que refuta a imagem do fascismo como uma
forma monolítica ou estática. Assim, para começar, Alberto Toscano, pode
delinear o modo como o livro se debate com esta questão das analogias do
fascismo e dos seus limites políticos?
Alberto
Toscano — Eu suponho que, como tantos outros projectos e tendências
intelectuais, este tenha começado com uma irritação ou uma frustração — no meu
caso, uma irritação relativamente ao que parecia ser uma inflexão necessária e
talvez mesmo inevitável desses debates e o modo extremamente restritivo e
selectivo como esta ocorria, o modo como as teorias do fascismo e mesmo a
terminologia e as histórias do fascismo eram empregues. Houve uma polarização
muito rápida, tanto no discurso público como nas intervenções académicas, entre
dois argumentos. Um deles era o argumento bizarramente repetitivo de que «estamos
de novo em Weimar». O outro era que estando ausentes os elementos constitutivos
ou elementos-chave do fascismo, esse termo seria, portanto, desviante e devia
ser descartado. Este argumento envolveria ou a selecção de um conjunto de
elementos associados a regimes, movimentos e ideologias fascistas do período
entre guerras ou um fascismo genérico mais abrangente de um tipo ideal, que
estabeleceria uma lista dos elementos essenciais do fascismo ou uma cronologia
dos passos que levariam ao fascismo. Isto pareceu-me, por uma série de razões,
insatisfatório. Entre essas razões, um dos problemas cruciais, como sugere,
está no facto de se projectar sobre o fascismo uma coerência monolítica da qual
este carecia e que, inclusive, repudiava explicitamente.
ECW
—
Gostaria de tentar destacar aquilo que considero ser a importância e os desafios
para superar essa carência e esse repúdio. Relativamente àquilo que o Alberto
Toscano referia como o «pluralismo» do livro, isso acontece em duas frentes.
Uma parte diz respeito ao método e ao modo como expande criticamente o alcance
do pensamento sobre o fascismo para lá das referências estreitas e familiares
desses debates. Isto acontece, sobretudo, quando se considera o modo como a
ideia de fascismo foi formulada e reformulada no contexto do radicalismo negro,
mas também quando se percorre a Escola de Frankfurt, os estudos sobre a
personalidade autoritária e as considerações sobre a economia libidinal e
monetária dos fascismos. Mas outra parte envolve o modo como o Alberto Toscano lê
o próprio fascismo e como argumenta que devíamos conceber o fascismo como uma
forma pluralista e recombinatória, cuja força reside na capacidade de acoplar,
por vezes de modos aparentemente impossíveis ou implausíveis, elementos
contraditórios, memórias arcaicas e significantes desvinculados de momentos
históricos. Pode falar sobre o pluralismo do próprio fascismo?
AT
—
Em determinado momento da minha pesquisa um tanto indisciplinada, fiquei bastante
impressionado com um ensaio dos anos 20 que Mussolini escreveu no jornal em que
era editor, Il Popolo d’Italia, chamado «Relativismo e Fascismo». É um
ensaio bastante notável onde Mussolini escreve: «O fascismo é a única forma
política moderna». Trata-se de um argumento absurdo a um certo nível, mas
também revelador. Para ele, tratava-se da única forma política moderna por ser
a única a aceitar plenamente a forma da ciência moderna, que é o relativismo.
Ele menciona Einstein, claro. Como é que o fascismo é moderno nesta
perspectiva? Na medida em que é simultaneamente aristocrático e
anti-aristocrático, monárquico e anti-monárquico, proletário e anti-proletário,
etc., e a única coisa que o define é o exercício de uma vontade política
violenta (ou algo dentro dessa linha). Podemos ver uma tendência, que é muito
evidente e ostentada por Mussolini nos primeiros anos do fascismo, em que os
programas fascistas articulam desde o pseudo-socialista até ao pseudo-liberal,
até ao mais estatista. Portanto, ele já é plural.
Esta
qualidade da pluralidade e a habilidade da articulação também se reflectem
nalguns dos mais interessantes teóricos do fascismo, desde George Mosse, que o
descreve como uma ideologia necrófaga, a Nicos Poulantzas, que apresenta um
argumento muito mais complexo — e penso que muito interessante — num ensaio
intitulado «O Impacto Popular do Fascismo». Neste texto, ele afirma que um dos
aspectos distintivos do fascismo é a capacidade de produzir, em simultâneo,
diferentes discursos para diferentes fracções ou facetas do seu eleitorado. Não
se trata apenas de um movimento inter-classes, mas de um movimento inter-classes
que é explícita e deliberadamente pluralista no seu discurso. Ainda que
manifeste uma retórica de organicismo, de coerência e unificação, etc., de
facto, é profundamente cínico e estratégico ao apresentar uma linha
pseudo-socialista aos trabalhadores enquanto apresenta uma narrativa muito
diferente aos industriais.
Penso
que isto também revela outra coisa. Um dos aspectos curiosos para mim é que em
todos estes discursos analógicos, sobretudo no discurso anglo-americano ou no
discurso da anglo-esfera, o fascismo é estranhamente identificado com o
nazismo, o que me deixa perplexo. Isto conduz à ideia de que, por actualmente
as coisas não serem suficientemente graves ou extremas, por não corresponderem
ao extremismo e à enormidade do nazismo, então estes processos políticos não
podem ser abordados através da linguagem do fascismo. É interessante pensar
sobre como não era nada óbvio nos anos 30 que o nazismo fosse uma forma de
fascismo, até para os próprios nazis e para os fascistas italianos.
Em
oposição a isto, o livro fala do fascismo de uma maneira muito mais abrangente,
que é algo que, em parte, vou buscar aos
pensadores radicais negros anti-fascistas, bem como a algumas das vertentes
mais interessantes dentro da Escola de Frankfurt e de muitos dos debates dos
anos 70 que me interessam.
ECW
—
Isto leva-nos a um dos compromissos mais importantes do livro, ao qual eu já
aludi: o modo como o Alberto Toscano toma seriamente o uso da categoria e do
termo «fascismo» por pensadores radicais negros, especialmente Angela Davis e
George Jackson, bem como pelos Panteras Negras e por Cedric Robinson. Uma das
coisas cruciais que isto faz é comprometer-se com uma escrita e um pensamento
que, com demasiada frequência, foi e continua a ser enquadrado como se, nele, o
termo «fascismo» fosse apenas uma hipérbole ou apenas uma palavra para «terrível»
ou «repressivo». Mas outra das consequências chave desta reviravolta do seu
livro é o modo como desloca o centro do pensamento sobre o fascismo, movendo-se
em direcção ao contexto do encarceramento e das lutas abolicionistas e
afastando-se do centro do nazismo como uma espécie de teste decisivo ou limiar.
Isto também significa distanciar-se do foco mais familiar na militarização e na
guerra entre poderes soberanos, na máquina de guerra, no Estado e no aspecto de
culto da morte de vários fascismos, especialmente do nazismo. Penso que isto é
bastante significativo. Pensar antes nas estruturas dos sistemas carcerários e
nos processos que sustentam continuamente a supremacia branca altera
fundamentalmente aquilo que se julga ser o limiar do fascismo. O que se ganha
com este afastamento de um certo tipo de guerra inter-estatal para dar lugar ao
foco nos regimes actuais de racialização e encarceramento? Como é que isso
transforma a nossa compreensão do fascismo?
AT
—
Começaria por dizer que não se trata de prisão ou guerra. Por outro
lado, penso que o que está em causa é uma sensibilidade, uma sensibilidade
politicamente incorporada e organizada, associada a modalidades de guerra e de
dominação que, por uma variedade de razões muito explícitas, não se manifesta.
Muitas pessoas falaram amplamente sobre isto e, provavelmente, de forma mais
esclarecedora do que eu. Estou a pensar em «Forced Passages», de Dylan
Rodriguez. Ou em «The US Antifascism Reader», de Bill Mullen e
Christopher Vials, que avança com a ideia de que há lugares sociais associados
a classes ou a grupos racializados — e, obviamente, muitas vezes lugares de
violência colonial — onde a norma liberal pode aparecer como uma prática
regionalmente fascista. É também aí que surge este discurso — algo problemático a nível retórico — daquilo
que está a ser testado ou do que está a ser administrado a certos sectores da
população. É uma versão intra-estatal do fascismo. É como um efeito boomerang,
mas dividido segundo a cor e segundo outras linhas. É por isso que penso que o
paradigma da guerra continua a ser importante. Estou a meio da leitura do livro
«Tip of the Spear», de Orisanmi Burton, sobre a longa revolta da Ática.
É extremamente brilhante no modo como apresenta esse prisma e paradigma da
guerra tal como foi experienciado, mas também pensado e teorizado por pessoas
envolvidas em revoltas nas prisões e por revolucionários na prisão. Esta é uma
parte crucial do contexto.
Há
uma tendência para ver esse pensamento [dos revolucionários em prisões] como
estando integrado num discurso muito rígido sobre o fascismo. Se olharmos para
o que estava nas prateleiras de George Jackson na sua cela [quando os livros
não foram confiscados], há muitas coisas interessantes e uma grande variedade.
Georgi Dimitrov. Há um livro de June Jordan e toda uma série de outras coisas.
Mas também há muito daquilo que, de um ponto de vista puramente teórico, se
pode pensar que são teorias muito rígidas e limitadas da Terceira Internacional
sobre o fascismo. No entanto, são-lhes dados usos muito diferentes por Jackson.
Penso que isso é outra coisa: é preciso ter uma compreensão alargada do
funcionamento destas teorias.
Como
sugeriu, a certa altura, é inevitável que as pessoas digam: «Sim, mas o pior
momento para a teorização do fascismo foram os anos 1970. As pessoas chamavam
fascista a toda a gente. Quer fossem os Panteras [Negras] ou a extrema-esquerda
italiana, francesa ou palestiniana, ou qualquer que fosse, este termo foi
inflacionado e precisamos de uma definição muito mais sóbria, científica e
historicamente fundamentada». O meu pensamento, sobretudo por causa do momento
que atravessamos, tem muito mais em comum com o que estava a ser pensado e dito
nos anos 70. Muitos dos impasses em que nos encontramos, incluindo uma certa
concepção do neoliberalismo, têm a sua origem nesse momento. Porque não voltar
a esse arquivo e a esse tempo e reflectir através dele?
ECW
—
Uma das coisas que este livro atravessa com uma minúcia notável são estes
debates muito espinhosos em torno da psicodinâmica do fascismo. Também aqui há
versões que podem ser simplistas e reducionistas, vendo o fascismo como uma
mera aberração ou psicose de massas, o tipo de argumentos contra os quais
Alfred Sohn-Rethel e outros trabalharam. Mas o livro também tenta considerar
seriamente, não apenas pensadores específicos, mas também histórias das formas
complexas como certos imaginários temporais ou históricos são mobilizados — e
frequentemente mobilizados de formas que podemos considerar como variantes dos
golpes ou das manipulações do fascismo. Isto ajuda-nos a superar uma certa
versão de pensamento sobre o fascismo como sendo simplesmente uma espécie de
lógica restauracionista, mesmo que possamos discernir formas disso em casos
como a fantasia do MAGA [Make America Great Again], de um «retorno»
pós-guerra à prosperidade racial e à prosperidade do capital. O Alberto Toscano
tem uma excelente frase na qual se refere, penso eu, à «modernidade
remanescente de um pacto pós-guerra», que me parece absolutamente precisa neste
caso. Assim, dado que uma parte crucial da sua abordagem vem de Ernst Bloch e
de outros pensadores da assincronicidade [Ungleichzeitigkeit], gostaria
de o ouvir falar mais sobre o modo como pensa a questão da assincronicidade
e das activações do arcaico ou do mítico.
AT — Vou começar
pela sua menção de Bloch, que foi, mais uma vez, uma das inspirações ou um dos
catalisadores para tentar pensar contra aquilo que me parecia insatisfatório
nalguns dos debates contemporâneos. O que é realmente impressionante no livro
de Bloch sobre o nazismo, «Heritage of Our Time» [Erbschaft dieser
Zeit], é a sua noção de não-contemporaneidade, em que ele assume a
centralidade da não-simultaneidade, do desenvolvimento capitalista
não-simultâneo e combinado, etc… O fascismo funciona como ideologia e factor de
síntese, não só para as potências imperialistas tardias, como a Itália e a
Alemanha. Serve também para os países que estão a viver a simultaneidade de um
mundo em transformação através da modernização e da industrialização, e a
presença continuada de uma base de massas camponesas e fundiárias.
Bloch
escreve sobre isto num plano material, mas também num plano psíquico. Tenta
identificar a presença desta ideologia arcaica, à qual atribui uma posição de
classe. Basicamente, o argumento inicial que apresenta é que existem classes
síncronas e assíncronas. De certa forma, o operário e o proprietário da fábrica
estão a viver no presente. Mas, de formas diferentes, todos os outros não
estão. Isto pode ser discutível. Mas, quer se trate do junker ou do
trabalhador de escritório déclassé, ou do aristocrata decadente, todos
eles estão a viver simultaneamente no presente e fora dele. A força do nazismo
está na sua capacidade — e isto remete para o pluralismo ou relativismo do
fascismo — de participar nesta síntese.
A
primeira vez que li isto pensei: é como tentar escrever sobre o fascismo em
2017. Há algo de muito curioso quanto ao nosso presente. Penso que, nalguns
sentidos, ainda é verdade que estes movimentos neo-fascistas e autoritários
ressurgentes de vários tipos, todos com as suas características locais, por
assim dizer, têm uma forma muito estranha de não-contemporaneidade. A nostalgia
pelo passado a que se pretende regressar é, na verdade, um fenómeno
relativamente recente e curiosamente pós-fascista. Trata-se de uma nostalgia
pela sincronicidade ou um desejo de ser contemporâneo. É claro que o nosso
presente tem todo o tipo de assincronias, mas pareceu-me um traço marcante. Suponho
que uma das funções mutáveis do mito pode ser a de afectar variações dessa
síntese temporal, de criar uma síntese disjuntiva que conecta estes elementos
heterogéneos de forma convincente e mobilizadora.
ECW
—
Vamos deter-nos no mito por um momento. Penso que é crucial convocar Furio
Jesi. O trabalho dele é fundamental para o seu livro e, além disso, o seu
contributo tem sido central para aproximá-lo a um público de leitores em língua
inglesa. Pode falar um pouco mais sobre o trabalho de Jesi e sobre o que o seu
pensamento, em particular, traz para uma reflexão sobre o fascismo tardio?
AT
—
Para aqueles que não conhecem Furio Jesi — bem, muitas pessoas no seu próprio
país não o conhecem. Ele é uma figura fascinante, uma figura insanamente
prodigiosa. Abandonou a escola aos catorze anos para se tornar egiptólogo,
publicou aos quinze em revistas de destaque e trabalhou em escavações
arqueológicas. Eventualmente, acabou por trabalhar para editoras, como fizeram
muitos intelectuais em Itália nos anos sessenta e setenta e escreveu livros
como germanista e mitólogo. Escreveu também um fantástico romance de vampiros
como alegoria política do presente, chamado «A Última noite» (L’Ultima Notte)
— é um projecto a que Evan e eu devíamos
voltar. Depois escreveu um livro, pouco antes da sua morte acidental devido a
uma fuga de gás, em 1980, um livro sobre a Revolução Espartaquista, chamado «Spartakus:
Simbologia da Revolta» (Spartakus. Simbologie della Rivolta).
Ainda
hoje, a extrema-direita italiana odeia profundamente este livro. Isto deve-se,
em parte, ao facto de ser um livro muito corrosivo e abrasivo sobre a forma
como figuras como Evola, mas também Jünger e Eliade, criaram aquilo a que ele
chama, não só uma cultura de direita, mas uma cultura de direita que se baseia,
por um lado, naquilo a que ele chama religio mortis, ou uma «religião de
morte», e, por outro lado, em torno daquilo que ele vê como formas de luxo
espiritual que ele questiona e critica. Em particular, ele ataca o que
considera ser a mercantilização e a banalização [no original, Trinketization,
sendo que trinket que pode ser traduzido como «bugiganga»] da história,
que a transforma, como ele diz, numa «substância maleável» que pode ser usada e
reutilizada para qualquer fim. Jesi estava a lidar com uma cultura de
neo-fascismo ou pós-fascismo que tem estado estranhamente presente em muita da
extrema-direita contemporânea, incluindo nos Estados Unidos, quer se trate de
Steve Bannon a citar Evola, ou de pessoas a republicar Spengler, e tudo isso.
A
crítica liberal do fascismo tem a sua própria versão da crítica do mito, na
qual temos, por um lado, uma racionalidade política baseada em determinadas
concepções da liberdade, da subjectividade, etc., e, por outro lado, o fascismo
como esta forma regressiva que tenta recuperar o mito para a modernidade.
Seguindo Benjamin e Adorno, Jesi tem uma compreensão muito mais dialéctica e
rica em nuances de como, evidentemente, o próprio capitalismo produz estas
formas de mitificação. De facto, elas não são, num certo sentido, regressivas.
São inventadas num dado momento e para esse dado momento. Isto relaciona-se
com algo que achei muito interessante em
Adorno. No seu ensaio «A Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda» [Die
Freudsche Theorie und die Struktur der faschistischen propaganda], ele
escreve: «Ao contrário do que muita gente pensa, as massas fascistas não
acreditam realmente nos seus líderes». Trata-se de uma forma daquilo a que ele
designa como «falso fanatismo». Já envolve uma grande quantidade de
reflexividade, de cinismo e encenação. E Adorno diz: «Isso não o torna menos, mas
ainda mais violento na sua resposta». Um dos problemas da forma como o fascismo
é muitas vezes teorizado a partir de um ponto de vista liberal normativo, com
todos os seus pressupostos, é que o sujeito fascista é visto como um sujeito
iludido, como se este se permitisse acreditar num mito de uma forma totalmente
identificatória e totalizante. Achei que Jesi, juntamente com Adorno e outros,
eram úteis para pensar, no sentido de contrariar esta ideia.
ECW
—
Quero voltar a esta questão da falsidade. Mas antes de deixar Jesi, um aspecto
que considero especialmente forte no seu trabalho e que vale a pena destacar
aqui é a forma como este também reflecte sobre os tipos de operações
linguísticas em que o fascismo se baseia. Em particular, tenho em mente a sua
noção de «ideias sem palavras» e a forma como descreve um certo corte ou
ruptura na relação com a linguagem e o significado. Uma das formas que
identifica é a recorrência a palavras abstractas «em maiúsculas» que nada
significam. “L” maiúsculo de Liberty, “F” maiúsculo de Freedom.
Nas últimas décadas, isto parece ter assumido a forma evoluída de composições
ridículas: Liberty Gas [Gás da Liberdade], Freedom Fries [Batatas
fritas da liberdade] , etc.
AT
—
Sem dúvida, e acrescento que a expressão «ideias sem palavras», utilizada por
Jesi, é retirada de um livro fascinante e inquietante do escritor conservador
revolucionário, e autor do famoso «O Declínio do Ocidente» [Der
Untergang des Abendlandes], Oswald Spengler. «A Hora da Decisão» [Jahre
der Entscheidung], de Spengler, foi de facto, a certa altura, proibida
pelos nazis, porque ele não era um conservador revolucionário que lhes
agradasse de todo. Jesi envolve-se profundamente na sua obra. De facto, ele
edita e retraduz «O declínio do Ocidente”. Um dos aspectos de Spengler que Jesi
considera realmente interessante, e a razão pela qual se interessa por outras
figuras da extrema-direita intelectual, espiritual ou cultista, é a filosofia
do tempo. Isto não é insignificante para o momento em que vivemos. O fascismo é
uma filosofia pessimista da história, muito explicitamente, incluindo a
utilização que Mussolini faz do termo «pessimismo» em certos momentos. É claro
que há toda uma pulsão de morte do Nazismo. É algo de significativo no que
respeita ao imaginário nazi, na sua terminologia do Reich milenar — Albert
Speer planeia, como arquitecto, construir a Germânia, a futura capital da
Alemanha, de tal modo que as suas ruínas sejam belas para as futuras raças e
povos, que não serão arianos ou alemães. Isto é um desvio face ao facto de eu
achar que este pessimismo é importante e interessante. Pelo menos, é o que Jesi
defende. Ele está vinculado a uma ideologia do sacrifício no imaginário
fascista. Jesi cita uma frase célebre de um general falangista que entra nos
corredores da Universidade de Salamanca a gritar: «Viva la muerte. Abajo la inteligência».
«Viva a morte, abaixo a inteligência». É um slogan fascista muito apropriado.
Este
pessimismo tem uma afinidade angustiante com certos imaginários do declínio, do
colapso ou da degradação. Penso que seria um erro interpretar os mitos ou a
filosofia do fascismo como sendo aqueles que acreditam mesmo que vão criar uma
Roma eterna ou alguma forma duradoura de supremacia branca. Não creio que seja
necessariamente o caso. Penso que é também por isso que temos também a dimensão
niilista e a dimensão sacrificial. Spengler é interessante porque é explícito
quanto a esse pessimismo, na sua obsessão pelo declínio das civilizações. Em «A
Hora da Decisão», o livro que Jesi cita, há uma passagem em que a figura-chave
da subjectividade é a dos corpos calcificados, petrificados pela lava da
erupção em Pompeia. Portanto, a figura da subjectividade para Spengler é a do
guarda, o guarda romano que, mesmo sabendo que o vulcão entrava em erupção, não
abandonou o posto, o que é uma versão insana daquilo que significa ser um sujeito
ou mesmo um ser humano. Mas essa é a imagem de Spengler: a catástrofe
aproxima-se e este guarda enfrentou-a como um homem. É uma versão particular de
uma temporalidade extremamente marcada pelo género. Se pensarmos apenas: «Ok, o
fascismo é o estado totalitário e monolítico que quer controlar tudo o que
fazemos», então não alcançamos realmente uma compreensão destas outras
especificidades do fascismo.
ECW
—
Entre outras especificidades, há duas que já foram mencionadas e que gostava de
retomar: a falsidade do fascismo e a sua «ideologia necrófaga» ou a forma como
envolve uma bricolage ideológica. Entre as tendências que me parecem
especialmente potentes dentro dos processos contemporâneos do fascismo tardio,
estas têm revelado uma importância crescente, especialmente no modo como
permitem uma contínua re-implementação de clichés e signos des-historicizados
que tanto se referem às ideologias fascistas como as esvaziam de seriedade,
aparecendo frequentemente como memes ou piadas estúpidas. Não creio que isto
seja inteiramente novo. No contexto japonês, por exemplo, o brilhante pensador
Tosaka Jun, que insiste nos laços profundos entre o fascismo e o liberalismo,
tem uma leitura incrivelmente astuta da forma como os processos de
liberalização resultam na dissociação de uma ideologia ou de um imaginário de
vida tradicional (e, de facto, da identidade étnica e nacional japonesa) das
condições sociais e económicas reais. Ele diz que, quando a sociedade civil
liberal enfrenta uma crise, aquilo a que ele chama «Japonismo» — o seu termo
para a iteração japonesa particular do fascismo — pode retomar e reutilizar os
significantes e clichés dessa tradição, que passam a flutuar livres de qualquer
continuidade histórica real.
Por
outras palavras, torna-se uma espécie de cosplay imperial. Mas isto não
é para menosprezar as consequências letais do que se segue. Muito pelo
contrário. É para sublinhar que os significados esvaziados, os significantes
deslizantes e, de facto, uma espécie de gozo e de teatralidade falsa, ridícula,
cínica e em auto-negação têm uma função crucial. Uma função que ainda se tornou
mais importante ao longo da última década de processos fascistas e
nacionalistas brancos, especialmente porque desempenha um papel importante ao
facilitar que ideologias abertamente fascistas se insinuem na circulação mais
mainstream, na medida em que podem ser dissimuladas como trolling, shitposting,
etc. Por isso, gostaria de falar sobre esta dimensão da falsidade, do cinismo,
da teatralidade e da negação, no que respeita ao fascismo tardio.
AT
—
Suponho que uma resposta é que, se procurarmos analogias, o fascismo italiano
inicial seria, provavelmente, muito mais pertinente para as discussões
contemporâneas do que o nazismo alemão e todo um conjunto de outros movimentos.
O fascismo italiano inicial exibia uma lógica blasfema, parcialmente niilista
e, por vezes, abertamente modernista, nomeadamente na sua relação com o
futurismo. Isto também desempenha um papel importante em condensar certos
grupos de pessoas — de insatisfeitos, pequeno-burgueses, veteranos, oficiais,
artistas, etc. Pode dizer-se que isto é rapidamente descartado quando o
fascismo precisa de se constituir nas grandes coligações estatais. Algumas das
reviravoltas são cómicas por si só. Quer se trate dos primeiros apelos de
Marinetti à proibição da pasta ou do ódio de Mussolini por Roma. Inicialmente,
há todo um desprezo fascista por Roma, que foi replicado agora por grupos como
a Liga Norte [Lega Nord]. Todo o culto da Roma eterna é, na verdade, um pivô.
Mas, inicialmente, é uma cultura blasfema e, não menos importante, é uma
cultura de guerra. Há uma certa forma de virilidade violenta e blasfema que
resulta de experiências de guerra específicas e que se cristaliza em slogans
como Me ne frego, “Estou-me nas Tintas”.
Como
slogan político, isto é intrigante por si só. Falo um pouco sobre isso no
livro, em parte porque fui felizmente incumbido de escrever um prefácio para um
livro espantoso de Leo Löwenthal e Norbert Guterman, Prophets of Deceit,
que muita gente considerou profético há alguns anos, porque estudava os
discursos e as técnicas de agitadores relativamente marginais e fascistas,
fascistas cristãos, demagogos de toda a espécie. A partir daí, elaboraram uma
taxonomia dos meios de técnicas retóricas e mediáticas, no centro das quais
estava a insinuação. A insinuação, as formas de comunicar um horizonte
partilhado, muitas vezes um horizonte racial e de género, sem o dizer.
Obviamente, muitas pessoas chamaram a atenção para a relevância contemporânea
desta questão.
Uma
das coisas que têm sido apontadas repetidamente relativamente a muitas das
formas de autoritarismo contemporâneo — por vezes rotuladas de fascistas — é o
facto de serem notavelmente inconsequentes ao nível da transformação real das
organizações, das estruturas e das instituições do Estado. Há, muitas vezes, um
grande fosso entre a retórica e a realidade. A consequência disto é que, para
provarem a sua boa-fé como movimentos transformadores, eles promovem as formas
mais horríveis e também mais mesquinhas de violência contra os imigrantes, o
espectáculo em torno das fronteiras, etc. Mas se olharmos para Meloni e para a
União Europeia, uma das coisas que impressiona, ao nível da política, é que (a)
a razão pela qual estes movimentos aparecem, em primeiro lugar, não está no
facto de ser necessária uma solução para um problema particular, e (b) eles nem
sequer fornecem essa solução. Isto não é verdade em todo o lado. É claro que
este tipo de movimentos também está a fazer coisas muito significativas: por
exemplo, para determinadas facções do capital fóssil e da pilhagem e do
extractivismo brutais no Brasil ou para determinadas facções das elites na
Índia. Não estou a descurar o enraizamento em economias políticas específicas. Também
penso que muitas das razões pelas quais estamos a ver isto como um fenómeno
propriamente planetário, embora articulado de formas muito diferentes, não se
deve à lógica de uma temporalidade de crise, como a crise de 1929. Pelo
contrário, é muito mais uma temporalidade da «era da estagnação», para usar a
formulação do nosso amigo Jason Smith.
ECW
—
Poderíamos facilmente continuar esta discussão, já que se trata de um livro
muito rico, mas como pergunta final para esta noite, gostaria de me debruçar
sobre o último capítulo — e talvez voltar à fantasia de Spengler sobre o guarda
petrificado que se manteve firme e enfrentou a catástrofe como um homem. Esse
capítulo aborda os vínculos entre o fascismo e o género, e você enquadra-os de
forma crucial em termos da legislação, da violência e do pânico transfóbicos. Uma
vez que se trata de um argumento com o qual as pessoas podem não estar
familiarizadas, gostaria de o ouvir falar um pouco sobre como é que pensa
através dos vínculos actuais entre o fascismo e o género, especialmente porque
assinala explicitamente a centralidade, no fascismo tardio, de formas de pânico
de género e de diferentes formas de tentativa de policiamento e de difamação.
AT
—
Vou falar brevemente sobre os «bastidores» do livro. Umas semanas antes de
entregar o manuscrito, enviei o livro a um amigo, o Jordi, que muito
gentilmente e demasiado generosamente o elogiou. Então, ele disse algo como: «Sim,
estou a gostar. É muito bom». E depois acrescentou algo como: «Mas então e…».
Foi um comentário muito suave, e eu pensei: «Sim, de facto há algo que foi
negligenciado, e uma negligência bastante significativa». Abordei um pouco esse
aspecto no capítulo sobre Jesi, e tinha lido muitas coisas. Mas não encontrei
um ângulo adequado, em parte, porque não queria revisitar completamente os
debates sobre sexo e género no fascismo e também porque tem havido muitos
textos recentes — muito bons — sobre os vínculos entre a transfobia e o ressurgimento
da extrema-direita.
Então,
pensei em como poderia introduzir o capítulo. Lembrei-me de ter lido
entrevistas de Michel Foucault com a Cahiers du Cinema e outra revista
de cinema, que não são muito conhecidas. Entre inícios e meados dos anos
setenta, há um conjunto de filmes realizados por cineastas europeus de
vanguarda ou de autor — Cavani, Pasolini, Visconti e outros — que associam a
emergência do nazismo e do fascismo a questões de sexualidade e de género. Isto
foi feito, muitas vezes, de formas relativamente dúbias ou, como dizemos hoje,
problemáticas, que deram lugar a muitos debates, alguns deles realmente
curiosos do ponto de vista histórico. Por exemplo, Maria Antonietta Macciocchi
ensina na Universidade experimental de Paris-Vincennes — ela teve uma
correspondência muito interessante com Althusser pela altura do Maio de 68,
quando ele estava basicamente numa clínica e ela lhe escrevia cartas sobre a
tentativa de se tornar deputada em Nápoles. Ela ensina em Vincennes e dá um
seminário fascinante sobre o fascismo, em 1975, 1976, com muita gente.
Poulantzas escreve um excelente artigo sobre o impacto popular do fascismo. E
fazem uma série de projecções de filmes, com filmes de Pasolini e Cavani.
Pasolini participa. Ao mesmo tempo, os maoístas franceses decidem que um dos
flagelos da época, para além do Partido Comunista Francês e do seu terrível
revisionismo, é aquilo a que chamam «sexo-fascismo». O sexo-fascismo é
basicamente o que eles entendem como uma teoria completamente terrível,
pequeno-burguesa, segundo a qual o fascismo emerge de problemas eróticos —
Wilhelm Reich, etc. Os filmes são interrompidos, é atirada tinta. Claro que,
dados os tempos que se viviam, Macciocchi escreve um ensaio de 120 páginas
sobre ter sido cancelado pelos maoístas ou algo do género. Mas penso que é um
momento muito interessante por uma série de razões. E Foucault intervém nisto.
Foucault é ao mesmo tempo cómico e muito perspicaz nalgumas destas entrevistas.
Ele diz que o primeiro problema destes filmes é que nos fazem crer — o que é
simultaneamente falso e, de certa forma, perigoso — que havia um carisma
erótico no nazismo. Contra-argumenta dizendo que, a nível sexual, o nazismo é
como um casamento entre um agrónomo e uma empregada de limpeza (esqueci-me
exactamente, mas foi uma frase terrível deste género). É isto que estes filmes
falham, de todo, em compreender, porque estão obcecados com o cabedal, com as
botas e com todo esse fetichismo.
ECW
—
Posso ler algumas frases da entrevista? Porque é inimitável e vale a pena
ouvir: «O nazismo não foi inventado pelos grandes loucos eróticos do século XX,
mas pelo pequeno-burguês mais sinistro, aborrecido e repugnante que se possa
imaginar. Himmler era um tipo vagamente rústico e casou-se com uma enfermeira».
(Um pouco cruel para as enfermeiras, devo dizer). «Temos de compreender que os
campos de concentração nasceram da imaginação conjunta de uma enfermeira de
hospital e de um criador de galinhas, um hospital e um galinheiro. É esse o
fantasma que está por detrás dos campos». É uma entrevista notável.
AT
—
Sem dúvida. Mas depois ele passa a argumentar sobre a erótica do poder. Associa
a erótica do poder a um tema que me parece muito importante, que é a questão da
deputação e da delegação da violência. Para ele, o fundamental não é a
propaganda carismática ou as armadilhas fetichistas do poder, as insígnias e os
emblemas… Não. O que é poderoso é a licença o que, claro, afecta pessoas
diferentes de modos diferentes. É a liberdade, a liberdade horrenda e retorcida
que é dada para ter toda esta iniciativa de exercer a violência. Há uma forma
de delegação, uma deputação do monopólio da violência segundo linhas de
parentesco racial, entre outras, que é muito significativa.
Depois,
por sugestão de Quinn Slobodian, li um livro muito bom chamado Sex after
Fascism, da historiadora Dagmar Herzog. O livro traça, no caso alemão em
particular, a forma como a política re-imaginou retroactivamente a relação
entre o sexo e o fascismo. Herzog constrói um argumento sobre como as noções,
tanto do fascismo perverso, como do fascismo repressivo, são invenções
diferentes que têm lugar na cultura política alemã. Nos anos 50, uma cultura
alemã muito conservadora do pós-guerra apresenta os nazis como pervertidos e
como pessoas que destruíram a família. Depois, nos anos sessenta, em parte, em
resposta aos seus pais e à geração anterior, o nazismo é retratado como
repressivo e clerical. O registo histórico prova que é bem diferente. Como
mostra Herzog, o nazismo é, em simultâneo, radicalmente heteronormativo e,
obviamente, racialmente exclusivo, mas é também um regime de licença e de
des-normalização da monogamia e de libertação de laços sociais. Em suma, é uma
figura muito mais complexa. Uma das coisas que me chocou completamente e penso
que continua a chocar é a velocidade com que tem circulado o cliché polémico da
ideologia de género e da ameaça trans a toda a normatividade. Penso que a gota
de água foi quando assisti a um discurso de Bashar al-Assad em que ele falava
de ideologia de género. Pensei: «Como é que isto se tornou numa fixação
ideológica bizarra que circula por toda a parte?» Claro que podemos dizer que
este excesso superestrutural tem um efeito distractivo muito eficaz. Mas também
penso que há um sentido no qual a corporeidade íntima serve para mapear no
corpo um sentido de desmantelamento ou de crise sistémica. Não é a primeira vez
que isto acontece. As pessoas tentaram mapear outras crises de género e sexo em
diferentes momentos, incluindo no próprio fascismo clássico.
•
Nota da edição
A presente tradução remete para a transcrição de uma
conversa decorrida num evento ao vivo no dia 12 de Dezembro de 2023, no e-flux,
em Brooklyn, em torno do livro Late Fascism: Race, Capitalism, and the
Politics of Crisis, de Alberto Toscano, publicado pela Verso. A transcrição
original foi publicada no e-flux a 15 de Março de 2024.
Imagem
Elon Musk faz a saudação nazi durante a tomada de posse de Donald Trump.
Ficha Técnica
«Sobre o Fascismo Tardio» • Alberto Toscano em conversa
com Evan Calder Williams
Data de publicação: 21.01.2025
Edição #43 • Inverno 2025 •