Pasolini foi morto por
um vigarista.
Não
podemos todos morrer na cama, como o Franco. A extrema-esquerda italiana está
indignada. M.A. Macciocchi, no Le Monde, fala de uma conspiração
fascista. Com mais perspicácia, Gavi and Maggiori mostram como o incidente foi
um golpe microfascista: o assassino, Pelosi, não foi usado pelo fascismo, foi o
instrumento voluntário do racismo e da recusa da diferença, o género de
fascismo quotidiano, não-politizado.
Provavelmente,
provavelmente. Algo em toda esta explicação não me convence: a natureza
política e externa deste ponto de vista sobre o assassínio de um homossexual.
Certamente não se pode deixar de concordar com a análise do caso Pelosi, não se
pode deixar de o recusar como sendo, também, uma vítima. Dar a outra face está
fora de questão.
Ao
mesmo tempo, a morte de Pasolini não me parece nem abominável, nem mesmo,
talvez, lamentável. No que me toca, acho-a até satisfatória. Tão menos estúpida
que um acidente na autoestrada. De certa forma, é a morte que desejaria para
mim e para todos os meus amigos.
Esteticismo
sádico? Espero que não: é só que um aspecto fundamental da história do
assassínio de um homossexual, do assassínio homossexual, necessariamente engana
os analistas políticos e aqueles que querem proteger homossexuais dos seus
potenciais assassinos.
É
uma ligação íntima, antiga, muito forte, essa entre o homossexual e o seu
assassino, uma ligação tão tradicional quanto a sua prescrição delinquente nas
grandes cidades do século XIX. Com demasiada frequência esquecemos que a
dissimulação, os segredos ou as mentiras homossexuais nunca foram escolhidos
por eles próprios, por um gosto pela opressão: foram necessários no projectar
de um impulso desejante para o submundo, de uma líbido atraída por objetos fora
das leis comuns do desejo. Vautrin, in Balzac, representa este lado de baixo do
mundo civilizado nascido da corrupção das grandes cidades, onde a
homossexualidade e a delinquência vão lindamente de mão dada. Enquanto
perversão urbana, a homossexualidade ilícita sempre esteve ligada com o submundo
do crime. Há uma “perigosidade” que rodeia a homossexualidade, a chantagem
homossexual, o assassínio homossexual.
Gavi
e Maggiori apontam com razão para como, no julgamento de Pelosi, a vítima tem
tanta culpa quanto o assassino. O que é por certo escandaloso, mas constitui
uma característica distintiva da condição homossexual. Aos olhos dos tribunais
e da polícia, não há, nestes casos, diferença alguma entre as vítimas e os
assassinos. Não há mais que um “milieu” suspeito, unido por ligações
misteriosas, uma maçonaria de crime onde o homo e o assassino se intersectam. A
homossexualidade é antes de mais, e talvez por algum tempo continuará a ser,
uma categoria de criminalidade. Pessoalmente, prefiro este estado das coisas à
sua provável transformação numa categoria psiquiátrica de desvio. A relação
libidinal entre os criminosos e o homossexual ignora os conceitos racionai de
lei, a divisão de responsabilidade individual e a distribuição de papéis entre vítima
e assassino. Um assassino homossexual é um todo, completo em si mesmo. Um
capitão da gendarmerie belga escreve
num artigo dedicado à situação dos homossexuais: “Uma vigilância atenta deste
milieu particular torna possível compilar um dossier útil para encontrar
futuros vigaristas, assassinos, e possivelmente espiões.”
“Descriminalizar”
a Homossexualidade?
Há
quem me diga que isto é precisamente contra o qual lutamos. E? Vamos exigir que
o progresso racional da justiça para a distinção entre vítimas e perpetradores?
Vamos requerer, como fazem as associações homossexuais respeitáveis, que a
polícia e os tribunais aceitem as queixas dos homossexuais que são maltratados
e chantageados? Vamos ver gays, tal como as mulheres, exigir a condenação de
violadores pelos tribunais e pedir protecção sob a lei?
Acho
pelo contrário que mesmo numa luta pela libertação, a esperança da
homossexualidade ainda se encontra no facto de ser compreendida como
delinquente. Não confundamos autodefesa com “respeitabilização.” O homossexual
tem contacto frequente com o seu assassino: não só pelo masoquismo,
culpabilização suprimida ou o gosto pela transgressão, mas também porque um
encontro com uma personagem destas é uma possibilidade real. Claro que é
evitável. Basta para isso evitar fazer cruising
no mundo do crime. Parar de fazer cruising
nas ruas. Não fazer cruising de todo,
ou apenas escolher jovens sérios da mesma esfera social. Pasolini não estaria
morto se só tivesse ido para a cama com os seus actores.
É
isto que engana todos os que, com toda a sinceridade, querem “descriminalizar”
a homossexualidade, defendê-la contra si própria pelo romper das relações com o
mundo duro, violento e marginal.
Estes
combatentes não estão conscientes que estão desta forma a juntar forças com um
vasto movimento, em França e na América por exemplo, de respeitabilização e
neutralização da homossexualidade. Esse movimento não progride pelo aumento da
repressão, mas depende, pelo contrário, de uma transformação íntima do tipo
homossexual, livre dos seus medos e da sua marginalidade e finalmente integrado
na lei.
A
paneleira tradicional, agradável ou maliciosa, o amante de gunas jovens, o
especialista dos urinóis de rua, todos estes tipos exóticos herdados do século
XIX dão lugar ao tranquilizante e conveniente homossexual moderno, jovem (entre
os 25 e os 40), com um bigode e uma mala de negócios, sem complexos ou
maneirismos, frio e educado, num emprego publicitário ou num posição de vendas
num centro comercial, oposto ao estranhamento, respeitoso do poder, e amante do
liberalismo e cultura iluminados. Idos estão os sórdidos e os grandiosos, os
espetaculares e os maus. O próprio sado-masoquismo já não é mais que um estilo
de vestuário para a bicha apropriada.
A
Homossexualidade “Branca”
O
estereótipo do homossexual legal, integrado na sociedade, moldado pelo Sistema,
perto dele nos seus gostos e, para mais, assegurado pela presença de um
subordinado que é ele mesmo um homossexual sem vergonha falsa — a
homossexualidade já não é mais um segredo partilhado apenas por alguns
iniciados — substitui progressivamente a diversidade barroca dos estilos homossexuais.
Chegará finalmente o tempo em que o homossexual não será mais que o membro do Club Med que foi um pouquinho mais longe
que os outros, com um horizonte de prazer ligeiramente mais abrangente que o
seu contemporâneo médio.
Não
se suspeita disto a não ser que se frequente o círculo homossexual, um todo
bastante fechado que forja, mesmo para o mais isolado homossexual, a imagem
social da sua condição. Pressões normalizadoras movem-se com rapidez, mesmo se
Paris e os bairros da rua Sainte-Anne não são toda a França. Se ainda há
paneleiras à procura de árabes nos subúrbios ou em Pigalle, há um movimento que
sem dúvida foi lançado para uma verdadeira homossexualidade branca, em ambos os
sentidos do termo. E é bem curioso notar, olhando para anúncios e filmes ou
para as saídas dos bares gays, a emergência de um modelo unissexual — comum a
homossexuais e heterossexuais — oferecido aos desejos e identificação de todos.
Os homossexuais tornam-se indistinguíveis, não porque escondem melhor os seus
segredos, mas porque são uniformes de corpo e mente, libertos da saga do seu
ghetto, reintroduzidos total e completamente não na sua diferença, mas na
sua mesmidade.
E
toda a gente foderá dentro da sua própria classe social, os executivos juniores
inspirarão em êxtase o cheiro do aftershave do parceiro, e nem o Papa verá nada
de mal nisso. Uma coisa bem natural, como diz um filme recente. O novo gay
oficial não irá à procura de aventuras perigosas e sem sentido nos
curtos-circuitos entre classes sociais. Irá por certo continuar a ser um
pervertido sexual, experimentará fisting
e flagelação, mas com o bom senso frio de uma revista sexológica, não na
violência social, mas nas técnicas do sexo.
Pasolini
era antiquado, os resquícios prodigiosos de uma época agora a ser deixada
para trás.
•
Guy Hocquenghem
Escritor, filósofo e
téorico queer nascido em
Boulogne-Bilancourt, nos arredores de Paris. Após passagens por diversas
organizações de índole comunista, acabou por ser excluído devido à sua
homossexualidade, tornando-se um importante militante da Front homosexuel d’action révolutionnaire. Entre 1975 e 1982
colaborou com o jornal Libération.
Para além dessas crónicas, escreveu várias obras, entre as quais se destacam Le désir homosexuel (1972), Les culs énergumènes (1973) e L’Amphithéatre des morts, mémoires
anticipées (1994) pela sua tradução para língua inglesa.
Imagem
1.
Hunt Bury Flee, Wangechi Mutu, 2010.
Nota da tradutora
Em 1972, Guy Hocquenghem publica O
Desejo Homossexual. Nesta que é hoje considerada hoje uma das primeiras
obras de teoria queer — e relativamente esquecida por uma tradição de hegemonia
anglo-saxónica — o reconhecido militante da Front homosexuel d’action
révolutionnaire mobiliza o trabalho de Deleuze e Guattari para apresentar a
constituição do sujeito homossexual no capitalismo moderno a partir de um
enquadramento marxista e da crítica à fixação psicanalítica com o Complexo de
Édipo (ai como é fodida essa paranóia).
Nota da edição
O texto que se segue é escrito
aquando a morte de Pasolini e no seguimento de uma mais abrangente discussão
sobre a natureza do assassinato. Pela a importância actual da crítica feroz que
faz ao processo de assimilação, higienização, e mesmidade da homossexualidade
tardia — um processo que só 30 anos depois tomaria o nome de
‘homonormatividade’ —decidimos publicar a sua tradução. O texto original foi
escrito em 1975 por Guy Hocquenghem, aquando do assassinato de Pier Paolo
Pasolini. A tradução para português foi realizada por Pê Feijó e publicado
no blogue Teratopia.
Ficha Técnica
Data de publicação: 17.11.2020
Edição #29 • Outono 2020 •