O governo das desigualdades de que nos fala
Maurizio Lazzarato é aquele que visa instalar, a graus diversos, “a
insegurança, a instabilidade, a incerteza, a precaridade económica e
existencial” na vida de todos e de cada um, exercendo-se a toda a extensão do
dia e de um pólo ao outro do continuum
social. E se o seu “fundamento afectivo” é o medo (ou a insegurança), o único
objectivo de todos os seus recorrentes projectos de reforma e “refundação
social” é, em última análise, generalizar a forma económica do mercado – o
princípio da concorrência, da competição – a toda a extensão do corpo social, e
mesmo a tudo o que não passa habitualmente (ou não é sancionado) por trocas monetárias. A
desigualdade, aqui, é o pressuposto (ou o “suposto”) que as políticas e
tecnologias neoliberais têm sistematicamente de criar, gerar e produzir para que um governo neoliberal do social
possa funcionar: um governo que tem como vocação gerir as desigualdades e nunca, em caso algum, eliminá-las.
Mas, porque o neoliberalismo não intervém
exclusivamente (nem maioritariamente) no plano dos direitos e das normas, mas
sobretudo (e cada vez mais) por aquilo a que Deleuze e Guattari chamaram uma
“micropolítica da insegurança”, é que não bastará – segundo Lazzarato –
combater o actual governo das desigualdades no plano dos direitos sociais
(“adquiridos”, ou por re/conquistar), tornando-se urgente articular, em vez de
opor, “crítica social” e “crítica artista”. Esta – simplificação sociológica
para um conjunto de reivindicações, comportamentos e práticas em que em causa
estaria uma reinvenção da vida que colocaria em xeque a própria organização do
existente, a começar pela centralidade do trabalho na existência de cada qual –
tem o condão de obrigar a tomar em consideração o desejo e a imaginação como
forças transformadoras, não deixando que o que existe (ou a sua reforma) molde
os contornos ao possível. Prefigura também uma série de problemas com que a
salvaguarda dos direitos dos trabalhadores se haveria de confrontar, como o
alargamento da noção de trabalho (com o trabalho imaterial, juntamente com o
trabalho doméstico, ou o trabalho afectivo, a entrarem na equação); a diminuição de postos de trabalho fabris
(causada pela automação); o alargamento da noção de “trabalhador” (com a entrada das mulheres no
mercado de trabalho e, mais recentemente, a deslocalização agressiva da
produção e do próprio trabalho migrante em grande escala); e, no campo
cultural, a própria redefinição do que pode ser considerado arte e cultura e
quem são os seus agentes, artistas e demais trabalhadores culturais.
Passaram, entretanto, dez anos desde que
este livro foi traduzido e finalmente agora alguns passos serão dados no
sentido da criação de um regime de intermitência em Portugal. Este agora não é
fortuito, antes corresponde – como dá conta em detalhe Amarílis Felizes, que,
como dirigente da Plateia, integra o grupo de trabalho para a criação deste
estatuto – à maior crise sanitária e económica de que há memória recente,
causada pela paralisação de uma série de actividades devido ao coronavírus.
Esta paralisação, que na cultura atingiu proporções avassaladoras, veio pôr a
descoberto a total ausência de protecção a que muitos dos trabalhadores se
encontram sujeitos, na cultura, mas não apenas. E se as reivindicações dos
trabalhadores da cultura (primeira das actividades a fechar e das últimas a
reabrir, com uma série de restrições e condicionantes) deram a ver a criação de
um regime específico de protecção como urgente e incontornável, o descalabro
geral em que uma série de sectores se encontra (e a denúncia de mais e mais
situações de vulnerabilidade extrema, em que à perda do rendimento se sucede a
perda da habitação, e a impossibilidade de fazer face ao custo de vida) traz
consigo a constatação da necessidade da criação de formas de apoio não
imediatamente ligadas ao trabalho, capazes de assegurar uma vida digna para
todos. O que implica um pensamento da disjunção entre rendimento e trabalho.
A análise que Lazzarato faz do conflito dos
intermitentes em França entre Junho de 2003 e Abril de 2007, que agora se
republica, possibilita, na sua especificidade extrema (afinal analisam-se tanto
os usos que os trabalhadores da cultura dão aos apoios estatais que recebem,
como aquilo contra o que se erigem e o que reivindicam), esboçar um desenho das
dificuldades com que o trabalho se debate hoje. Ou seja, se por um lado permite
ajudar a pensar as dificuldades com que a protecção dos trabalhadores se depara
numa altura em que a própria categoria de trabalhador parece posta em causa
pela proliferação de regimes de exploração distintos, possibilita, por outro, entrever uma série de problemas que uma
extensão da protecção social à totalidade da vida acarreta. A começar pela
impossibilidade de uma subsunção total da vida ao trabalho. E se estes regimes podem
passar pela auto-exploração de si mesmo, fazendo colapsar empregador, empregado
e meios de produção, requerendo upgrades
e formações constantes, e meios de produção próprios cada vez mais
sofisticados, como os computadores pessoais e os smartphones,
aparece como evidente fazer entrar na esfera do trabalho uma série de outros
momentos, como o consumo, por ex. vendo-os como produtivos, num pensamento da
metrópole no seu todo, enquanto fábrica social.
À multiplicidade dos modos de exercício do
poder corresponde a multiplicidade dos modos de resistência, era esta a “lição”
ou a novidade que representaram, no seu tempo, os trabalhos de Foucault, por um
lado, e de Deleuze e Guattari, por outro. À complexidade do presente e à análise
das várias camadas que o constituem não correspondem necessariamente respostas
simples, que nos sossegam mas não resolvem o menor dos nossos problemas. O Governo das desigualdades, neste
sentido, é um livro que se lê menos como um Prontuário das certezas
estabelecidas para as lutas do novo milénio do que um exercício em pensamento
estratégico. Certezas, neste momento, existe uma: que nos próximos tempos, seja
qual for o rumo que as coisas e as lutas tomarem, vai ser necessária muita
criatividade.
•
Ana Bigotte Vieira
Faz
parte da equipa de programação do Teatro do Bairro Alto, sob direcção artística
de Francisco Frazão, como programadora de discurso. Licenciou-se em História
Moderna e Contemporânea (ISCTE), especializando-se em Cultura e Filosofia
Contemporâneas (FCSH-UNL), e em Estudos de Teatro (UL). A sua tese de
Doutoramento recebeu uma Menção Honrosa em História Contemporânea pela Fundação
Mário Soares. Integra o Instituto de História Contemporânea e Centro de Estudos
de Teatro. É co-fundadora e curadora da plataforma baldio | Estudos de
Performance, e dramaturgista em teatro e em dança. Traduziu vários autores,
sobretudo de teatro e filosofia, como Luigi Pirandello, Giorgio Agamben e
Maurizio Lazzarato.
Nuno Leão
Estuda filosofia e é tradutor, tendo sido o
responsável pela tradução para português de “Crónicas da Psicodeflacção”.
Imagem
Frame do videoclip
da música “Abraço Assinado” de Manel Cruz e Sara Yasmine, produzida
no contexto da actual jornada de protestos dos trabalhadores precários de
Serralves e da Casa da Música. Um projecto de um colectivo de trabalhadores da
Casa da Música com a participação de Educadores do SE Artes da Fundação de Serralves.
Nota de edição
O texto
original serve de nota à tradução portuguesa de “O governo das
desigualdades. Crítica da insegurança neoliberal”, escrito por Maurizio
Lazzarato em 2008. O prefácio escrito por Amarilis Felizes, ao mesmo livro,
também pode ser lido no Punkto. Uma tradução colectiva
realizada por Ana
Bigotte Vieira, João Paulo Esteves da Silva, Francisca Andrade, Miguel Castro
Caldas, Nuno Leão, Pedro Cerejo, Rui Teigão e Sónia Gabriel, recentemente editada e publicada
pela editora Tigre de Papel.
Ficha Técnica
Data de publicação: 23.11.2020
Edição #29 • Outono 2020 •