Maurizio Lazzarato: «O governo das desigualdades: crítica da insegurança neoliberal» • Ana Bigotte & Nuno Leão




O governo das desigualdades de que nos fala Maurizio Lazzarato é aquele que visa instalar, a graus diversos, “a insegurança, a instabilidade, a incerteza, a precaridade económica e existencial” na vida de todos e de cada um, exercendo-se a toda a extensão do dia e de um pólo ao outro do continuum social. E se o seu “fundamento afectivo” é o medo (ou a insegurança), o único objectivo de todos os seus recorrentes projectos de reforma e “refundação social” é, em última análise, generalizar a forma económica do mercado – o princípio da concorrência, da competição – a toda a extensão do corpo social, e mesmo a tudo o que não passa habitualmente (ou não é sancionado) por trocas monetárias. A desigualdade, aqui, é o pressuposto (ou o “suposto”) que as políticas e tecnologias neoliberais têm sistematicamente de criar, gerar e produzir para que um governo neoliberal do social possa funcionar: um governo que tem como vocação gerir as desigualdades e nunca, em caso algum, eliminá-las.

Mas, porque o neoliberalismo não intervém exclusivamente (nem maioritariamente) no plano dos direitos e das normas, mas sobretudo (e cada vez mais) por aquilo a que Deleuze e Guattari chamaram uma “micropolítica da insegurança”, é que não bastará – segundo Lazzarato – combater o actual governo das desigualdades no plano dos direitos sociais (“adquiridos”, ou por re/conquistar), tornando-se urgente articular, em vez de opor, “crítica social” e “crítica artista”. Esta – simplificação sociológica para um conjunto de reivindicações, comportamentos e práticas em que em causa estaria uma reinvenção da vida que colocaria em xeque a própria organização do existente, a começar pela centralidade do trabalho na existência de cada qual – tem o condão de obrigar a tomar em consideração o desejo e a imaginação como forças transformadoras, não deixando que o que existe (ou a sua reforma) molde os contornos ao possível. Prefigura também uma série de problemas com que a salvaguarda dos direitos dos trabalhadores se haveria de confrontar, como o alargamento da noção de trabalho (com o trabalho imaterial, juntamente com o trabalho doméstico, ou o trabalho afectivo, a entrarem na equação);  a diminuição de postos de trabalho fabris (causada pela automação); o alargamento da noção de  “trabalhador” (com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e, mais recentemente, a deslocalização agressiva da produção e do próprio trabalho migrante em grande escala); e, no campo cultural, a própria redefinição do que pode ser considerado arte e cultura e quem são os seus agentes, artistas e demais trabalhadores culturais.

Passaram, entretanto, dez anos desde que este livro foi traduzido e finalmente agora alguns passos serão dados no sentido da criação de um regime de intermitência em Portugal. Este agora não é fortuito, antes corresponde – como dá conta em detalhe Amarílis Felizes, que, como dirigente da Plateia, integra o grupo de trabalho para a criação deste estatuto – à maior crise sanitária e económica de que há memória recente, causada pela paralisação de uma série de actividades devido ao coronavírus. Esta paralisação, que na cultura atingiu proporções avassaladoras, veio pôr a descoberto a total ausência de protecção a que muitos dos trabalhadores se encontram sujeitos, na cultura, mas não apenas. E se as reivindicações dos trabalhadores da cultura (primeira das actividades a fechar e das últimas a reabrir, com uma série de restrições e condicionantes) deram a ver a criação de um regime específico de protecção como urgente e incontornável, o descalabro geral em que uma série de sectores se encontra (e a denúncia de mais e mais situações de vulnerabilidade extrema, em que à perda do rendimento se sucede a perda da habitação, e a impossibilidade de fazer face ao custo de vida) traz consigo a constatação da necessidade da criação de formas de apoio não imediatamente ligadas ao trabalho, capazes de assegurar uma vida digna para todos. O que implica um pensamento da disjunção entre rendimento e trabalho.

A análise que Lazzarato faz do conflito dos intermitentes em França entre Junho de 2003 e Abril de 2007, que agora se republica, possibilita, na sua especificidade extrema (afinal analisam-se tanto os usos que os trabalhadores da cultura dão aos apoios estatais que recebem, como aquilo contra o que se erigem e o que reivindicam), esboçar um desenho das dificuldades com que o trabalho se debate hoje. Ou seja, se por um lado permite ajudar a pensar as dificuldades com que a protecção dos trabalhadores se depara numa altura em que a própria categoria de trabalhador parece posta em causa pela proliferação de regimes de exploração distintos, possibilita, por outro, entrever uma série de problemas que uma extensão da protecção social à totalidade da vida acarreta. A começar pela impossibilidade de uma subsunção total da vida ao trabalho. E se estes regimes podem passar pela auto-exploração de si mesmo, fazendo colapsar empregador, empregado e meios de produção, requerendo upgrades e formações constantes, e meios de produção próprios cada vez mais sofisticados, como os computadores pessoais e os smartphones, aparece como evidente fazer entrar na esfera do trabalho uma série de outros momentos, como o consumo, por ex. vendo-os como produtivos, num pensamento da metrópole no seu todo, enquanto fábrica social.

À multiplicidade dos modos de exercício do poder corresponde a multiplicidade dos modos de resistência, era esta a “lição” ou a novidade que representaram, no seu tempo, os trabalhos de Foucault, por um lado, e de Deleuze e Guattari, por outro. À complexidade do presente e à análise das várias camadas que o constituem não correspondem necessariamente respostas simples, que nos sossegam mas não resolvem o menor dos nossos problemas. O Governo das desigualdades, neste sentido, é um livro que se lê menos como um Prontuário das certezas estabelecidas para as lutas do novo milénio do que um exercício em pensamento estratégico. Certezas, neste momento, existe uma: que nos próximos tempos, seja qual for o rumo que as coisas e as lutas tomarem, vai ser necessária muita criatividade.

 

 

Ana Bigotte Vieira

Faz parte da equipa de programação do Teatro do Bairro Alto, sob direcção artística de Francisco Frazão, como programadora de discurso. Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea (ISCTE), especializando-se em Cultura e Filosofia Contemporâneas (FCSH-UNL), e em Estudos de Teatro (UL). A sua tese de Doutoramento recebeu uma Menção Honrosa em História Contemporânea pela Fundação Mário Soares. Integra o Instituto de História Contemporânea e Centro de Estudos de Teatro. É co-fundadora e curadora da plataforma baldio | Estudos de Performance, e dramaturgista em teatro e em dança. Traduziu vários autores, sobretudo de teatro e filosofia, como Luigi Pirandello, Giorgio Agamben e Maurizio Lazzarato.

 

Nuno Leão

Estuda filosofia e é tradutor, tendo sido o responsável pela tradução para português de “Crónicas da Psicodeflacção”.

 

Imagem

Frame do videoclip da música “Abraço Assinado” de Manel Cruz e Sara Yasmine, produzida no contexto da actual jornada de protestos dos trabalhadores precários de Serralves e da Casa da Música. Um projecto de um colectivo de trabalhadores da Casa da Música com a participação de Educadores do SE Artes da Fundação de Serralves.

 

Nota de edição

O texto original serve de nota à tradução portuguesa de “O governo das desigualdades. Crítica da insegurança neoliberal”, escrito por Maurizio Lazzarato em 2008. O prefácio escrito por Amarilis Felizes, ao mesmo livro, também pode ser lido no Punkto. Uma tradução colectiva realizada por Ana Bigotte Vieira, João Paulo Esteves da Silva, Francisca Andrade, Miguel Castro Caldas, Nuno Leão, Pedro Cerejo, Rui Teigão e Sónia Gabriel, recentemente editada e publicada pela editora Tigre de Papel.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 23.11.2020

Edição #29 • Outono 2020 •