As linhas que a Seara traçou • Luhuna Carvalho





O centro de Apoio Mútuo Seara, no bairro de Arroios, foi um projecto singular. Pé ante pé, uma série de práticas autónomas de solidariedade foram conseguindo sair da sua bolha para estabelecer uma dimensão colectiva que derrubou as várias fronteiras entre militantes e não militantes, entre ocupantes e utentes, etc. Um texto no facebook assinado por Nuno Rodrigues descreve tudo bastante bem. Para algumas pessoas era assistencialismo e caridade, e bom, essas podem apenas continuar a definhar por onde quiserem; para outras o projecto não era suficientemente político. Mas na segunda-feira, dia do despejo, estiveram ali trinta pessoas, que se tornaram em mais de duzentas, das seis da manhã à meia noite, a proteger algo que sentiam seu, dando o corpo ao manifesto mais do que uma vez, provando que as relações entre pessoas são mais políticas do que qualquer identidade ideológica.

Mas não foi enésima elegia por um projecto morto à nascença que nos tirou o sono no final desse longo dia. A parte mais dura e violenta não foram sequer as cargas, mas o confronto com a segurança privada. Mal ou bem, já todos tivemos os nossos encontros com a PSP e sabemos bem o que esperar. Com os capangas a coisa é um pouco diferente: pessoas que não teriam o mínimo pudor em torcer-te ali o pescoço por uma mão cheia de euros e que se apresentam como a polícia, como expressão da soberania do estado direito, quando obviamente operam à margem da lei. 

Mas será que a fronteira entre legalidade e ilegalidade é ainda importante?

Chegados a casa todos vimos que nas redes sociais as imagens das cargas tinham sido partilhadas essencialmente por gente a pedir mais violência sobre os ocupantes. Não surpreende o seu teor, estas sempre existiram, mas o seu número e a sua uniformidade. O reacionarismo (que tanto pode ser de esquerda como de direita) encontrou nos últimos anos a sua linguagem própria, que vem dar uma forma concreta a algo que antes era mais difuso. O que estas mensagens pediam era precisamente que a força "legal" da polícia se fundisse com a arbitrariedade da força "extra-legal" dos capangas e que o estado deixe de observar as suas próprias regras no monopólio da violência. Por isso é que não é surpreendente a leniência do estado e da PSP face a sua própria desautorização por uma empresa de segurança privada: ante a polarização social e política em curso, a violência legal do estado e a violência para-legal do poder económico serão cada vez mais uma única coisa. O que o capitalismo não conseguir resolver com a polícia resolverá com os capangas, e vice-versa.

Essa polarização, obviamente, tem dois lados. Sem pré-aviso, sem uma sigla por trás, sem hesitações estiveram ali umas poucas centenas de pessoas a defender as pessoas que permaneciam sobre assédio constante dos capangas dentro da casa. "Daqui a nada voas pela janela" diziam os capangas lá dentro. "Aproveita agora que está a dar o telejornal" diziam os que ainda resistiam dentro do espaço. Uns fora, outros dentro, ali permaneceram até depois da meia noite. Não conhecia a maioria das caras, mas não vi nelas medo nem resignação. Ninguém teve dúvidas onde estar, não por fidelidade formal a qualquer sigla, ideologia ou a causa abstracta, apenas por um compromisso inequívoco entre todos que compreendem o absurdo e a prepotência daquela situação.

Não poderia haver projecto mais consensual do que a Seara: ocupar um edifício esventrado por vistos gold para lá construir um apoio horizontal a quem mais sofre com uma crise económica que ainda vai no começo. É algo de senso comum. E, no entanto, desaparece de um modo extremamente dúbio, sem que ninguém no governo pisque sequer um olho. Tudo isto desenha um esboço claro dos tempos que iremos viver: de um lado formas de cooperação cada vez mais fortes e capazes, do outro uma violência cada vez mais brutal e arbitrária.

 

 

Luhuna Carvalho

Luhuna Carvalho nasceu em 1980, em Lisboa. 

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 12.06.2020

Edição #27 • Primavera 2020 •