Contam-se 66 dias
desde a primeira ordem de confinamento até à primeira insurreição. Ao lado da
absoluta revolta pela morte de George Floyd, podemos também assinalar um
pequeno sentimento de esperança de ainda ser possível que as pessoas lutem
contra uma disposição do mundo que é, para elas, uma contínua fonte de
violência, que lutem pela própria possibilidade de prosperarem, que lutem
juntas e nas ruas. É certo que, durante esse intervalo, a hipótese de este
potencial ter sido eclipsado atormentou toda a gente que conheço. Isso não
aconteceu.
Os eventos ainda se
estão a desenrolar e não pretendo extrair conclusões simplistas. Devia
haver uma verdadeira humildade no reconhecimento de que toda a teoria vem da
luta, de que esta não a precede e, muito menos, a finge dirigir. Para aqueles
de entre nós que não podem estar lá fora, parece importante estar atento ao que
é intoleravelmente familiar: o assassinato pela polícia de uma pessoa negra, a
mentira de que a polícia estava a agir em autodefesa, a revelação de que a mais
crua das mentiras encobre um linchamento. A familiaridade deste facto não
diminui de nenhum modo a sua intensidade. A execução extrajudicial de pessoas
negras é central na ordem da sociedade dos EUA, central não apenas no modo como
o poder se mantém, mas no modo como este se reconhece. E a legitimidade e
necessidade da revolta negra é, em parte, uma tentativa de sobreviver a esta
ordem, de construir uma contra-ordem. Apesar das lamúrias desesperadas dos
meios de comunicação e dos políticos em torno do caos nas ruas, há desordem
apenas no sentido mais literal: uma tentativa de desmantelar a ordem fundada na
violência racializada.
Este enquadramento da
desordem, além do mais, pertence a uma tradição de longa data — infelizmente
presente tanto à esquerda quanto à direita — de decidir o que é válido enquanto
política. Grupos manifestamente regularizados, com hierarquias claras e votos e
estruturas de financiamento e organogramas e um gabinete algures: sim,
definitivamente política. Mas motins nem tanto, invariavelmente descartados
como respostas espasmódicas e irreflectidas à imediatez do sofrimento
comunitário. Isto acompanha a ideia perniciosa do agitador externo, uma ideia
segundo a qual todos os aspectos de um protesto para lá da simples comunicação
são secretamente organizados por oportunistas vindos de um lugar misterioso,
que tiram partido do caos, da revolta e do sofrimento legítimos,
sentimentos aos quais eles são supostamente indiferentes, para impor os seus
objectivos políticos particulares. Todas estas fantasias têm apenas uma função:
excluir os negros do domínio do político, recusar o reconhecimento do motim
como uma das mais básicas e antigas formas de acção colectiva. Enquanto o Estado
leva a cabo acções cada vez mais violentas, a imagem projectada tanto pelos
meios de comunicação como pelos quadros de governantes aterrorizados é de um
mundo que está de cabeça para baixo: o sentimento é a única política legítima,
enquanto a acção é, de algum modo, uma outra coisa.
Estas tácticas de
desmobilização são desmoralizantemente familiares. Contra isto, há vislumbres
do novo, construído como sempre a partir dos fragmentos do antigo. Mesmo que a
resposta ao SARS-CoV-2 tenha surgido como promessa de crescimento de um
estado-de-vigilância já musculado, o colapso de todas as leis anti-máscara (do
género das que Trump et al. tentaram endurecer durante a grande crise da
Antifa de 2017) parece, pelo menos, alargar a margem para o antagonismo público.
Certamente, o reconhecimento de que o estado-de-vigilância ainda não superou
todas as suas barreiras, de que o seu desejo pela consciência total da
informação pode ser contestado, tem sido para muitos uma experiência
restauradora. Com a integração das máscaras numa nova normalidade nos EUA, como
já aconteceu noutros lugares há bastante tempo, o equilíbrio de forças será
alterado por algum tempo.
Entre os
acontecimentos mais bizarros deste intervalo de 66 dias, estiveram as
manifestações a que poderíamos chamar anti-greves: reivindicações colectivas e
violentas pelo regresso ao trabalho, independentemente dos salários e das
condições disponibilizadas. Estas manifestações foram de muitos modos
patrocinadas por fontes dissimuladas, expressões, não do trabalhador imaginado,
mas do empresário tentando fazer com que a máquina do dinheiro volte a
funcionar. Se, neste sentido, estas pantomimas eram falsas, elas não deixam de
exprimir a verdade sobre a incapacidade do capitalismo para enfrentar esta
situação. Quando o salário significa sobrevivência, o que fazer numa situação
em que a função do trabalho de manter os proletários vivos é subitamente
contrariada pelo facto de o trabalho poder efectivamente resultar na morte de
um número suficiente de proletários para que o capitalismo deixe de funcionar?
Teria sido gratificante assistir aos porta-vozes oficiais e não-remunerados do
capital contorcendo-se nesta armadilha se as circunstâncias não tivessem sido
tão horríveis e mortais para as pessoas que conhecemos e amamos. O governo,
cujo papel enquanto servo do capital nunca foi tão claro, assumiu a tarefa de
calcular como seriam exactamente estabelecidos os parâmetros do trabalho e da
produção num equilíbrio necessário para fazer sobreviver a economia à custa de
quantas vidas fosse necessário, um ajuste que foi adoptado como a única tarefa
do vasto aparelho estatal até este ter sido forçado a voltar a sua atenção para
o Minnesota, e subitamente para todo o lado.
Todo este cenário
teve o efeito colateral de fazer a propriedade parecer estranha. A
revelação do primeiro de Abril, de que se pode simplesmente… não pagar a renda,
foi seguramente um rasgão importante no véu ideológico; o colapso historicamente
sem precedentes até uma taxa de participação no trabalho de apenas 50%, rasgou
ainda mais o véu. E deu-se então a experiência da própria mercadoria, a mais
naturalizada das coisas. Quando as pessoas começam a limpar as suas compras com
lixívia, isso torna-estranho. Quando se descobre que todo o sector encarregue
de transformar o dinheiro das pessoas em mercadoria é essencial, do mesmo modo
que os trabalhadores da saúde, e se torna evidente que estes trabalhadores
devem arriscar as suas vidas para que essa transformação ocorra, isso torna-se
estranho. Quando o governo admite abertamente que, contra todos os seus hábitos
e predilecções, pagará às pessoas para que estas comprem coisas e salvem a
economia, isso torna-se estranho como tudo.
É preciso questionar
se isto não terá alterado um pouco a dinâmicas das pilhagens. Os reaccionários
do costume dirão as coisas do costume, mas a situação peculiar em que nos
encontramos, em que a questão do modo como os bens básicos passam das mãos dos
capitalistas para a casa dos proletários nunca foi tão enfatizada, em que a
acumulação de bens nunca foi tão obviamente reconhecida como o açambarcamento
da riqueza social necessária — isto talvez seja algo novo. A partida das
pilhagens de bairros empobrecidos para os Crystal Valleys de Melrose e
SoHo despertou, sem dúvida, um temor no coração dos próprios comentadores que
há muito reclamavam esse salto, condenando a “destruição da própria comunidade”
(como se uma comunidade pudesse alguma vez ser feita de mercadorias).
Encurralados na sua própria má-fé, resta-lhes apenas encenar uma autoridade
moral que augura contra a tomada de qualquer coisa de valor, mesmo que o
objectivo óbvio seja o de re-vender pelo dinheiro necessário à sobrevivência,
uma vez que isto supostamente abandona qualquer reivindicação pela necessidade
(como se fossem alguma vez defender a pilhagem de leite e de fraldas). Nada disto
deve ser levado a sério por nenhum observador, pois estamos todos conscientes
de que estas criaturas angustiadas defenderão a pilhagem apenas na
circunstância singular de esta ser conduzida por um Bezos, grande ou pequeno.
Os saqueadores são aqui, evidentemente, os actores de boa fé, envolvendo-se no
plebiscito em torno da sobrevivência. Isto é apenas uma das formas através das
quais os motins de 2020 eclipsam a outra estrela política do ano. Talvez a
revelação de 2020 não seja “uau, um quase-socialista esteve perto de se tornar
um nomeado à presidência”, mas “ah, nunca nos livraremos da polícia pelo voto”,
e também “ah, as barreiras de acesso a bens essenciais de sobrevivência são
absurdas e inaceitáveis”, e por fim “ah, estes dois factos são o mesmo”.
A imagem
impressionante, em Minneapolis, de um posto policial a ser invadido, abandonado
pelas suas forças e incendiado, é inteiramente nova na memória moderna.
Pensemos no saque da Terceira Esquadra Policial de Minneapolis como a nossa
viragem internacionalista; afinal, há nove anos no Egipto, 99 postos policiais
foram incendiados numa única noite. Chega de excepcionalismo americano.
Assistir às imagens dos bairros, após a expulsão integral da polícia, oferece a
memória de que o bloqueio e a barricada — tão fundamentais para os motins e
outras formas de luta de circulação — pretendem deixar de ser apenas
interrupções do tráfego ou do comércio, para se converterem numa questão de
defesa do território. Um eco pairando sobre a noite de Minnesota, a 28 de Maio,
talvez tenha sido a insistência em curso, pelos povos Oglala Sioux e Cheyenne
River Sioux, de formar e manter postos de controlo para proteger os territórios
tradicionais, chegando mesmo a banir efectivamente a entrada do governador de
Dakota do Sul. Enquanto a justificação para os postos de controlo é medicamente
clara e legalmente persuasiva, não é difícil ver também a imagem posterior dos
postos de controlo que protegiam território não cedido pelos Wetʼsuwetʼen após a incursão da RCMP [Royal
Canadian Mounted Police] a mando do petro-estado canadiano no início deste ano,
e antes deles uma série de lutas semelhantes. Nick Estes e Glenn Sean Coulthard
recordaram-me noutra noite que o Movimento Indígena Americano foi fundado em
Minneapolis e começou, tal como o Partido dos Panteras Negras para Auto-Defesa,
com patrulhas comunitárias. Esta história, de uma luta pela autogestão fundada
na disputa territorial, que deve começar pelo assentamento contra a polícia,
pairava em torno do incêndio da Terceira Delegacia. Se alguma vez houve um
tempo para constituir um bairro enquanto comuna autónoma, auto-gerida e sem
referência ao estado colonial, foi este. Ou quase. Todos sabíamos que mais
rufias chegariam com armas de fogo e bandeiras bordadas, enquanto o presidente
sonha o seu sonho imperial da lei marcial. Mas devemos também suspeitar que
este salto para a afirmação de um processo colectivo que deixe de fora a
violência do estado, e que não é novo, mas tornado mais visível pelas lutas
indígenas, permanece em cima da mesa se o objectivo for acabar com os
homicídios policiais e começar qualquer tipo de autonomia colectiva.
É importante que
estas compreensões do estado actual e da natureza da propriedade privada já
existam, mais para uns do que para outros — as classes desfavorecidas e
racializadas, mais propriamente as pessoas cujas famílias já foram propriedade,
devem suportar, entre outras coisas, o pesado reconhecimento de que o sistema
de propriedade é morte, e que os polícias, enquanto guardiões desse sistema,
são os guardiões da morte. Nenhum outro veredicto sobre a instituição é
possível. O sistema da propriedade atravessa linhas raciais e outras, para ser
rigoroso, e é de recordar que a crescente onda de encarceramento é aumentada em
condados maioritariamente brancos, especialmente nos territórios mais afectados
pela crise opióide. Uma maneira de explicar o papel do canal polícia-prisão é
no seu papel de dispersão social e supressão salarial. Um artigo recente de
Adam D. Reich e Seth J. Prins, “The Disciplining Effect of Mass Incarceration
on Labor Organization”, é apenas o último a demonstrar como aquilo que é
politicamente designado como “exposição ao sistema de justiça criminal” serve
para debilitar a colectividade e, finalmente, os salários. Isto será dizer,
entre outras coisas, que os polícias extraem capital. São ferramentas
extractivas. Ele é arrancado dos pobres, ainda que de modos díspares e, em
parte, através dessas disparidades — mais uma razão pela qual seria bizarro
imaginar que uma insurreição nacional contra a polícia seria racialmente
monolítica. Mas isto não quer dizer que todas as partes se encontrem na mesma
posição. No meio da imobilidade forçada da pandemia, e agora com o toque de
recolher obrigatório selectivamente imposto pelo país, a história do capturador
de escravos que diz que é permitida a circulação de alguns humanos e não de
outros, é inescapável. Está presente na própria imagem do joelho de Derek
Chauvin sobre o pescoço de George Floyd.
Vale a pena mencionar
uma última novidade, entre as muitas que permanecerão por dizer. Tem sido
comum, ao longo de décadas recentes de acontecimentos horrorosamente
semelhantes, que os motins aconteçam localmente quando a polícia comete os seus
assassinatos, e que depois se alarguem a nível nacional (e além-fronteiras)
quando a polícia não é condenada, ou não é acusada de todo. Este foi o padrão
após o espancamento de Rodney King, e após o assassinato de Michael Brown, as
duas sequências com maior alcance desde os verões de 1967 e 1968. Esta semana
foi marcadamente diferente, com tumultos que se estenderam rapidamente nos dias
após o assassinato. Não pretendo oferecer nenhuma explicação fácil para este
desenvolvimento. Os eventos ainda se estão a desenrolar, e é importante
observar e aprender. Parece possível que parte da explicação se prenda com o
assassinato de Ahmaud Arbery na Georgia, apenas alguns meses antes, em toda a
sua particularidade e horror. Devíamos dizer o seu nome, o de Breonna Taylor e
o de muitos outros. Quando George Floyd foi assassinado, o problema do
linchamento contemporâneo já estava lançado para alguns e, para outros,
pressionado contra os seus corações como um estilhaço de vidro.
Algo que se destaca
em relação ao linchamento que matou Arbery é o facto de não ter sido executado
por polícias. Não exactamente. Os três homens brancos estavam ligados à
polícia, Gregory McMichael, um ex-polícia, Travis, o seu filho, e Roddie Bryan,
o vizinho entusiasticamente cúmplice. Assassinaram colectivamente Ahmaud Arbery
por causa de um alegado roubo, bem mais falsificado do que qualquer nota de
vinte dólares. Ecos, claro, de George Zimmerman vivendo o seu sonho frustrado
de se tornar polícia ao executar Trayvon Martin, de 17 anos. Ainda mais
devastador é o facto de pelo menos uma pessoa na vizinhança ter sido
previamente aconselhada pela polícia, no caso de algum distúrbio, a contactar
Gregory McMichael, que actualmente é apenas um tipo reformado. Trata-se de uma
série nauseante de ligações na qual os diagramas de Venn da branquitude e do
policiamento se tornam cada vez mais intrincados pela regra da propriedade, e o
nome do seu terreno comum é Licença para Matar.
Mas talvez algo seja
visível nisto. Tenho-me esforçado, no meu próprio trabalho, para ensinar o
conceito de racismo estrutural; todos nós somos tão infinitamente impulsionados
a compreender más acções como consequência de más ideias tidas por indivíduos corrompidos.
Mas a intitulação casual de Gregory McMichael e, na verdade, de todas as
pessoas brancas naquela vizinhança, é a melhor lição. Quando o assassinato de
nove minutos de George Floyd foi posto em circulação, talvez uma parte da sua
força não tenha sido a sua excepcionalidade, mas o oposto — talvez
todos tenham percebido que isto é o que está sempre a acontecer, mais ou menos
subitamente, mas sempre de modo tão óbvio e tão brutal, sem resistência, sem
movimentos súbitos, sem qualquer tentativa de alcançar uma suposta arma. Talvez
finalmente se tenha tornado claro que os seus executores foram aqueles quatro
polícias, mas os seus assassinos foram também a ordem do capitalismo racial
como tal, a propriedade como tal, a polícia como tal. Quando finalmente tomamos
consciência disto, é inevitável o desejo pela justiça individual, mas é difícil
imaginar que possamos esperar que a justiça colectiva seja alcançada através
dessas medidas.
•
Joshua Clover
Joshua Clover é ensaísta, poeta e professor
de literatura e de teoria crítica na Universidade de California Davis.
Nota de edição
Texto publicado no blog da
editora inglesa Verso e traduzido para português por
Paulo Ávila, com revisão de João Paupério.
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Ficha Técnica
Data de publicação: 09.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •