Salão dos recusados • Pedro Levi Bismarck




A Casa da Música e a Fundação de Serralves não têm apenas em comum o facto de estarem envolvidas numa polémica sobre as condições de trabalho dos seus trabalhadores precários, elas partilham um modelo de gestão (sobretudo desde a crise financeira de 2008 e do programa de austeridade da Troika) que as transformou em verdadeiras entidades empresariais. E embora o financiamento seja marcadamente público, a gestão está a cargo dos «privados». Veja-se o caso da CdM: o financiamento público em 2019 correspondeu a 8 430 000€ enquanto que o apoio privado foi de 1 799 810€, mas o conselho de administração é composto maioritariamente por administradores privados.
Em qualquer um dos casos, tanto a CdM como Serralves são hoje projectos «falhados», no sentido em que não só traíram a sua missão cultural original como abandonaram progressivamente qualquer estratégia pública de socialização da cultura, seguindo uma lógica de bilheteira e de lucro empresarial, ainda que salvaguardando alguns segmentos mais «elevados», como os ciclos de música clássica, que desta forma pacificam o público mais «erudito» oferecendo-lhes a ilusão confortável de que a CdM mantém a sua distinta e nobre missão artística.
Não é por acaso que um dos focos dos actuais problemas laborais se situe nos serviços educativos; estes são uma espécie de último reduto de uma ideia de educação pela arte e o último espaço onde a ideia do museu como lugar de socialização da cultura ainda sobrevive. O desprezo a que são votados por parte das administrações é o desprezo por um modelo de «instituição» que dificilmente pode responder aos novos critérios da gestão neoliberal da cultura. E por isso serão sempre os dispensáveis. Não se trata de romantizar este modelo e sabemos bem que essa tal «missão original» já trazia formuladas todas as contradições que abriram a porta ao seu falhanço. Mas não me posso esquecer que ambas as instituições, mesmo debaixo de um colete de forças bastante aburguesado, foram instrumentos culturais e políticos expressivos, basta lembrar o trabalho de Elvira Leite em Serralves, precisamente no Serviço Educativo.
Ambas as instituições têm hoje uma programação artística e cultural genericamente pobre. Mas não se trata apenas disso: a ligação que estabelecem com os músicos ou artistas da cidade é nula. Exceptuando raras excepções, os alugueres das salas estão desenhados para serem alugados aos promotores privados e os programadores estão regra geral mais preocupados em agendar os «produtos» vendidos pelas promotoras do que em articular uma relação com a rede de artistas da cidade. O «sonho» original de uma CdM capaz de integrar uma relação entre o ensino da música, os artistas e uma missão pública cultural e altamente experimental da qual ainda se ouviram alguns ecos nos primeiros anos foi-se esfumando ao longo do tempo. Do mesmo modo, em Serralves, a longa entrada que Siza desenhou para o Museu de Arte Contemporânea, representa bem a distância e o «vazio» que esta instituição estabeleceu com a produção cultural da cidade.
Este processo de «privatização» da CdM e da Fundação de Serralves (no sentido em que a sua gestão foi sendo orientada por critérios exclusivamente empresariais) produziu um conflito permanente no interior destas instituições que se reflectiu tanto no esvaziamento progressivo destas instituições por parte de alguns, como na dissolução da sua função social. Tanto a CdM como Serralves aparecem hoje como edifícios isolados relativamente à cidade, com raras acções culturais e artísticas capazes de extravasar os rígidos protocolos formatados do mercado. Os motes permanentes de abertura ao «público» que ouvimos por parte destas instituições, mostram apenas a visão empobrecida que estas têm tanto desse «público» como da própria «cultura». Basta para isso ir ao Serralves em Festa. Tudo isto contrasta ainda com o tecido social de uma cidade como o Porto, composto por uma população marcadamente pobre e que raramente teve a oportunidade de se sentir parte de qualquer uma destas instituições.
A precariedade laboral corresponde a um modelo de gestão que podemos encontrar um pouco por todo o lado: na CdM, em Serralves, nas Universidades. Em ambos os casos, a sua empresarialização implica uma lógica económica de meios e fins que orienta a sua acção, seja ela o ensino ou a cultura, reduzindo a sua capacidade criativa e experimental, homogeneizando e uniformizando os seus processos/currículos, reduzindo as margens de crítica e auto-crítica, anulando qualquer comprometimento crítico social e político sem o qual as práticas culturais, pedagógicas e artísticas se transformam em puros espaços tecnocráticos de entretenimento ou de formação.
O que quanto a mim já só é intolerável em todos estes casos é o silêncio e o medo tácito com que os processos de desqualificação laboral e social destas instituições têm sido acompanhados. Também aqui a generalização da precariedade, como já o escrevi a propósito da Universidade, têm duas consequências particularmente graves: primeiro, disseminam e impõem uma lógica de medo e de conformismo relativamente à situação laboral de cada um, enquanto retiram a possibilidade de integrar os trabalhadores na gestão das próprias instituições. Um corpo precário, móvel, desvinculado, apolítico de trabalhadores, corresponde a instituições cujos mecanismos internos passaram a excluir de forma cada vez mais evidente a participação democrática na sua gestão.
O facto dos conselhos de administração tanto da CdM como de Serralves não se terem sentido na obrigação de responder publicamente, assim como a sua posição de intransigência e de desprezo relativamente à situação destes trabalhadores, expressa bem como a dissolução da condição pública destas instituições corresponde a uma erosão profunda dos seus processos democráticos. A lógica privada pressupõe não apenas uma profunda desigualdade económica entre administradores e precários, mas também uma profunda desigualdade política e social dentro das instituições. Reivindicar a possibilidade de uma condição pública destas instituições depende de um duplo movimento capaz de reconhecer que a precariedade laboral é tanto uma expropriação de capital e de salário, como de poder social e político; que a precariedade corresponde a um modelo de gestão privada de expropriação de salário, mas também de expropriação do poder de decidir e de gerir instituições e espaços cuja condição mais do que pública só pode ser colectiva, isto é uma condição que diz respeito a todos e que se deve dirigir a todos.
A solidariedade entre trabalhadores encontrada em Serralves e na Casa da Música em torno da situação dos precários é um ponto de partida importante para uma crítica destas duas instituições, uma crítica capaz de reconhecer esse duplo movimento: exigências laborais e exigências de participação democrática. Neste sentido, é um exemplo para as Universidades, onde a ausência de solidariedade entre precários e contratados tem sido a regra e que, na verdade, apenas assinala um mal-estar, um déficit cada vez maior nos processos democráticos da sua gestão e funcionamento, a começar pelos alunos, remetidos cada vez mais para condição de clientes. Clientes e precários, precisamente, dois estatutos que só podem ser recusados.



Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

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Protestos dos trabalhadores precários da Casa da Música e da Fundação de Serralves.

Ficha Técnica
Data de publicação: 03.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •