A Casa da Música e a Fundação de
Serralves não têm apenas em comum o facto de estarem envolvidas numa polémica sobre
as condições de trabalho dos seus trabalhadores precários, elas partilham um modelo
de gestão (sobretudo desde a crise financeira de 2008 e do programa de
austeridade da Troika) que as transformou em verdadeiras entidades empresariais.
E embora o financiamento seja marcadamente público, a gestão está a cargo dos
«privados». Veja-se o caso da CdM: o financiamento público em 2019 correspondeu
a 8 430 000€ enquanto que o apoio privado foi de 1 799 810€, mas o conselho de
administração é composto maioritariamente por administradores privados.
Em qualquer um dos casos, tanto a CdM
como Serralves são hoje projectos «falhados», no sentido em que não só traíram
a sua missão cultural original como abandonaram progressivamente qualquer
estratégia pública de socialização da cultura, seguindo uma lógica de
bilheteira e de lucro empresarial, ainda que salvaguardando alguns segmentos
mais «elevados», como os ciclos de música clássica, que desta forma pacificam o
público mais «erudito» oferecendo-lhes a ilusão confortável de que a CdM mantém
a sua distinta e nobre missão artística.
Não é por acaso que um dos focos dos
actuais problemas laborais se situe nos serviços educativos; estes são uma
espécie de último reduto de uma ideia de educação pela arte e o último espaço
onde a ideia do museu como lugar de socialização da cultura ainda sobrevive. O
desprezo a que são votados por parte das administrações é o desprezo por um
modelo de «instituição» que dificilmente pode responder aos novos critérios da
gestão neoliberal da cultura. E por isso serão sempre os dispensáveis. Não se
trata de romantizar este modelo e sabemos bem que essa tal «missão original» já
trazia formuladas todas as contradições que abriram a porta ao seu falhanço.
Mas não me posso esquecer que ambas as instituições, mesmo debaixo de um colete
de forças bastante aburguesado, foram instrumentos culturais e políticos
expressivos, basta lembrar o trabalho de Elvira Leite em Serralves,
precisamente no Serviço Educativo.
Ambas as instituições têm hoje uma
programação artística e cultural genericamente pobre. Mas não se trata apenas
disso: a ligação que estabelecem com os músicos ou artistas da cidade é nula.
Exceptuando raras excepções, os alugueres das salas estão desenhados para serem
alugados aos promotores privados e os programadores estão regra geral mais
preocupados em agendar os «produtos» vendidos pelas promotoras do que em
articular uma relação com a rede de artistas da cidade. O «sonho» original de
uma CdM capaz de integrar uma relação entre o ensino da música, os artistas e
uma missão pública cultural e altamente experimental da qual ainda se ouviram
alguns ecos nos primeiros anos foi-se esfumando ao longo do tempo. Do mesmo
modo, em Serralves, a longa entrada que Siza desenhou para o Museu de Arte
Contemporânea, representa bem a distância e o «vazio» que esta instituição
estabeleceu com a produção cultural da cidade.
Este processo de «privatização» da CdM e
da Fundação de Serralves (no sentido em que a sua gestão foi sendo orientada
por critérios exclusivamente empresariais) produziu um conflito permanente no
interior destas instituições que se reflectiu tanto no esvaziamento progressivo
destas instituições por parte de alguns, como na dissolução da sua função
social. Tanto a CdM como Serralves aparecem hoje como edifícios isolados
relativamente à cidade, com raras acções culturais e artísticas capazes de
extravasar os rígidos protocolos formatados do mercado. Os motes permanentes de
abertura ao «público» que ouvimos por parte destas instituições, mostram apenas
a visão empobrecida que estas têm tanto desse «público» como da própria
«cultura». Basta para isso ir ao Serralves em Festa. Tudo isto contrasta ainda
com o tecido social de uma cidade como o Porto, composto por uma população
marcadamente pobre e que raramente teve a oportunidade de se sentir parte de
qualquer uma destas instituições.
A precariedade laboral corresponde a um
modelo de gestão que podemos encontrar um pouco por todo o lado: na CdM, em
Serralves, nas Universidades. Em ambos os casos, a sua empresarialização implica
uma lógica económica de meios e fins que orienta a sua acção, seja ela o ensino
ou a cultura, reduzindo a sua capacidade criativa e experimental,
homogeneizando e uniformizando os seus processos/currículos, reduzindo as
margens de crítica e auto-crítica, anulando qualquer comprometimento crítico
social e político sem o qual as práticas culturais, pedagógicas e artísticas se
transformam em puros espaços tecnocráticos de entretenimento ou de formação.
O que quanto a mim já só é intolerável
em todos estes casos é o silêncio e o medo tácito com que os processos de
desqualificação laboral e social destas instituições têm sido acompanhados.
Também aqui a generalização da precariedade, como já o escrevi a propósito da
Universidade, têm duas consequências particularmente graves: primeiro,
disseminam e impõem uma lógica de medo e de conformismo relativamente à
situação laboral de cada um, enquanto retiram a possibilidade de integrar os
trabalhadores na gestão das próprias instituições. Um corpo precário, móvel,
desvinculado, apolítico de trabalhadores, corresponde a instituições cujos
mecanismos internos passaram a excluir de forma cada vez mais evidente a
participação democrática na sua gestão.
O facto dos conselhos de administração
tanto da CdM como de Serralves não se terem sentido na obrigação de responder
publicamente, assim como a sua posição de intransigência e de desprezo
relativamente à situação destes trabalhadores, expressa bem como a dissolução
da condição pública destas instituições corresponde a uma erosão profunda dos
seus processos democráticos. A lógica privada pressupõe não apenas uma profunda
desigualdade económica entre administradores e precários, mas também uma profunda
desigualdade política e social dentro das instituições. Reivindicar a
possibilidade de uma condição pública destas instituições depende de um duplo
movimento capaz de reconhecer que a precariedade laboral é tanto uma
expropriação de capital e de salário, como de poder social e político; que a
precariedade corresponde a um modelo de gestão privada de expropriação de
salário, mas também de expropriação do poder de decidir e de gerir
instituições e espaços cuja condição mais do que pública só pode ser colectiva,
isto é uma condição que diz respeito a todos e que se deve dirigir a todos.
A solidariedade entre trabalhadores
encontrada em Serralves e na Casa da Música em torno da situação dos precários
é um ponto de partida importante para uma crítica destas duas instituições, uma
crítica capaz de reconhecer esse duplo movimento: exigências laborais e exigências
de participação democrática. Neste sentido, é um exemplo para as Universidades,
onde a ausência de solidariedade entre precários e contratados tem sido a regra
e que, na verdade, apenas assinala um mal-estar, um déficit cada vez
maior nos processos democráticos da sua gestão e funcionamento, a começar pelos
alunos, remetidos cada vez mais para condição de clientes. Clientes e precários,
precisamente, dois estatutos que só podem ser recusados.
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto,
crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e
Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).
Imagem
Protestos
dos trabalhadores precários da Casa da Música e da Fundação de Serralves.
Ficha Técnica
Data de publicação: 03.06.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •