Sobre a situação epidémica • Alain Badiou




Sempre considerei que a situação actual, marcada por uma pandemia viral, não tinha nada de propriamente excepcional. Desde a pandemia (também viral) da Sida, passando pela gripe das aves, o vírus Ébola, o vírus SARS 1, já para não falar de várias outras gripes, do regresso do sarampo ou de tuberculoses que os antibióticos já não curam, sabemos que o mercado mundial, combinando a existência de vastas regiões com serviços médicos insuficientes e a falta de disciplina mundial para levar a cabo as vacinações necessárias, produz inevitavelmente epidemias sérias e devastadoras (no caso da Sida na ordem dos milhões de mortos). Para lá do facto de a actual pandemia atingir em grande escala o considerável conforto do mundo dito ocidental – feito, em si mesmo, desprovido de significação inovadora, e sobretudo convocando lamentações suspeitas e absurdos revoltantes nas redes sociais – não me pareceu que fosse necessário, para além das medidas de protecção evidentes e do tempo que demorará o vírus a desaparecer na ausência de novos alvos, ficar empolgado.

Além do mais, o verdadeiro nome da epidemia em curso deveria indicar que ela surge, num certo sentido, do “nada de novo sob o céu contemporâneo”. O seu verdadeiro nome é SARS 2, ou seja, “Severe Acute Respiratory Syndrom 2”, denominação que inscreve na verdade uma identificação “a dois tempos”, após a epidemia SARS 1 que se desenvolveu pelo mundo na primavera de 2003. Esta doença tinha sido nomeada, à época, “a primeira doença desconhecida do século XXI”. É claro, portanto, que a epidemia actual não é de modo algum o surgimento de algo radicalmente novo ou inédito. É a segunda do seu género neste século, situável na sua filiação. De tal forma que para irmos directamente ao cerne da questão a única crítica séria que se pode apontar hoje às autoridades competentes, em termos de matéria preditiva, é não terem suportado de forma séria, após o SARS 1, a investigação que teria posto à disposição do mundo médico os meios de acção necessários para fazer face ao SARS 2.

Nesse sentido, não via nada mais a fazer para além de tentar sequestrar-me em casa, como toda a gente, e nada mais a dizer para além de exortar todos os outros a fazer o mesmo. Neste ponto, respeitar uma disciplina estrita é de tal forma necessário que se torna um apoio e uma protecção fundamental para todos aqueles que são os mais expostos: evidentemente, todos os cuidadores que estão directamente na frente e que devem poder contar com uma disciplina rigorosa, incluindo as pessoas infectadas; mas também os mais frágeis, como as pessoas mais velhas, nomeadamente os que se encontram em lares de idosos; e ainda todos aqueles que se deslocam para trabalhar, correndo desse modo o risco de contágio. Esta disciplina, da parte de todos os que podem obedecer ao imperativo “fiquem em casa”, deve também encontrar os meios para que aqueles que não têm casa, ou quase nada, possam ainda assim encontrar um abrigo. Aqui, podemos pensar numa requisição geral dos hóteis.

Estas obrigações são efectivamente cada vez mais imperativas, mas não comportam, pelo menos numa primeira instância, grandes esforços de análise ou de constituição de um pensamento novo. Mas é a este respeito que leio demasiadas coisas, ouço demasiadas coisas, nomeadamente entre os que me rodeiam, que me desconcerta pelos problemas que manifestam e pela sua inadequação total à situação simples, por assim dizer, em que nos encontramos.

Estas declarações peremptórias, apelos patéticos, acusações enfáticas, são de espécies diferentes, mas todas têm em comum um curioso desprezo pela temível simplicidade e ausência de novidade da situação epidémica actual. Ora são inutilmente servis em relação aos poderes, que não fazem senão aquilo a que são constrangidos pela natureza do fenómeno. Ora são do foro do Planeta e da sua mística, o que nos faz avançar em nada. Ora carregam tudo sobre as costas do pobre Macron, que não faz, e não pior do que outros, outra coisa que não seja o seu trabalho de chefe de Estado em tempos de guerra ou epidemia. Ora reclamam o evento fundador de uma revolução inédita, da qual não vemos que relação esta estabeleceria com a exterminação de um vírus, e para a qual, de resto, os nossos “revolucionários” não têm um único meio novo. Ora afundam-se num pessimismo do fim do mundo. Ora exasperam sobre o facto de o “eu acima de tudo”, regra de ouro da ideologia contemporânea, não constituir nesta circunstância interesse algum, ajuda alguma, podendo inclusive actuar como cúmplice de uma continuação indefinida do mal.

Diríamos que o teste epidémico dissolve por toda a parte a actividade intrínseca da Razão, e que obriga os seus sujeitos a recuperar os tristes efeitos – misticismo, fabulações, orações, profecias e maldições – que a Idade Média tinha por costume quando a peste varria os seus territórios. Assim sendo, sinto-me forçado a reunir algumas ideias simples. Diria até: cartesianas.

Concordemos em começar por definir o problema, tão mal definido e, portanto, tão mal tratado. Uma epidemia tem a complexidade de ser sempre um ponto de articulação entre determinações naturais e determinações sociais. A sua análise completa é transversal: é necessário identificar os pontos onde os dois tipos de determinações se cruzam e tirar ilações.

Por exemplo, o ponto inicial da epidemia actual situa-se muito provavelmente nos mercados da província de Wuhan. Os mercados chineses são ainda hoje conhecidos pela sua perigosa sujidade, e pelo seu irreprimível gosto pela venda a céu aberto de todo o tipo de animais vivos amontoados. Daí que o vírus, albergado por uma forma animal que o herdou dos morcegos, se tenha encontrado a certa altura num meio populacional muito denso e com uma higiene rudimentar. Um impulso natural levou o vírus de outra espécie a transitar então para a espécie humana. Como exactamente? Não o sabemos ainda e apenas procedimentos científicos nos poderão elucidar sobre tal facto. Entretanto, estigmatizemos todos aqueles que lançam nas redes da Internet fábulas tipicamente racistas, suportadas por imagens manipuladas segundo as quais tudo resulta do facto de os Chineses comerem morcegos praticamente vivos.

Este trânsito local entre espécies animais até ao ser humano constitui o ponto de origem de toda a questão. Apenas após o qual se opera um dado fundamental do mundo contemporâneo: o acesso do capitalismo de Estado chinês a um patamar imperial, ou seja, a uma presença intensa e universal no mercado mundial. A partir deste surgiram evidentemente inúmeras redes de difusão, antes de o governo chinês ter tomado a medida de confinar totalmente o ponto de origem – na verdade, uma província inteira, ou seja, quarenta milhões de pessoas – que acabaria por ter sucesso, mas tarde demais para evitar que a epidemia se propagasse pelos caminhos – e os aviões, e os barcos – da existência mundial.

Um detalhe revelador do que chamamos a dupla articulação de uma epidemia: hoje, a SARS 2 está contida em Wuhan, mas há bastantes casos em Shangai, maioritariamente devido a pessoas, sobretudo chineses, que chegam do estrangeiro. A China é, portanto, o lugar onde observamos o nó que resulta, por uma razão arcaica e depois moderna, entre um cruzamento natureza-sociedade que ocorre em mercados mal mantidos, arcaicos, causa da aparição da infecção, e uma difusão planetária deste ponto de origem, levada a cabo pelo mercado capitalista mundial e as suas deslocações tão rápidas quanto incessantes.

Depois, entramos na etapa em que os Estados tentam, localmente, conter essa difusão. Notemos de forma passageira que essa determinação permanece fundamentalmente local, ainda que a epidemia seja transversal. Apesar da existência de algumas autoridades transnacionais, é claro que são os Estados burgueses locais que estão sob pressão. Tocamos aqui numa contradição fundamental do mundo contemporâneo: a economia, incluindo o processo de produção em massa de objectos manufacturados, resulta do mercado mundial. Sabemos que o simples fabrico de um telemóvel mobiliza trabalho e recursos, nomeadamente minerais, de pelo menos sete estados diferentes. Mas por outro lado, os poderes políticos permanecem essencialmente nacionais. E a rivalidade dos imperialismos, antigos (Europa e EUA) e novos (China, Japão...), interdita qualquer processo de um Estado capitalista mundial. A epidemia é um dos momentos em que esta contradição entre economia e política está patente. Mesmo os países Europeus são incapazes de sincronizar as suas políticas face ao vírus.

Dominados por esta contradição, os Estados nacionais tentam fazer face à situação epidémica respeitando o máximo possível os mecanismos do Capital, ainda que a natureza do risco os obrigue a modificar o estilo e os actos do poder. Sabemos, desde há muito tempo, que em caso de guerra entre países o Estado deve impor restrições consideráveis, não só sobre as massas como também sobre os próprios burgueses, de modo a salvar o capitalismo local. As indústrias são praticamente nacionalizadas em proveito de uma produção desenfreada de armamento, mas que não produz nesse momento mais-valia monetizável. Uma parte dos burgueses são mobilizados como oficiais e expostos à morte. Os cientistas procuram, dia e noite, inventar novas armas. Inúmeros intelectuais e artistas são requisitados para alimentar a propaganda nacional, etc.

Face a uma epidemia, este tipo de reflexo do Estado é inevitável. É por isso que, contrariamente ao que se diz, tanto as declarações de Macron ou de Phillipe sobre um Estado que voltou repentinamente a ser de “Providência”, como as medidas de apoio às pessoas dispensadas do trabalho ou aos independentes a quem foram fechadas as lojas, desembolsando um ou dois milhares de milhão do Estado, ou o próprio anúncio de “nacionalizações”: nada disto é espantoso nem paradoxal. E daí se conclui que a metáfora de Macron “estamos em guerra” está correcta: na Guerra ou na epidemia, o Estado é forçado a levar a cabo medidas mais autoritárias com um objectivo mais global, ultrapassando por vezes o jogo normal da sua natureza de classe, para evitar estrategicamente uma catástrofe.

Esta é uma consequência bastante lógica da situação, cujo objectivo é refrear a epidemia – ganhar a guerra, para retomar a metáfora de Macron – o mais assertivamente possível, permanecendo dentro da ordem social estabelecida. Não é de forma alguma uma comédia, é uma necessidade imposta pela disseminação de um processo mortal que cruza natureza (daí o papel eminente dos cientistas nesse assunto) e ordem social (daí a intervenção autoritária, e não pode ser outra coisa, do Estado).

Que apareçam neste esforço enormes carências é inevitável. Isso acontece com a falta de máscaras protectoras ou a impreparação respectiva à amplitude dos internamentos hospitalar. Mas quem poderá realmente vangloriar-se de ter “previsto” este tipo de coisas? Em certa medida, é verdade que o Estado não tinha previsto a actual situação. Podemos mesmo dizer que ao enfraquecer o serviço nacional de saúde ao longo de décadas, assim como todos os sectores do Estado ao serviço do interesse geral, fez como se nada de semelhante a esta pandemia devastadora pudesse afectar o nosso país. O que faz com que este estivesse errado, não só sobre a sua forma Macron, mas sob a forma de todos aqueles que o precederam, pelo menos, nos últimos trinta anos.

Mas é também correcto afirmar que, exceptuando talvez alguns cientistas isolados, mais ninguém havia previsto, ou até imaginado, o desenvolvimento em França de uma pandemia deste tipo. Muitos pensavam provavelmente que este tipo de história se adequava a uma África tenebrosa ou a uma China totalitária, mas não numa Europa democrática. E não são seguramente os esquerdistas – ou os coletes amarelos ou mesmo os sindicalistas – que podem reclamar um direito particular a criticar este ponto, ou de continuar a fazer barulho em relação a Macron, o seu insignificante alvo desde o início. Também estes foram incapazes de considerar algo de semelhante. Pelo contrário: a epidemia já estava em curso na China, e estes multiplicavam-se até muito recentemente em grupos descontrolados e manifestações desordeiras, o que os devia impedir hoje, seja quem forem, de se manifestar face ao atraso do poder em aperceber-se do que se estava a passar. Nenhuma força política, na verdade, tomou consciência disso antes do Estado macroniano.

Do lado do Estado, a situação é uma daquelas em que o Estado burguês deve, explicita e publicamente, fazer prevalecer interesses de certo modo mais gerais do que os da burguesia apenas, enquanto preserva de forma estratégica, no futuro, a primazia dos interesses de classe que esse Estado representa geralmente. Posto de outro modo, a conjuntura obriga o Estado a gerir a situação integrando os interesses da classe da qual é advogado nos interesses mais gerais, e isto por causa da existência interna de um “inimigo” ele mesmo geral, que em tempos de guerra pode ser um invasor estrangeiro e que na situação presente é o vírus SARS 2.

Este tipo de situação (guerra mundial ou epidemia mundial) é particularmente “neutro” sobre o plano político. As guerras do passado não provocaram revoluções excepto em dois casos excêntricos, por assim dizer, relativamente ao que eram as potências imperiais: a Rússia e a China. No caso russo, isto deveu-se ao facto de o poder czarista estar atrasado, em todos os aspectos e desde há bastante tempo, nomeadamente enquanto poder possivelmente adequado ao nascimento de um verdadeiro capitalismo nesse país imenso. E, por outro lado, ao facto de existir com os bolcheviques uma vanguarda política moderna, fortemente estruturada e com dirigentes notáveis. No caso chinês, a guerra revolucionária interna precedeu a guerra mundial e o partido comunista estava já, em 1940, à frente de um exército popular com provas dadas. Pelo contrário, em nenhuma das potências ocidentais a guerra provocou uma revolução vitoriosa. Mesmo no país vencido em 1918, a Alemanha, a insurreição espartaquista foi rapidamente esmagada.

A lição nisto tudo é clara: a epidemia em curso não terá, enquanto tal, enquanto epidemia, consequências políticas notáveis num país como a França. Mesmo supondo que a nossa burguesia pense que chegou a hora de nos desembaraçarmos de Macron, tendo em conta a subida de tom das contestações informes e dos slogans inconsistentes, mas generalizados, isso não representará em absoluto mudança notável alguma. Os candidatos “politicamente correctos” já se perfilam nos bastidores, tais como os defensores de formas bolorentas de um “nacionalismo” tão obsoleto quanto repugnante.

Quanto a nós, que desejamos uma mudança real dos dados políticos neste país, precisamos de aproveitar o interlúdio epidémico e o confinamento – absolutamente necessário – para trabalhar em novas figuras da política, no projecto de novos lugares políticos e no progresso transnacional de uma terceira etapa do comunismo após aquela brilhante da sua invenção e aquela interessante, mas finalmente derrotada, da sua experimentação estatal.

É preciso também levar a cabo uma crítica feroz de toda e qualquer ideia segundo a qual fenómenos como uma epidemia abrem por si mesmos seja o que for de politicamente inovador. Para além da transmissão generalizada de dados científicos sobre a epidemia, restará apenas uma força política para afirmações e convicções novas no que diz respeito aos hospitais e à saúde pública, às escolas e a uma educação igualitária, ao atendimento a idosos e a outras questões do mesmo género. Estas são as únicas que poderemos, eventualmente, vincular a um balanço das fragilidades perigosas destacadas pela situação atual.

Entretanto, mostraremos corajosa e publicamente que as pretensas “redes sociais” demonstram de novo ser, antes de mais – e para além de enriquecer os maiores bilionários do momento –, o lugar de propagação de uma valente paralisia, de rumores infundados, de descoberta de “novidades” antediluvianas, quando não de um obscurantismo fascizante. Mesmo e sobretudo confinados, demos crédito apenas às verdades verificáveis pela ciência e às perspectivas de uma nova política, tanto nas suas experiências localizadas como na sua visão estratégica.



Alain Badiou
Filósofo nascido em 1937, Marrocos. Ensinou na École Normale Supérieure e fundou a Faculdade de Filosofia da Université de Paris VIII com Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jean-François Lyotard. Entre outros, é autor de Théorie du sujet (1982), L’être et l’évenement (1988), Logique des Mondes (2006), L’hypothèse communiste (2009) e, mais recentemente, L’Immanence des verités (2018).

Nota da edição
Artigo publicado originalmente em francês em Tracts de Crise nº20 e traduzido por João Paupério para o Jornal Punkto.

Ficha Técnica
Data de publicação: o4.04.2020
Edição #27 • Primavera 2020 •
Caderno #8 • Epidemos