«A classe dominante não quer uma reforma que seja produto de uma solidariedade colectiva» • Jacques Rancière






Se estou hoje aqui é, naturalmente, para afirmar um apoio total a uma luta exemplar, mas também para dizer em poucas palavras porque é que esta luta me parece exemplar. Passei alguns anos da minha vida a estudar a história do movimento operário e isso mostrou-me uma coisa essencial: aquilo a que chamamos conquistas sociais é muito mais do que benefícios adquiridos por grupos particulares, mas antes a organização de um mundo colectivo regido pela solidariedade.

O que é o regime especial dos caminhos-de-ferro que nos é apresentado como um privilégio arcaico? Era um elemento de uma organização de um mundo comum onde as coisas essenciais para a vida de todos deveriam ser propriedade de todos. Os caminhos-de-ferro pertenciam à comunidade. E essa posse colectiva era gerida também por uma colectividade de trabalhadores que se sentiam comprometidos com esta comunidade; trabalhadores para quem a reforma de cada um era o produto da solidariedade de um colectivo concreto.

É esta realidade concreta do colectivo solidário que as classes dominantes do nosso mundo não querem. Foi este edifício que eles começaram a demolir peça a peça. O que eles querem é que não haja mais propriedade colectiva, mais colectivos de trabalhadores, mais solidariedade de base. Eles querem que haja apenas indivíduos, que possuam a sua força de trabalho como um pequeno capital que se faz prosperar, alugando-o aos maiores. Indivíduos que, ao vender-se no dia-a-dia, acumulam por si mesmos e apenas para si mesmos pontos, esperando um futuro onde as pensões ou as reformas já não serão baseadas no trabalho mas no capital, isto é na exploração e na auto-exploração.

É por isso que a reforma das pensões é para eles tão decisiva, sendo muito mais do que uma questão concreta de financiamento. É uma questão de princípio. A reforma: trata-se de como o tempo de trabalho produz tempo de vida e do modo como cada um de nós está ligado a um mundo colectivo. Toda a questão está em saber o que opera esta relação: a solidariedade ou o interesse privado. Demolir o sistema de pensões baseado na luta colectiva e na organização solidária é para os nossos governantes a vitória decisiva. Por duas vezes lançaram todas as suas forças nesta batalha e perderam. Temos de fazer tudo para que percam uma terceira vez e que isso lhes faça perder definitivamente o gosto por esta batalha.


Nota da edição
Declaração de Jacques Rancière proferida a 16 de Janeiro de 2020 aos ferroviários grevistas da estação de vaugirard. Publicado no Jornal Francês Le Monde a  23 de Janeiro de 2020. Tradução realizada por Pedro Levi Bismarck e João Paupério.

Ficha Técnica
Data de publicação: 23.01.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •