Se estou hoje aqui é, naturalmente, para afirmar um apoio
total a uma luta exemplar, mas também para dizer em poucas palavras porque é
que esta luta me parece exemplar. Passei alguns anos da minha vida a estudar a
história do movimento operário e isso mostrou-me uma coisa essencial: aquilo a
que chamamos conquistas sociais é muito mais do que benefícios adquiridos por
grupos particulares, mas antes a organização de um mundo colectivo regido pela
solidariedade.
O que é o regime especial dos caminhos-de-ferro que nos é
apresentado como um privilégio arcaico? Era um elemento de uma organização de
um mundo comum onde as coisas essenciais para a vida de todos deveriam ser propriedade
de todos. Os caminhos-de-ferro pertenciam à comunidade. E essa posse colectiva era
gerida também por uma colectividade de trabalhadores que se sentiam
comprometidos com esta comunidade; trabalhadores para quem a reforma de cada um
era o produto da solidariedade de um colectivo concreto.
É esta realidade concreta do colectivo solidário que as
classes dominantes do nosso mundo não querem. Foi este edifício que eles
começaram a demolir peça a peça. O que eles querem é que não haja mais propriedade
colectiva, mais colectivos de trabalhadores, mais solidariedade de base. Eles querem
que haja apenas indivíduos, que possuam a sua força de trabalho como um pequeno
capital que se faz prosperar, alugando-o aos maiores. Indivíduos que, ao
vender-se no dia-a-dia, acumulam por si mesmos e apenas para si mesmos pontos,
esperando um futuro onde as pensões ou as reformas já não serão baseadas no trabalho
mas no capital, isto é na exploração e na auto-exploração.
É por isso que a reforma das pensões é para eles tão
decisiva, sendo muito mais do que uma questão concreta de financiamento. É uma
questão de princípio. A reforma: trata-se de como o tempo de trabalho produz
tempo de vida e do modo como cada um de nós está ligado a um mundo colectivo.
Toda a questão está em saber o que opera esta relação: a solidariedade ou o
interesse privado. Demolir o sistema de pensões baseado na luta colectiva e na
organização solidária é para os nossos governantes a vitória decisiva. Por duas
vezes lançaram todas as suas forças nesta batalha e perderam. Temos de fazer
tudo para que percam uma terceira vez e que isso lhes faça perder
definitivamente o gosto por esta batalha.
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Nota da edição
Declaração de Jacques Rancière proferida a 16 de Janeiro de 2020 aos
ferroviários grevistas da estação de vaugirard. Publicado no Jornal Francês Le Monde a 23 de Janeiro de 2020. Tradução realizada por Pedro Levi Bismarck e João Paupério.
Ficha Técnica
Data de publicação:
23.01.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •