Em
contraposição com as propostas de um novo vanguardismo, os novos movimentos
trouxeram um outro tema para o debate político. «Os comuns» ou a «revolução dos comuns», como alguns lhe chamaram, seduzem
franjas importantes do novo activismo que se formou nas ZAD e em outros espaços
de vida e de práticas autónomas, contrapondo‑se aos discursos
que defendem a insurreição. Quando o estado bárbaro do mundo tende a paralisar
o imaginário emancipador, quando a dureza das relações sociais e a violência
das formas de governo se expandem, o fascínio pelos «comuns» explica‑se antes de mais pelo seu conteúdo
positivo – ele revaloriza a acção construtiva para a subversão das relações
sociais existentes, que vai além do sectarismo e da urgência fria do confronto
com as forcas do poder. «A visão dos
comuns afirma uma dimensão positiva da acção colectiva, na qual os indivíduos
estariam em condições de se autogovernar para resolver os conflitos ligados a
utilização e a acessibilidade dos bens ou recursos.» [1]
1. «La Révolution des communs», Lutopik, nº10, Primavera de 2016.
Antes
de procurar clarificar uma noção que abrange propostas e correntes de naturezas
diversas, importa que nos debrucemos de novo sobre alguns elementos de um
passado recente que permitem situar melhor a questão dos comuns numa
perspectiva histórica. Nos anos que se seguiram ao Maio de 68, alguns grupos
levantaram a questão da ligação possível entre as relações sociais criadas nas
lutas e o conteúdo de uma sociedade anticapitalista. Entre as correntes que
apoiaram o movimento espontâneo e independente dos comités de acção, defendera‑se a seguinte
ideia: «A alternativa revolucionária não é uma
visão teórica», ela inscreve‑se na lógica de
um movimento consciente dos trabalhadores, o qual pode «promover as formas de organização que,
permitindo a participação consciente do maior número possível de trabalhadores
na direcção das lutas, prefiguram as da sociedade comunista» [2]. A ruptura do
Maio de 68 tinha assim dado nova vida a um debate iniciado muito antes, nos
anos do pós-guerra. Em Franca, a revista Socialisme ou Barbarie debruçara-se sobre os
problemas da gestão operária e das suas relações com o conteúdo do socialismo,
defendendo a ideia de que as forças capazes de construir uma sociedade sem
exploração estavam em gestação nas lutas operarias autónomas. No capitalismo
moderno, a luta pelo domínio da máquina de produção não se limitava ao controlo
do processo de trabalho, como o defendiam os partidários da autogestão. Ainda
segundo a Socialisme ou Barbarie,
essa luta revelava, muito pelo contrário, um «impulso para a universalidade», para o controlo consciente das forças
e do potencial da comunidade de classe, para um projecto unificado de como
produzir e do que produzir. «Será a humanidade
associada que controlará a produção, e esse controlo fará de cada homem, não
mais um indivíduo isolado […], mas um indivíduo social participante num
projecto social.» [3]
2. «Crise du capitalisme et alternative révolutionnaire». Lutte
de classe (Boletim do GLAT), Juin 1971.
3. Ria Stone, «La reconstruction de la société», Socialisme ou Barbarie, nº7, Agosto-Setembro
1950.
As
circunstâncias históricas nascidas do colapso do bloco capitalista de Estado e
os efeitos do movimento do capitalismo sobre a estrutura de classe das
sociedades ocidentais mudaram os termos do debate. As novas formas de produção
e de deslocação da produção de massa para a periferia dos velhos centros
reforçaram a hipótese do «desaparecimento
da classe operária» enquanto «sujeito histórico» de subversão do capitalismo. O vazio
político criado foi preenchido por outras ideias referentes aos meios para
aceder colectivamente ao governo da sociedade. A noção de comuns encontrou o
seu lugar entre estas ideias.
A
origem do termo remonta às origens do capitalismo, quando em Inglaterra, a partir
do século xvii, os proprietários privados se apoderaram dos commons – terras e outros bens imóveis
comuns – procedendo à sua vedação, naquilo que se designou pelo movimento dos enclosures. Se na época o conceito tinha
um sentido claro, hoje ele regressa dotado de uma grande imprecisão –
imprecisão essa que é possível encontrar resumida nomeadamente na seguinte
formulação: «O ressurgimento
da noção de “comuns” como recursos partilháveis de acesso livre entre a
economia privada e pública, segundo um modelo de governança colectiva, é também
sintomático da procura de alternativa».
[4] Entreve‑se já a
dicotomia: de um lado, o caminho que conduz ao compromisso com o funcionamento
tradicional da economia; do outro, a ruptura com a governança capitalista dos
recursos. Mais ainda, os «recursos» da época moderna já não são os do século
xvii, são gerados por um modo de produção específico, e as questões que se põem
são mais amplas do que a da sua simples gestão, estendendo‑se à escolha dos
«recursos» a produzir e de como os produzir. Separar os «recursos partilháveis» do seu modo de produção equivale a
deixar de lado as relações sociais de exploração actuais. O caso dos softwares livres é, a este respeito,
exemplar. As discussões sobre as possibilidades e a utilização que estes softwares proporcionam para práticas
anticapitalistas não devem ignorar a crítica das tecnologias que são o seu
suporte material e a crítica dos efeitos ecológicos destruidores e das
condições de exploração da sua produção.
Hoje,
para alguns autores e activistas, o conceito de comuns reúne, muito para além
dos vestígios extremamente escassos de um passado comunal que subsiste, toda a
espécie de actividades e de solidariedades alternativas, de regras de
organização e de exploração desses «recursos comuns», que vão desde as cooperativas de
produção e de consumo à esfera dos softwares
livres e às hortas partilhadas, iniciativas que, instaladas nos
interstícios do sistema capitalista, procuram escapar à crueldade da economia
neoliberal. Qualificam‑se mesmo de comuns actividades que
respeitam as relações de mercado e o salariato, inclusivamente tarefas de
trabalho não remunerado susceptíveis de serem utilizadas pelos órgãos de poder
como alternativas a serviços públicos em decadência, em particular na área da
acção social. Aliás, há anos que é reclamada uma reformulação da «governança dos recursos» por parte de membros respeitados da
classe dos economistas, que aí vêem uma oportunidade de melhorar a
produtividade e os resultados do capitalismo no seu todo, sem contudo tocar nos
seus fundamentos sociais. [5]
5. É o caso de Elinor Ostrom, premiado com o Nobel da Economia
em 2009.
Algumas
destas experiências são assumidas por aqueles que as levam a cabo como simples
adaptações que lhes permitem viver melhor o quotidiano e resistir à violência
capitalista. Enquanto tais, são toleradas por um sistema cujo curso dantesco
não ameaçam. Pode pensar‑se que elas encerram, nas opções de
produção e de consumo, na sua organização, elementos que poderão ser referências
para uma sociedade futura. Será o caso, em particular, quando chegar o momento
de repensar os gigantescos problemas da produção alimentar industrial e da
poluição em geral, na condição de que sejam integrados num movimento mais vasto
de contestação ao capitalismo. Um debate semelhante havia já acontecido, no
final do século xix, quando, numa troca de correspondência com os socialistas‑revolucionários
russos, Karl Marx admitiu que, em circunstâncias históricas particulares, a
posse colectiva da terra e, mais particularmente, a existência das comunas
rurais podiam ser «cadinhos» de «regeneração», constituir «pontos de apoio» na ruptura com vista a criação de novos
modos de produção e de vida. [6] É esta procura
de «pontos de apoio» que nos interessa no debate sobre os
comuns.
6. Karl Marx, «Lettre à Vera Zassoulitch», Oeuvres, Économie 2, op.cit., pp. 1557-1573.
Os comuns como
princípio político de luta
Tanta
diversidade leva‑nos
a clarificar a noção de comuns. Apoiar‑nos‑emos na obra Communs. Essai sur la révolution au
xxie siècle, de Pierre Dardot e Christian Laval, um texto exaustivo que tomaremos como referência. Os autores
procuram associar as práticas heterogéneas
dos comuns às suas definições; reivindicam
uma perspectiva de transformação do capitalismo e retomam no essencial os desenvolvimentos dos autores provenientes do operaísmo italiano, Michael Hardt e Toni Negri em particular, a quem
atribuem a paternidade da difusão da
noção de comum no pensamento político crítico contemporâneo. Para Dardot e
Laval, é preciso separar o «comum subversivo» dos «pseudo‑comuns do capital», pois o capital é também capaz de organizar formas de cooperação e de partilha em seu benefício. [7] Definem o comum como um princípio político de acção colectiva, um terreno de luta, entre outros, contra os efeitos do
liberalismo e da privatização dos bens
comuns, como a água e o ar. Dois autores do meio radical norte‑americano, Silvia Federici e George Caffentzis, fizeram notar que o interesse pelos comuns foi, no início, uma reacção contra o processo contínuo de «privatização do colectivo» no capitalismo
contemporâneo [8], as «novas enclosures». Ou seja, a apropriação privada, comercial, de
todos os aspectos da vida na fase
actual do capitalismo. Mas, ainda segundo Dardot e Laval, «o comum não é um
bem, e o plural não muda nada a esse
respeito, pois ele não é um objecto […], seja para o possuir ou o constituir. Ele é o princípio
político a partir do qual devemos
construir comuns e remetermo‑nos
a eles para os preservar,
expandir e fazer viver. Ele é, por conseguinte, o princípio político que define um novo regime de lutas a escala mundial» [9]. Mais
precisamente, «este termo
“comum” designa não o ressurgimento de uma ideia comunista
eterna, mas a emergência de uma nova
forma de contestar o capitalismo, e inclusivamente considerar a sua superação»
[10]. São «procuras
colectivas de formas democráticas
novas […]. Comum é o nome do princípio que
anima esta actividade colectiva e que preside ao mesmo tempo à construção desta forma de autogoverno» [11].
7. «Les communs proposent un nouveau modèle social et
économique», entrevista de Christian Laval e David Bollier, Lutopik, nº10, Primavera de 2016.
8.Silvia Federici e George Caffentzis,
«Communs Against and Beyond Capitalism», Upping
the Anti: a journal of theory and action, nº15, Setembro de 2013, pp. 83-98.
9.Pierre Dardot e Christian Laval, Communs. Essai sur la revolution au xxie siècle, La Découverte, 2014, p.49.
10. Ibid., p.16.
11. Ibid., pp.19-20.
George
Caffentzis e Silvia Federici vão no mesmo sentido: «Os novos comuns
devem ser o produto das nossas lutas, […]
os fundamentos de um novo modo de produção alternativo.» Advertem, eles também,
contra uma utilização capitalista dos comuns
e propõem que se circunscreva a noção às relações sociais nascidas e desenvolvidas em lutas e às experiências limitadas de autogoverno, que poderiam
ser «embriões de um modo alternativo de produção em gestação». Os comuns «têm
como objectivo transformar as relações sociais e criar uma alternativa ao capitalismo. […] Em
resumo, não são vias de acesso a um
capitalismo de rosto humano. Ou são um meio
para criar uma verdadeira sociedade igualitária e cooperativa ou correm o risco de contribuir para o
aprofundamento das divisões sociais
existentes». Os comuns «devem permitir‑nos aumentar o poder perante o capital e o
Estado e resistir à exploração, e
devem prefigurar de maneira embrionária um novo modo de produção, já não edificado sobre a concorrência, mas sobre o princípio da solidariedade
colectiva» [12].
12. Silvia Federici e George Caffentzis, op. cit.
Pôr
desta forma a questão dos comuns leva Dardot e Laval a questionar a experiência histórica do socialismo autoritário, do capitalismo de Estado, de que se
demarcam claramente e que vêem como
um sistema antagónico do comum revolucionário. Referem‑se
abundantemente aos trabalhos do grupo
Socialisme ou Barbarie e, em
particular, a Castoriadis: «A pretensa “realização” do comum através da
propriedade estatal nunca foi senão
a destruição do comum pelo Estado.»
[13] Nestes sistemas, «o comum identificava‑se pura e simplesmente com a própria propriedade estatal» [14]. Por outras
palavras, o capitalismo de Estado
foi, na verdade, uma «captura burocrática do comum» [15].
13. Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.55.
14. Ibid., p.83.
15. Ibid., p.93.
Dardot
e Laval atribuem a Marx, de maneira muito discutível, um pensamento determinista. Segundo eles, haveria «em Marx uma
forma de detectar os embriões do futuro no
movimento do capitalismo» [16], Marx para quem «o comum, longe de ser espontâneo, é um produto
do capital» [17]. É assim que
certos discursos tendem a abordar os comuns como um «reverso
encapotado do capitalismo» [18], um conjunto de recursos já produzidos e disponíveis, passíveis de serem simplesmente reapropriados – discurso que remete
para uma concepção onde a emancipação
social é determinada pelo «movimento do capital», em que o comum produzido é expropriado
pelo capital predador. Encontramo‑nos no terreno das velhas concepções, segundo as quais a sociedade comunista
é uma produção inevitável do
capitalismo, como «necessidade histórica» – concepções
herdadas do determinismo da social‑democracia da II Internacional e defendidas
depois por certas correntes leninistas.
16. Ibid.,
p.223.
17. Ibid.,
p.191.
18. Ibid.,
pp.196-197.
Fraqueza do
debate e armadilha do realismo
Para
lá destas divagações polémicas, a questão essencial é esta: «Em que medida a concepção de uma produção
do comum pelo capital permite explicar a passagem para um “mundo” pós‑capitalista?» [19]. Ou, por outras
palavras, o debate que atravessa desde os seus primórdios o movimento
socialista: o processo de emancipação social está mecanicamente inscrito no
movimento do capitalismo ou exige uma intervenção consciente e autónoma dos
explorados? A produção de um comum subversivo da ordem capitalista só pode
fazer‑se pelo
movimento espontâneo e independente dos envolvidos, embora se faça
necessariamente a partir das condições materiais engendradas, criadas, pelo
movimento do sistema capitalista. Além disso, a cooperação produzida pelo
capital não tem a mesma natureza que a cooperação criada durante a auto-organização
contra a alienação do trabalho, a única que permite o desenvolvimento do indivíduo
sujeito social. Para compreender bem este processo, é indispensável regressar às
experiências históricas de socialização e de colectivização.
19. Ibid.,
p.192.
Contudo,
é justamente neste terreno que a maior parte dos debates sobre os comuns se revela
decepcionante. Para mencionar apenas o trabalho de Dardot e Laval, como não nos
surpreendermos com a fraqueza das suas referências sobre a matéria? As experiências
históricas de autogoverno e de democracia directa são largamente subestimadas,
ou mesmo ignoradas. As ideias e as práticas do sindicalismo‑revolucionário,
das colectivizações da revolução espanhola estão nele ausentes; de igual modo,
o movimento dos conselhos só é abordado de passagem, através de uma citação de
um autor bolchevique ou ainda nas declarações rápidas de Hannah Arendt sobre a matéria
[20]: «O sistema dos
conselhos não encontrou ainda a sua teoria e permanece inteiramente por
experimentar.»[21] O que não impede os autores de concluir de forma peremptória:
«Embora a via dos conselhos operários não
se tenha fechado completamente, as fases eruptivas são demasiado breves e
demasiado dispersas para que se lhes possa ver imediatamente a continuidade.
[…] Mas sobretudo, em condições históricas novas, seria inútil esperar uma espécie
de regresso dos “sovietes” ou dos “conselhos operários”.»[22] Em suma, o
movimento dos conselhos não seria mais do que um simples «esboço da forma política geral do comum» [23] – esboço, na
medida em que as experiências dos conselhos são meras «marcas da aspiração à democracia económica» [24]. Uma vez mais,
fica‑se preso a uma concepção
fetichista dos conselhos, vistos como formas ligadas à velha classe operária. O
sistema dos «conselhos» é percepcionado como uma forma com função
económica e não como um espírito de luta e de autogoverno, tendente a abolição
da separação entre o político e o económico.
20. Num longo texto erudito de 600 páginas, a única referência
ao movimento e às ideias dos sovietes e dos conselhos é um artigo de revista, datado
de 1978, assinado pelo trotskista Pierre Naville; Pierre Dardot e Christian
Laval, op. cit., p.400.
21. Hannah Arendt sobre a revolução húngara de 1956, citada em
Pierre Dardot e Christian Laval, op.
cit., p. 401.
22. Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.401.
23. Ibid., p.402.
24. Ibid., p.91.
Enquanto
não chega o grande dia, os teóricos modernos dos comuns deixam‑se facilmente
enredar nas malhas da rede do realismo e pugnam por conciliar a produção de
comuns com uma valorização de sectores marginais da economia, designadamente
empresas autogeridas e associações de cooperativas, «à parte do mercado lucrativo e do Estado» [25], que seriam
chamadas a desempenhar um papel central na transição para a sociedade pós‑capitalista. Desligado
de perspectivas revolucionárias, o discurso sobre a «produção de comuns» atolou‑se num magma de
ambiguidades, como mostram afirmações do género: «Não se trata […] de “suprimir” [o mercado] em benefício
de um órgão burocrático de planificação e de repartição. Trata‑se, sim, de o
“reencastrar” [sic] na sociedade […],
de construir uma nova instituição cívica do mercado que conjugue
simultaneamente o autogoverno dos produtores com a soberania colectiva dos
consumidores.» [26] E: «Não se trata de
suprimir a propriedade privada, mas de a limitar, de a subordinar aos
imperativos sociais e ecológicos.»
[27]. Como imaginar um mercado sem lei do mercado, sem determinação
de preços, sem alienação dos produtores e sem mercadorias?! Para haver mercado,
tem de haver mercadorias, e a produção mercantil implica a separação do
produtor do produto do seu trabalho. Um «mercado cívico» controlado de forma consciente pelos
produtores é um absurdo teórico.
25. Ibid.,
p.504.
26. Ibid.,
p.496.
27. «Les communs proposent un nouveau modèle social et
économique», entrevista de Laval e Bollier, op.
cit., p.401.
A «produção do comum» é uma teoria que continua
particularmente vaga e confusa, mesmo que seja capaz de precisar os seus
objectivos e os seus conteúdos durante lutas futuras contra o capitalismo. Aliás,
pode argumentar‑se que esta «produção» esteve desde sempre no centro
do projecto político da corrente socialista autoritária, conduzido pelo saber
dos chefes e do partido. Reafirmar a necessidade do comum não diz nada sobre o conteúdo
do acto colectivo, sobre a sua natureza emancipadora ou não. Os fracassos do
socialismo autoritário, que a grande maioria dos partidários dos comuns
reconhece, provam que o factor determinante da emancipação social não é a produção
de comuns em si. O que é determinante é de que maneira os comuns são
produzidos, de que maneira se constroem. E o meio, o princípio de auto-organização e da
democracia directa, que contém o objectivo.
Por
altura dos debates que se seguiram ao período revolucionário do início do século
xx, alguns referiram uma diferença fundamental entre o «terreno passivo» de luta, o da sociedade dita civil, do cidadão,
do espaço social, do consumo, e o «terreno activo», o da produção da vida social – diferença
fundamental do ponto de vista do conteúdo das lutas e das suas possibilidades
subversivas. A reflexão actual sobre os «comuns
anticapitalistas» evita esta questão
dos diferentes terrenos de luta e, entre os seus partidários, a visão do
processo de subversão da ordem capitalista tende a minimizar a ideia de
ruptura, concebendo os comuns como «fragmentos» de um mundo novo ainda por vir. Coloca‑se,
indiferentemente, no terreno da «sociedade civil» ou no da produção. O feudalismo pode
coexistir com os primeiros «fragmentos» do capitalismo. Contudo, até prova em
contrário, o capitalismo não permite a existência no seu seio de «embriões», de «fragmentos» de uma formação social com vocação para
subverter os fundamentos das relações existentes. A transformação radical da
sociedade actual não pode ser o resultado de um processo progressivo e
acumulativo de criação de «espaços
libertados». Pela dinâmica
do seu poder, o capitalismo tem a capacidade de se apoderar de todos os espaços,
de absorver e de integrar, de tolerar e de controlar todos os «fragmentos» que possam construir‑se no seu seio.
Afirmá‑lo não é uma
tese dogmática. Na vida prática, qualquer actividade de produção ou de distribuição,
por pouco que vá alem de uma configuração minúscula, encontra‑se enquadrada,
submetida às relações salariais e ao mercado. A evolução das experiências cooperativas
para a forma empresa é exemplo disso. Por outro lado, o capitalismo é um
sistema social susceptível de dominar o conjunto da sociedade e de se
desenvolver ainda que apenas uma parte da população seja explorada no quadro jurídico
«normal». Grandes zonas de actividade
podem coexistir fora desse quadro, reproduzindo simultaneamente as relações
sociais capitalistas. Prova disso é a existência da economia dita «informal», que corresponde hoje em dia a cerca de metade da força
de trabalho à escala mundial. [28] Um outro
exemplo é a economia do crime, que funciona de forma completamente «ilegal» no interior do sistema. Relativamente a estes
gigantescos sectores de actividade, as zonas de «economia alternativa», as «zonas autónomas» ou os «comuns capitalistas» representam
pouco e em nada beliscam a produção de lucro.
28. Mike Davis, Le Pire
des mondes possibles. De l’explosion urbaine au bidonville global, La
Découverte, 2006.
Sob
o reino do capitalismo, qualquer poder conquistado pela luta pode ser posto em
causa a qualquer momento. Como sustentaram as correntes radicais da década de
1960, só as relações sociais igualitárias criadas em lutas autónomas podem «prefigurar» uma sociedade nova e escapar a esse poder integrador.
Elas são os únicos «comuns» não integráveis e perenes, que
desaparecem e reaparecem em cada período de contestação da ordem social.
•
Charles Reeve
Charles Reeve é Jorge Valadas.
Nascido em Lisboa em 1945, entrou com 18 anos na Escola Naval para logo
descobrir que se tinha enganado na porta. Opositor à guerra colonial, desertou
em 1967 para Paris, onde viveu o Maio de 68 ao lado das correntes
antiautoritárias, e depois para os Estados Unidos, para acompanhar o movimento
contra a Guerra do Vietname. De regresso a França, tornou-se electricista —
ofício manual que não lhe comprometia a independência crítica — e começou a
publicar os seus ensaios. Fez parte do núcleo dos Cadernos de Circunstância (1969-71) e participou no jornal Combate (1974-78). O Tigre de Papel (1975), obra sobre o capitalismo de Estado na
China, põe a nu as injustiças intrínsecas de um sistema que a globalização
disseminou. Crónicas Portuguesas
(2001) e A Memória e o Fogo (2006),
inquietas reflexões de veia libertária, dão uma visão desafogada sobre o
quotidiano social e psíquico dos portugueses. O pseudónimo Charles Reeve é uma
homenagem a um emigrante escocês, sindicalista-revolucionário condenado em
1916, em Sydney, a dez anos de degredo por sabotar o «esforço de guerra».
Nota da edição
Este artigo é um capítulo do livro
“Socialismo Selvagem. Ensaio sobre a auto-organização e a democracia directa
nas lutas de 1789 até aos nossos dias”, gentilmente cedido pelo autor e pela
editora Antígona.
Imagens
1. O Cavalo de Turim, Béla Tarr, 2011.
2. Rose
Zehner com operários em greve na Fábrica Citroën Factory, Paris, 1938.
Fotografia de Willy Ronis.
3. Junto ao Muro de Berlim,
Kreuzberg, 1962.
Ficha Técnica
Data de publicação:
05.02.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •