Os «comuns» e os seus impasses • Charles Reeve





Em contraposição com as propostas de um novo vanguardismo, os novos movimentos trouxeram um outro tema para o debate político. «Os comuns» ou a «revolução dos comuns», como alguns lhe chamaram, seduzem franjas importantes do novo activismo que se formou nas ZAD e em outros espaços de vida e de práticas autónomas, contrapondose aos discursos que defendem a insurreição. Quando o estado bárbaro do mundo tende a paralisar o imaginário emancipador, quando a dureza das relações sociais e a violência das formas de governo se expandem, o fascínio pelos «comuns» explicase antes de mais pelo seu conteúdo positivo – ele revaloriza a acção construtiva para a subversão das relações sociais existentes, que vai além do sectarismo e da urgência fria do confronto com as forcas do poder. «A visão dos comuns afirma uma dimensão positiva da acção colectiva, na qual os indivíduos estariam em condições de se autogovernar para resolver os conflitos ligados a utilização e a acessibilidade dos bens ou recursos.» [1]
1. «La Révolution des communs», Lutopik, nº10, Primavera de 2016.
Antes de procurar clarificar uma noção que abrange propostas e correntes de naturezas diversas, importa que nos debrucemos de novo sobre alguns elementos de um passado recente que permitem situar melhor a questão dos comuns numa perspectiva histórica. Nos anos que se seguiram ao Maio de 68, alguns grupos levantaram a questão da ligação possível entre as relações sociais criadas nas lutas e o conteúdo de uma sociedade anticapitalista. Entre as correntes que apoiaram o movimento espontâneo e independente dos comités de acção, defenderase a seguinte ideia: «A alternativa revolucionária não é uma visão teórica», ela inscrevese na lógica de um movimento consciente dos trabalhadores, o qual pode «promover as formas de organização que, permitindo a participação consciente do maior número possível de trabalhadores na direcção das lutas, prefiguram as da sociedade comunista» [2]. A ruptura do Maio de 68 tinha assim dado nova vida a um debate iniciado muito antes, nos anos do pós-guerra. Em Franca, a revista Socialisme ou Barbarie debruçara-se sobre os problemas da gestão operária e das suas relações com o conteúdo do socialismo, defendendo a ideia de que as forças capazes de construir uma sociedade sem exploração estavam em gestação nas lutas operarias autónomas. No capitalismo moderno, a luta pelo domínio da máquina de produção não se limitava ao controlo do processo de trabalho, como o defendiam os partidários da autogestão. Ainda segundo a Socialisme ou Barbarie, essa luta revelava, muito pelo contrário, um «impulso para a universalidade», para o controlo consciente das forças e do potencial da comunidade de classe, para um projecto unificado de como produzir e do que produzir. «Será a humanidade associada que controlará a produção, e esse controlo fará de cada homem, não mais um indivíduo isolado […], mas um indivíduo social participante num projecto social.» [3]
2. «Crise du capitalisme et alternative révolutionnaire». Lutte de classe (Boletim do GLAT), Juin 1971.
3. Ria Stone, «La reconstruction de la société», Socialisme ou Barbarie, nº7, Agosto-Setembro 1950.
As circunstâncias históricas nascidas do colapso do bloco capitalista de Estado e os efeitos do movimento do capitalismo sobre a estrutura de classe das sociedades ocidentais mudaram os termos do debate. As novas formas de produção e de deslocação da produção de massa para a periferia dos velhos centros reforçaram a hipótese do «desaparecimento da classe operária» enquanto «sujeito histórico» de subversão do capitalismo. O vazio político criado foi preenchido por outras ideias referentes aos meios para aceder colectivamente ao governo da sociedade. A noção de comuns encontrou o seu lugar entre estas ideias.
A origem do termo remonta às origens do capitalismo, quando em Inglaterra, a partir do século xvii, os proprietários privados se apoderaram dos commons – terras e outros bens imóveis comuns – procedendo à sua vedação, naquilo que se designou pelo movimento dos enclosures. Se na época o conceito tinha um sentido claro, hoje ele regressa dotado de uma grande imprecisão – imprecisão essa que é possível encontrar resumida nomeadamente na seguinte formulação: «O ressurgimento da noção de “comuns” como recursos partilháveis de acesso livre entre a economia privada e pública, segundo um modelo de governança colectiva, é também sintomático da procura de alternativa». [4] Entrevese já a dicotomia: de um lado, o caminho que conduz ao compromisso com o funcionamento tradicional da economia; do outro, a ruptura com a governança capitalista dos recursos. Mais ainda, os «recursos» da época moderna já não são os do século xvii, são gerados por um modo de produção específico, e as questões que se põem são mais amplas do que a da sua simples gestão, estendendose à escolha dos «recursos» a produzir e de como os produzir. Separar os «recursos partilháveis» do seu modo de produção equivale a deixar de lado as relações sociais de exploração actuais. O caso dos softwares livres é, a este respeito, exemplar. As discussões sobre as possibilidades e a utilização que estes softwares proporcionam para práticas anticapitalistas não devem ignorar a crítica das tecnologias que são o seu suporte material e a crítica dos efeitos ecológicos destruidores e das condições de exploração da sua produção.
Hoje, para alguns autores e activistas, o conceito de comuns reúne, muito para além dos vestígios extremamente escassos de um passado comunal que subsiste, toda a espécie de actividades e de solidariedades alternativas, de regras de organização e de exploração desses «recursos comuns», que vão desde as cooperativas de produção e de consumo à esfera dos softwares livres e às hortas partilhadas, iniciativas que, instaladas nos interstícios do sistema capitalista, procuram escapar à crueldade da economia neoliberal. Qualificamse mesmo de comuns actividades que respeitam as relações de mercado e o salariato, inclusivamente tarefas de trabalho não remunerado susceptíveis de serem utilizadas pelos órgãos de poder como alternativas a serviços públicos em decadência, em particular na área da acção social. Aliás, há anos que é reclamada uma reformulação da «governança dos recursos» por parte de membros respeitados da classe dos economistas, que aí vêem uma oportunidade de melhorar a produtividade e os resultados do capitalismo no seu todo, sem contudo tocar nos seus fundamentos sociais. [5]
5. É o caso de Elinor Ostrom, premiado com o Nobel da Economia em 2009.
Algumas destas experiências são assumidas por aqueles que as levam a cabo como simples adaptações que lhes permitem viver melhor o quotidiano e resistir à violência capitalista. Enquanto tais, são toleradas por um sistema cujo curso dantesco não ameaçam. Pode pensarse que elas encerram, nas opções de produção e de consumo, na sua organização, elementos que poderão ser referências para uma sociedade futura. Será o caso, em particular, quando chegar o momento de repensar os gigantescos problemas da produção alimentar industrial e da poluição em geral, na condição de que sejam integrados num movimento mais vasto de contestação ao capitalismo. Um debate semelhante havia já acontecido, no final do século xix, quando, numa troca de correspondência com os socialistasrevolucionários russos, Karl Marx admitiu que, em circunstâncias históricas particulares, a posse colectiva da terra e, mais particularmente, a existência das comunas rurais podiam ser «cadinhos» de «regeneração», constituir «pontos de apoio» na ruptura com vista a criação de novos modos de produção e de vida. [6] É esta procura de «pontos de apoio» que nos interessa no debate sobre os comuns.
6. Karl Marx, «Lettre à Vera Zassoulitch», Oeuvres, Économie 2, op.cit., pp. 1557-1573.



Os comuns como princípio político de luta
Tanta diversidade levanos a clarificar a noção de comuns. Apoiarnosemos na obra Communs. Essai sur la révolution au xxie siècle, de Pierre Dardot e Christian Laval, um texto exaustivo que tomaremos como referência. Os autores procuram associar as práticas heterogéneas dos comuns às suas definições; reivindicam uma perspectiva de transformação do capitalismo e retomam no essencial os desenvolvimentos dos autores provenientes do operaísmo italiano, Michael Hardt e Toni Negri em particular, a quem atribuem a paternidade da difusão da noção de comum no pensamento político crítico contemporâneo. Para Dardot e Laval, é preciso separar o «comum subversivo» dos «pseudocomuns do capital», pois o capital é também capaz de organizar formas de cooperação e de partilha em seu benefício. [7] Definem o comum como um princípio político de acção colectiva, um terreno de luta, entre outros, contra os efeitos do liberalismo e da privatização dos bens comuns, como a água e o ar. Dois autores do meio radical norteamericano, Silvia Federici e George Caffentzis, fizeram notar que o interesse pelos comuns foi, no início, uma reacção contra o processo contínuo de «privatização do colectivo» no capitalismo contemporâneo [8], as «novas enclosures». Ou seja, a apropriação privada, comercial, de todos os aspectos da vida na fase actual do capitalismo. Mas, ainda segundo Dardot e Laval, «o comum não é um bem, e o plural não muda nada a esse respeito, pois ele não é um objecto […], seja para o possuir ou o constituir. Ele é o princípio político a partir do qual devemos construir comuns e remetermonos a eles para os preservar, expandir e fazer viver. Ele é, por conseguinte, o princípio político que define um novo regime de lutas a escala mundial» [9]. Mais precisamente, «este termo “comum” designa não o ressurgimento de uma ideia comunista eterna, mas a emergência de uma nova forma de contestar o capitalismo, e inclusivamente considerar a sua superação» [10]. São «procuras colectivas de formas democráticas novas […]. Comum é o nome do princípio que anima esta actividade colectiva e que preside ao mesmo tempo à construção desta forma de autogoverno» [11].
7. «Les communs proposent un nouveau modèle social et économique», entrevista de Christian Laval e David Bollier, Lutopik, nº10, Primavera de 2016.
8.Silvia Federici e George Caffentzis, «Communs Against and Beyond Capitalism», Upping the Anti: a journal of theory and action, nº15, Setembro de 2013, pp. 83-98.
9.Pierre Dardot e Christian Laval, Communs. Essai sur la revolution au xxie siècle, La Découverte, 2014, p.49.
10. Ibid., p.16.
11. Ibid., pp.19-20.
George Caffentzis e Silvia Federici vão no mesmo sentido: «Os novos comuns devem ser o produto das nossas lutas, […] os fundamentos de um novo modo de produção alternativo.» Advertem, eles também, contra uma utilização capitalista dos comuns e propõem que se circunscreva a noção às relações sociais nascidas e desenvolvidas em lutas e às experiências limitadas de autogoverno, que poderiam ser «embriões de um modo alternativo de produção em gestação». Os comuns «têm como objectivo transformar as relações sociais e criar uma alternativa ao capitalismo. […] Em resumo, não são vias de acesso a um capitalismo de rosto humano. Ou são um meio para criar uma verdadeira sociedade igualitária e cooperativa ou correm o risco de contribuir para o aprofundamento das divisões sociais existentes». Os comuns «devem permitirnos aumentar o poder perante o capital e o Estado e resistir à exploração, e devem prefigurar de maneira embrionária um novo modo de produção, já não edificado sobre a concorrência, mas sobre o princípio da solidariedade colectiva» [12].
12. Silvia Federici e George Caffentzis, op. cit.
Pôr desta forma a questão dos comuns leva Dardot e Laval a questionar a experiência histórica do socialismo autoritário, do capitalismo de Estado, de que se demarcam claramente e que vêem como um sistema antagónico do comum revolucionário. Referemse abundantemente aos trabalhos do grupo Socialisme ou Barbarie e, em particular, a Castoriadis: «A pretensa “realização” do comum através da propriedade estatal nunca foi senão a destruição do comum pelo Estado.» [13] Nestes sistemas, «o comum identificavase pura e simplesmente com a própria propriedade estatal» [14]. Por outras palavras, o capitalismo de Estado foi, na verdade, uma «captura burocrática do comum» [15].
13. Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.55.
14. Ibid., p.83.
15. Ibid., p.93.
Dardot e Laval atribuem a Marx, de maneira muito discutível, um pensamento determinista. Segundo eles, haveria «em Marx uma forma de detectar os embriões do futuro no movimento do capitalismo» [16], Marx para quem «o comum, longe de ser espontâneo, é um produto do capital» [17]. É assim que certos discursos tendem a abordar os comuns como um «reverso encapotado do capitalismo» [18], um conjunto de recursos já produzidos e disponíveis, passíveis de serem simplesmente reapropriados – discurso que remete para uma concepção onde a emancipação social é determinada pelo «movimento do capital», em que o comum produzido é expropriado pelo capital predador. Encontramonos no terreno das velhas concepções, segundo as quais a sociedade comunista é uma produção inevitável do capitalismo, como «necessidade histórica» – concepções herdadas do determinismo da socialdemocracia da II Internacional e defendidas depois por certas correntes leninistas.
16. Ibid., p.223.
17. Ibid., p.191.
18. Ibid., pp.196-197.


Fraqueza do debate e armadilha do realismo
Para lá destas divagações polémicas, a questão essencial é esta: «Em que medida a concepção de uma produção do comum pelo capital permite explicar a passagem para um “mundo” póscapitalista?» [19]. Ou, por outras palavras, o debate que atravessa desde os seus primórdios o movimento socialista: o processo de emancipação social está mecanicamente inscrito no movimento do capitalismo ou exige uma intervenção consciente e autónoma dos explorados? A produção de um comum subversivo da ordem capitalista só pode fazerse pelo movimento espontâneo e independente dos envolvidos, embora se faça necessariamente a partir das condições materiais engendradas, criadas, pelo movimento do sistema capitalista. Além disso, a cooperação produzida pelo capital não tem a mesma natureza que a cooperação criada durante a auto-organização contra a alienação do trabalho, a única que permite o desenvolvimento do indivíduo sujeito social. Para compreender bem este processo, é indispensável regressar às experiências históricas de socialização e de colectivização.
19. Ibid., p.192.
Contudo, é justamente neste terreno que a maior parte dos debates sobre os comuns se revela decepcionante. Para mencionar apenas o trabalho de Dardot e Laval, como não nos surpreendermos com a fraqueza das suas referências sobre a matéria? As experiências históricas de autogoverno e de democracia directa são largamente subestimadas, ou mesmo ignoradas. As ideias e as práticas do sindicalismorevolucionário, das colectivizações da revolução espanhola estão nele ausentes; de igual modo, o movimento dos conselhos só é abordado de passagem, através de uma citação de um autor bolchevique ou ainda nas declarações rápidas de Hannah Arendt sobre a matéria [20]: «O sistema dos conselhos não encontrou ainda a sua teoria e permanece inteiramente por experimentar.»[21] O que não impede os autores de concluir de forma peremptória: «Embora a via dos conselhos operários não se tenha fechado completamente, as fases eruptivas são demasiado breves e demasiado dispersas para que se lhes possa ver imediatamente a continuidade. […] Mas sobretudo, em condições históricas novas, seria inútil esperar uma espécie de regresso dos “sovietes” ou dos “conselhos operários”.»[22] Em suma, o movimento dos conselhos não seria mais do que um simples «esboço da forma política geral do comum» [23]  – esboço, na medida em que as experiências dos conselhos são meras «marcas da aspiração à democracia económica» [24]. Uma vez mais, ficase preso a uma concepção fetichista dos conselhos, vistos como formas ligadas à velha classe operária. O sistema dos «conselhos» é percepcionado como uma forma com função económica e não como um espírito de luta e de autogoverno, tendente a abolição da separação entre o político e o económico.
20. Num longo texto erudito de 600 páginas, a única referência ao movimento e às ideias dos sovietes e dos conselhos é um artigo de revista, datado de 1978, assinado pelo trotskista Pierre Naville; Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.400.
21. Hannah Arendt sobre a revolução húngara de 1956, citada em Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p. 401.
22. Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.401.
23. Ibid., p.402.
24. Ibid., p.91.
Enquanto não chega o grande dia, os teóricos modernos dos comuns deixamse facilmente enredar nas malhas da rede do realismo e pugnam por conciliar a produção de comuns com uma valorização de sectores marginais da economia, designadamente empresas autogeridas e associações de cooperativas, «à parte do mercado lucrativo e do Estado» [25], que seriam chamadas a desempenhar um papel central na transição para a sociedade póscapitalista. Desligado de perspectivas revolucionárias, o discurso sobre a «produção de comuns» atolouse num magma de ambiguidades, como mostram afirmações do género: «Não se trata […] de “suprimir” [o mercado] em benefício de um órgão burocrático de planificação e de repartição. Tratase, sim, de o “reencastrar” [sic] na sociedade […], de construir uma nova instituição cívica do mercado que conjugue simultaneamente o autogoverno dos produtores com a soberania colectiva dos consumidores.» [26] E: «Não se trata de suprimir a propriedade privada, mas de a limitar, de a subordinar aos imperativos sociais e ecológicos.» [27]. Como imaginar um mercado sem lei do mercado, sem determinação de preços, sem alienação dos produtores e sem mercadorias?! Para haver mercado, tem de haver mercadorias, e a produção mercantil implica a separação do produtor do produto do seu trabalho. Um «mercado cívico» controlado de forma consciente pelos produtores é um absurdo teórico.
25. Ibid., p.504.
26. Ibid., p.496.
27. «Les communs proposent un nouveau modèle social et économique», entrevista de Laval e Bollier, op. cit., p.401.
A «produção do comum» é uma teoria que continua particularmente vaga e confusa, mesmo que seja capaz de precisar os seus objectivos e os seus conteúdos durante lutas futuras contra o capitalismo. Aliás, pode argumentarse que esta «produção» esteve desde sempre no centro do projecto político da corrente socialista autoritária, conduzido pelo saber dos chefes e do partido. Reafirmar a necessidade do comum não diz nada sobre o conteúdo do acto colectivo, sobre a sua natureza emancipadora ou não. Os fracassos do socialismo autoritário, que a grande maioria dos partidários dos comuns reconhece, provam que o factor determinante da emancipação social não é a produção de comuns em si. O que é determinante é de que maneira os comuns são produzidos, de que maneira se constroem. E o meio, o princípio de auto-organização e da democracia directa, que contém o objectivo.
Por altura dos debates que se seguiram ao período revolucionário do início do século xx, alguns referiram uma diferença fundamental entre o «terreno passivo» de luta, o da sociedade dita civil, do cidadão, do espaço social, do consumo, e o «terreno activo», o da produção da vida social – diferença fundamental do ponto de vista do conteúdo das lutas e das suas possibilidades subversivas. A reflexão actual sobre os «comuns anticapitalistas» evita esta questão dos diferentes terrenos de luta e, entre os seus partidários, a visão do processo de subversão da ordem capitalista tende a minimizar a ideia de ruptura, concebendo os comuns como «fragmentos» de um mundo novo ainda por vir. Colocase, indiferentemente, no terreno da «sociedade civil» ou no da produção. O feudalismo pode coexistir com os primeiros «fragmentos» do capitalismo. Contudo, até prova em contrário, o capitalismo não permite a existência no seu seio de «embriões», de «fragmentos» de uma formação social com vocação para subverter os fundamentos das relações existentes. A transformação radical da sociedade actual não pode ser o resultado de um processo progressivo e acumulativo de criação de «espaços libertados». Pela dinâmica do seu poder, o capitalismo tem a capacidade de se apoderar de todos os espaços, de absorver e de integrar, de tolerar e de controlar todos os «fragmentos» que possam construirse no seu seio. Afirmálo não é uma tese dogmática. Na vida prática, qualquer actividade de produção ou de distribuição, por pouco que vá alem de uma configuração minúscula, encontrase enquadrada, submetida às relações salariais e ao mercado. A evolução das experiências cooperativas para a forma empresa é exemplo disso. Por outro lado, o capitalismo é um sistema social susceptível de dominar o conjunto da sociedade e de se desenvolver ainda que apenas uma parte da população seja explorada no quadro jurídico «normal». Grandes zonas de actividade podem coexistir fora desse quadro, reproduzindo simultaneamente as relações sociais capitalistas. Prova disso é a existência da economia dita «informal», que corresponde hoje em dia a cerca de metade da força de trabalho à escala mundial. [28] Um outro exemplo é a economia do crime, que funciona de forma completamente «ilegal» no interior do sistema. Relativamente a estes gigantescos sectores de actividade, as zonas de «economia alternativa», as «zonas autónomas» ou os «comuns capitalistas» representam pouco e em nada beliscam a produção de lucro.
28. Mike Davis, Le Pire des mondes possibles. De l’explosion urbaine au bidonville global, La Découverte, 2006.
Sob o reino do capitalismo, qualquer poder conquistado pela luta pode ser posto em causa a qualquer momento. Como sustentaram as correntes radicais da década de 1960, só as relações sociais igualitárias criadas em lutas autónomas podem «prefigurar» uma sociedade nova e escapar a esse poder integrador. Elas são os únicos «comuns» não integráveis e perenes, que desaparecem e reaparecem em cada período de contestação da ordem social.


Charles Reeve
Charles Reeve é Jorge Valadas. Nascido em Lisboa em 1945, entrou com 18 anos na Escola Naval para logo descobrir que se tinha enganado na porta. Opositor à guerra colonial, desertou em 1967 para Paris, onde viveu o Maio de 68 ao lado das correntes antiautoritárias, e depois para os Estados Unidos, para acompanhar o movimento contra a Guerra do Vietname. De regresso a França, tornou-se electricista — ofício manual que não lhe comprometia a independência crítica — e começou a publicar os seus ensaios. Fez parte do núcleo dos Cadernos de Circunstância (1969-71) e participou no jornal Combate (1974-78). O Tigre de Papel (1975), obra sobre o capitalismo de Estado na China, põe a nu as injustiças intrínsecas de um sistema que a globalização disseminou. Crónicas Portuguesas (2001) e A Memória e o Fogo (2006), inquietas reflexões de veia libertária, dão uma visão desafogada sobre o quotidiano social e psíquico dos portugueses. O pseudónimo Charles Reeve é uma homenagem a um emigrante escocês, sindicalista-revolucionário condenado em 1916, em Sydney, a dez anos de degredo por sabotar o «esforço de guerra».

Nota da edição
Este artigo é um capítulo do livro “Socialismo Selvagem. Ensaio sobre a auto-organização e a democracia directa nas lutas de 1789 até aos nossos dias”, gentilmente cedido pelo autor e pela editora Antígona.

Imagens
1. O Cavalo de Turim, Béla Tarr, 2011.
2. Rose Zehner com operários em greve na Fábrica Citroën Factory, Paris, 1938. Fotografia de Willy Ronis.
3. Junto ao Muro de Berlim, Kreuzberg, 1962.

Ficha Técnica
Data de publicação: 05.02.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •