Até há pouco tempo, a zona do Intendente,
onde se ergue um imponente edifício em ruínas conhecido ainda como Hospital do
Desterro, estava associada ao que se considerava mais desprezível numa cidade:
prostituição, droga, roubo, sujidade, decadência… Mas eis que, num processo
semelhante a tantos outros que se vivem actualmente em Lisboa, este território
de «má fama» está a entrar no lucrativo negócio do imobiliário. O programa de
«requalificação» do bairro, com o sugestivo nome de «Ai
Mouraria», delineado pela Câmara Municipal
em 2011 (era então António Costa presidente), rezava assim: «A operação de
Requalificação do Espaço Público da Mouraria […] é a operação de maior
visibilidade e a iniciativa mais indutora de novos comportamentos, não só em
termos de convivialidade pública como também de reabilitação do edificado e de
introdução de novas actividades». E o resultado foi tal que, nem passados seis
anos, já os jornais anunciavam: «A requalificação feita nos últimos anos na
zona do Intendente, em Lisboa, tornou este num local atrativo para investidores
imobiliários, que veem ali uma “oportunidade de negócio” para reabilitar
edifícios e vendê-los ou colocá-los no alojamento local.» [1]
1. Título do «Notícias
ao Minuto», Abril de 2017.
De facto, este processo de «gentrificação
organizada» começa agora a dar os resultados esperados pelos seus mentores, os
que mandam e os que lucram com ele, uma tarefa conseguida verdadeiramente de
mãos dadas, registando-se o aumento de despejos de moradores à medida que
nascem mais alojamentos e cafés para turistas. A Mouraria é talvez o último dos
bairros históricos a ser «domado», dada a quantidade de pobres, pensionistas e
imigrantes que ali moram.
«Carla Pinheiro, de 47 anos, a residente mais
nova do tal prédio da Rua dos Lagares, lisboeta dos sete costados, a viver na
Mouraria desde os 3 anos. Em novembro passado recebeu uma carta do senhorio,
que adquirira recentemente o seu prédio, a comunicar “a oposição à renovação do
contrato de arrendamento”, informando-a que teria de sair de casa num prazo de
um ano. As mãos de Carla tremem e os cigarros são consumidos rapidamente
enquanto relata a angústia que ela e mais 15 famílias sentem desde então.» (Expresso, 16-9-2017).
É neste contexto de «requalificação da
cidade» que o antigo Hospital do Desterro, encerrado em 2006 num processo
bastante nebuloso, e à venda desde 2008, surge como peça essencial. «Cerca de
200 manifestantes desfilaram ontem ao fim da tarde em cordão humano, entre a
Praça do Saldanha e o Ministério da Saúde, em Lisboa, em protesto pelo
anunciado encerramento do Hospital do Desterro, de urgências e extensões de
centros de saúde e maternidades.» (Público, 13-4-2006). Segundo o representante
da empresa proprietária do imóvel, a ESTAMO – Participações Imobiliárias S.A.,
esta operação imobiliária é fundamental: «Para
a Estamo, este projeto, no atual contexto do mercado, é uma forma inovadora
de valorizar os seus ativos, evitando a sua comercialização em condições
necessariamente muito desvalorizadas e a sua manutenção sem qualquer
rentabilidade, sendo uma motivação acrescida poder contribuir para a
dinamização económica do país e para a reabilitação urbana de uma importante
zona de Lisboa» [2]. Para
a empresa MAINSIDE, anunciada como responsável
pelo projecto desde 2013, o
secular convento será «um território experimental aberto a Lisboa e ao mundo,
onde será possível habitar e trabalhar numa cela, cultivar uma horta urbana,
frequentar um clube, almoçar num refeitório ou assistir a uma aula, entre
muitas outras experiências desenvolvidas por várias empresas e organizações». [3]
2. Página Internet
da CML, 27-5-2013.
3. Página internet
da CML, notícia de 27-5-2013.
No meio do processo devorador de cidades a
que todos assistimos, este texto procura devolver algum sentido histórico a
espaços urbanos e arquitecturas de Lisboa em profunda transformação,
desvendando, neste caso, um pouco da vida de um importante edifício religioso,
mais tarde transformado em hospital de doenças venéreas. Consultando os
registos médicos deste hospital de finais do século XIX, inícios do século XX [4], conseguimos também chegar muito perto de algumas
prostitutas que ali foram atendidas, das suas histórias pessoais e dos locais
que um dia habitaram, procurando fazer com essa recolha o retrato de uma Lisboa
do passado mas também do presente, uma cidade em plena transformação
urbanística e social e cada vez mais desmemoriada.
4.
Colecção de Dermatologia do Desterro, livros de registo clínico da consulta de
moléstias sifilíticas e venéreas, Hospital de Santo António dos Capuchos.
Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro: um pedaço de Lisboa entre o século XVI e o século XX
Desde o lançamento da primeira pedra, a 8 de
Abril de 1591, até ao seu encerramento em 2006, passaram 427 anos, ao longo dos
quais o antigo Mosteiro do Desterro foi testemunha privilegiada de uma certa
Lisboa e dos seus mais «desterrados» habitantes, personagens sobre as quais
raramente reza a História. Aos poucos, este estranho gigante de 8400 metros
quadrados, foi-se revelando um enorme contentor de histórias, adquirindo as
prostitutas da cidade, neste contexto, um lugar particular, pois foi aqui que
encontraram o apoio de que necessitavam para o alívio dos seus piores males.
Os finais do século XVI coincidiram com uma
época de expansão urbana, quando em Portugal reinava Filipe I (II de Espanha).
Pouco após ter sido aceite como rei nas cortes de Lisboa, no ano de 1586, o
monarca autoriza os abades de Cister a fundarem o seu segundo mosteiro em
Lisboa, tendo em conta que esta Ordem, com sede em Alcobaça, era uma das mais
poderosas do país. Seguindo o espírito de São Bento, o Mosteiro de Nossa
Senhora do Desterro deveria fundar-se em lugar apartado da cidade, para que os
seus filhos «podessem diser com Sam Paulo que a sua conversação era no Ceo». [5]
O arquitecto convidado para o desenho do
mosteiro foi Baltasar Álvares, correndo as obras a bom ritmo até 1640, quando,
no ambiente de restauração da independência, se considerou que uma construção
iniciada por usurpadores não merecia ser apoiada pelos novos poderes. Logo
desde a origem este edifício parecia estar destinado aos malvistos da
sociedade, pois é nele que se vão acolher os monges do Mosteiro de Alcobaça que
sofriam de doenças mentais ou que ali se internavam por pecado [6].
5. História dos Mosteiros, Conventos e Casas
Religiosas de Lisbôa (1707), tomo II, Lisboa, CML, 1972, pp. 1- 6.
6.
Damas Mora, «Desterro: vida e Morte de um hospital», in Clínica, Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do
Desterro e na Saúde Pública, Lisboa, ICS, 2011, p. 44.
E assim foi correndo a vida deste mosteiro,
que, apesar do lançamento da primeira pedra em finais do século XVI, não tinha
ainda, em inícios do século XVIII, a sua igreja terminada. Dos previstos
sessenta monges, habitaram-no muitas vezes apenas três ou quatro, arrastando-se
o edifício em obras que consumiam todos os rendimentos. Apenas com Afonso VI se
deu novo impulso à construção, devido à devoção do rei por São Bernardo. Em
1707, na descrição do conjunto são enumerados três grandes dormitórios, dois
claustros que flanqueavam uma igreja inacabada, um deles, o maior, com grandes
arcos de volta perfeita [7].
Possuía ainda este mosteiro um refeitório e uma portaria, que servia de templo
provisório, local onde, curiosamente, ainda se rezam missas. Hoje, a monumentalidade da fachada virada à
Avenida Almirante Reis, que corresponde aos dormitórios, com os seus quatro
pisos, continua a impressionar pela sua dimensão, observando-se ainda, nos
extremos da construção, a simulação de torreões, com os seus cunhais originais
de pilastras de pedra bem marcados, contrastando com as janelas de desenho mais
recente. Da igreja inacabada subsiste apenas a metade inferior da fachada, com
o pórtico de arcaria tripla que permitia o acesso ao nártex. A arcaria foi
posteriormente fechada, transformando-se na entrada principal do hospital.
7. História dos Mosteiros…, op. cit., p. 3.
A história assistencial deste mosteiro
inicia-se em 1750, quando, na sequência de um grande incêndio ocorrido no
Hospital de Todos-os-Santos, situado no Rossio, foi necessário transferir para
ali alguns doentes. Passados cinco anos, o espaço voltou a servir de alojamento
aos milhares de feridos do sismo de 1755 e, novamente em 1796, o Mosteiro do
Desterro foi escolhido para internar doentes, neste caso marinheiros [8]. Os monges ainda voltaram ao seu mosteiro, mas em
reduzido número, sujeitando-se a habitar um espaço diminuto e separado de todos
os outros que entretanto ali se tinham instalado, abandonando definitivamente o
espaço em 1814, mesmo antes da extinção das Ordens Religiosas. O velho mosteiro
servia agora sobretudo como alojamento das crianças da Casa Pia de Lisboa,
instituição que tinha surgido no decurso dos graves problemas sociais ocorridos
após o terramoto, problemas estes reforçados pela ocupação francesa que se
seguiu. De facto, as tropas francesas, quando entraram em Lisboa, exigiram a
entrega do Castelo de S. Jorge, ocupado então por crianças, mendigos e
prostitutas.
8.
Damas Mora, op. cit., pp. 44 a 46.
Despejados os indesejáveis, foi mais uma vez
necessário recorrer aos espaços disponíveis no Mosteiro do Desterro, que,
apesar da sua grande dimensão, não eram suficientes para alojar as centenas de
crianças que entretanto vagueavam pelas ruas da cidade, sendo recolhidas apenas
quinhentas. As condições foram-se agravando neste antigo mosteiro, numa época
em que o país atravessava também uma grave crise política, seguida de guerra
civil, obrigando, inclusivamente, a uma subscrição pública a favor dos órfãos
que ali sobreviviam, quase sem alimentos nem vestuário.
Fruto de um ódio crescente às instituições
religiosas e dada necessidade de o Governo liberal conseguir verbas de forma
expedita, é promulgado o decreto de extinção de todas as ordens religiosas a 30
de Maio de 1834, tomando a fazenda pública conta dos seus bens, imóveis, terras
e alfaias, ocasionando assim uma impressionante revolução fundiária, que levou,
consequentemente, a uma reforma urbanística na maior parte das cidades. O
Mosteiro do Desterro não foi excepção e, logo dois meses após a promulgação do
decreto, diligentes funcionários e seus escrivães iniciam o inventário do que
restava dos pertences dos monges [9], tendo como representante da Ordem Frei Joaquim da Cruz,
intimado a dar conta de tudo o que tivesse valor para ser vendido ou integrado
nos bens do Estado.
9. Inventário de
extinção in: http://lxconventos.cm-lisboa.pt/base-de-dados/. Ver Mosteiro de
Nossa Senhora do Desterro.
Nesse inventário são referenciados vários
prédios arrendados nas ruas em redor, duas quintas na zona de Sintra, algumas
peças em prata, uns cálices e uma custódia, que passam para a igreja dos Anjos.
Ficavam também intimados todos os artífices que trabalhavam para o Mosteiro a
entregar, a partir de então, os seus instrumentos de trabalho, tais como o
carpinteiro de carruagens, o correeiro e o seleiro. A 13 de Janeiro de 1837 a
Fazenda Nacional toma finalmente conta do antigo Mosteiro, avaliando-se a
igreja em 1000$00 réis e o edifício conventual em 8000$00 réis [10].
10. Idem, ibidem.
Com a extinção das Ordens e a transferência
dos órfãos da Casa Pia para o Mosteiro dos Jerónimos, o Desterro é ocupado por
unidades militares, até à sua entrega, em 1848, aos Hospitais de Lisboa,
passando a servir como anexo do grande Hospital de S. José. Transitam então
para o velho edifício do Desterro as funções hospitalares, dedicadas,
inicialmente, a debelar o surto de febre-amarela, utilizando-se a grande ala
dos dormitórios dos frades para instalar as enfermarias e os restantes espaços
como alojamento do pessoal que ali trabalhava. As condições deste hospital
foram sempre muito precárias, talvez porque a população que dele necessitava
não fosse considerada merecedora de mais, mantendo-se as instalações vários
anos sem luz eléctrica nem cozinha...
Os ímpetos urbanísticos da passagem do século
e o desejo de fazer da cidade uma urbe moderna, em vez de resolver os problemas
do velho, mas tão necessário hospital, vão agravá-los. Em 1904 são tomadas
várias iniciativas para que a Avenida D. Amélia, futura Almirante Reis, tivesse
continuidade até à Rua da Palma, procurando, deste modo, ligar a Lisboa
burguesa da zona alta com a Lisboa popular da Mouraria. Esta ligação implicava
a demolição de importantes sectores do hospital, nomeadamente as enfermarias de
S. Roque e S. Alberto, processo este que se irá arrastar por alguns anos.
Apesar de concretizado o projecto viário e demolidas partes do mosteiro, a
ligação destas duas Lisboas teimava em não resultar, mantendo-se sempre a
estranheza e a desconfiança relativamente à população mais pobre da zona sul.
As doenças da vida no Hospital do Desterro
«No Desterro as enfermarias em geral teem
pouca luz, má ventilação e cubagem insuficiente, com muito pouca altura. Havia
duas enfermarias destinadas ás meretrizes que a polícia manda hospitalisar,
onde se encontravam apenas as prostitutas de mais baixa condição.» (José Curry
da Camara Cabral).
Em 1862, a atribulada vida do Mosteiro de
Nossa Senhora do Desterro conhece um novo episódio ao receber as prostitutas
vindas de um outro edifício religioso, o Mosteiro de Rilhafoles (mais tarde
designado como Miguel Bombarda), onde estavam também os «alienados». Durante
anos, os doentes mentais e as prostitutas vítimas de doenças venéreas estiveram
alojados em Rilhafoles, em condições miseráveis, sofrendo sobretudo com o
excesso de internados, por exemplo 506 em 1866 para apenas dois médicos. As
meretrizes de Rilhafoles são então deslocadas para o Desterro, sendo instaladas
nas enfermarias de Santa Maria Madalena e Santa Maria Egipcíaca, passando esta
última a ter a função de sala de «cirurgia de meretrizes» [11]. Os nomes escolhidos para estes espaços não poderiam ser
mais simbólicos. Para além de Santa Maria Madalena, cujo percurso de vida é
conhecido, a mulher de nome Maria que viveu no Egipto no ano de 500 d.C. foi
igualmente prostituta, mas em Alexandria, depois de ter fugido de casa dos pais
aos doze anos de idade.
11.
Damas Mora, op. cit., p. 48.
Em breve a enfermaria de Santa Maria
Egipcíaca adquiriu as mesmas condições miseráveis que já tinham sido criticadas
em Rilhafoles, levando o próprio rei D. Luís a comentar, quando a visitou em
1878, que se tratava de um «ignóbil pardieiro» [12]. Programou-se então o encerramento destas instalações,
algo que nunca ocorreu senão nos anos 60 do século XX, quando deixa de haver
enfermarias específicas para prostitutas.
12. João Carlos
Rodrigues, «A Dermatologia em Portugal: factos e figuras», in Clínica, Arte e Sociedade: A Síflilis no
Hospital do Desterro e na Saúde Pública, p. 81.
«Regulamento Policial das Meretrizes e Casas
Toleradas da Cidade de Lisboa em 1 de Dezembro de 1865, governo civil de
Lisboa.
Artigo 41º – As meretrizes que sem causa
justificada, e contra as disposições d’este regulamento, se recusarem á visita
sanitária, considerar-se-hão infeccionadas, e serão metidas na cadeia, aonde se
conservarão até se verificar o seu estado sanitário.»
A maior parte das mulheres internadas na
enfermaria de Santa Maria Egipcíaca encontrava-se sob vigilância da polícia
sanitária e as mais «indisciplinadas» eram encerradas numa cave. «Ir para o
Desterro» passa assim a ter o pior dos sentidos para as «mulheres da vida» mais
desprotegidas de Lisboa. À medida que aumentava o flagelo da sífilis, o
tratamento desta doença venérea foi crescendo em importância no Hospital do
Desterro. Às prostitutas atribuía-se a causa deste e de muitos outros males,
quando se sabia que grande parte dos infectados eram homens, chegando a ser 10
% da população de Lisboa em 1910. [13]
13. Célia Pilão e Sandra Tacão, «A profilaxia da sífilis em Portugal
(1900-1940): suportes de propaganda», in Clínica,
Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do Desterro e na Saúde Pública, p.
176.
«Lembrai-vos da vossa esposa ou da vossa namorada,
que deixaste onde viveis e que vos espera. Todas as mulheres que se vos
oferecem ou vos desinquietam, deveis considerar suspeitas». Era este o texto de
um folheto distribuído aos marinheiros estrangeiros antes de desembarcarem em
Lisboa, nos anos 30 do século XX. De facto, a sífilis, doença produzida por uma
bactéria, foi, até à descoberta da penicilina, uma enfermidade comum e sem
cura, deixando graves lesões no corpo. A Colecção de Dermatologia do Hospital
dos Capuchos, por exemplo, que inclui 162 figuras de cera provenientes do
Serviço de Dermatologia do Hospital do Desterro, é bem demonstrativa de tais
consequências. Estas imagens hiper-realistas, encomendadas pelo médico Sá
Penella, foram executadas entre os meados dos anos 30 e 40 do século XX,
incluindo vários casos de mulheres internadas no Desterro. Sendo altamente
contagiosa, propaga-se também por contacto sexual, logo associada à
prostituição, ou por contacto directo com as lesões, podendo ser igualmente
transmitida por herança dos pais levando à morte das crianças pouco após o
nascimento. Apesar de hoje não ser muito falada, continua a afectar pessoas em
todo o mundo.
«Estas prostitutas vagabundas pelas ruas, são
as que mais propagão o Virus Venereo: esta única rasão seria mais que suficiente
para que nenhum Governo policiado as tolerasse.» (Francisco I. dos Santos Cruz,
Da prostituição da cidade de Lisboa, 1841, p. 56.)
O final do século XIX trouxe finalmente ao
Hospital do Desterro uma melhoria geral das condições de assistência, por ocasião
da nomeação, em 1897, do médico Thomaz de Mello Bryner, responsável pelo então
serviço de dermatovenereologia e da «consulta de moléstias sifilíticas e
venéreas», ou «doenças vergonhosas», como também era conhecida. A partir de
então, as mulheres internadas passam a ser tratadas com a dignidade merecida,
mantendo este médico e grande humanista a sua consulta até à data do seu
falecimento, em 1933. Há que ter em conta que uma consulta num hospital público
desta natureza destinava-se a quem não podia pagar uma visita médica ao
domicílio, expondo-se assim aos olhares da sociedade.
Entre 1882 e 1891, quando já era obrigatório
que as prostitutas fossem matriculadas no Governo Civil, é possível verificar
que, do total das 2316 inscritas, 688 se apresentavam como criadas de servir,
logo seguidas das costureiras, passando as prostitutas a ser o dobro nos anos
de 1892-1901 [14]. De notar que
entre 1864 e o final do século as mulheres migravam mais que os homens, numa
altura em que o país assistia a grandes deslocações internas de populações,
fixando-se a maioria delas nas grandes cidades [15].
14. Clara Machado
Ferreira, Costureiras de Lisboa: Artesãs
da Moda (1890-1914), Tese de Mestrado, ISCTE, 2014, p.74.
15. Teresa Rodrigues
Veiga, A População Portuguesa no Século
XIX, Lisboa, Afrontamento, 2014, p. 129.
Num estudo que aborda a prostituição em
Lisboa no início do século XX refere-se que entre 1902 e 1906 foram 1447 as
«mulheres da vida» internadas no Hospital do Desterro, muitas delas por
diversas vezes. A maioria era oriunda de Lisboa, habitando sobretudo as antigas
freguesias da Encarnação e do Socorro. Havia também as que vinham da província,
das ilhas e das colónias, predominando, entre as da metrópole, as oriundas de
Viseu e, no caso do Ultramar, as que vinham de Luanda [16].
16. Cristiana Bastos e Rita Almeida de
Carvalho, «Ai Mouraria! Da hospedaria ao hospital», in Clínica, Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do Desterro e na Saúde
Pública, pp. 158 a 160.
«Além das moléstias congeniaes há outras
prostitutas, que pela côr da sua pele parece que devião repelir a aproximação
d’hum Europeo, apesar disso ellas são procuradas.» (Francisco dos Santos Cruz,
op. cit., 1841, p. 90.).
Nos registos das prostitutas de Lisboa do
início do século XX surgiam também algumas estrangeiras, sobretudo espanholas
da Galiza e da Andaluzia. Em 1926 eram já 2547 as matriculadas, continuando a
maioria a ser lisboetas, seguindo-se as que vinham do Porto. As estrangeiras
eram agora maioritariamente francesas. Nesta época continuavam a predominar as
prostitutas que se inscreviam como criadas de servir (38 %) [17]. De facto, muitas das mulheres que chegavam a Lisboa
ainda crianças para trabalhar como serviçais, dada a falta de condições de
sustento nas suas terras de origem, eram facilmente abusadas pelos patrões e
outros homens sem escrúpulos, caindo rapidamente nas redes da prostituição.
17. Azevedo Neves in
Pecados à Flor da Pele, Lisboa,
Ligrate-Atelier Gráfico, Lda., 2015, p.48.
As casas das meretrizes do Hospital do Desterro – um
retrato de Lisboa (1871-2018)
Regulamento Policial das Meretrizes e Casas
Toleradas da Cidade de Lisboa, publicado a 1 de Dezembro de 1865:
«Artigo 1º – São consideradas meretrizes
todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à
prostituição.
Artigo único – Há duas classes de meretrizes:
1.º As que vivem em comum e debaixo da direcção de uma dona de casa; 2.º As que
vivem isoladamente em domicílio próprio.
Artigo 9º – É expressamente prohibido ás
meretrizes: 1º habitar nas proximidades de templos, de colégios de educação e
de jardins públicos;
Artigo 14º – As casas toleradas dividem-se em
duas classes: 1º Casas toleradas onde as meretrizes têem domicilio fixo; Casas
toleradas chamadas de passe, onde as meretrizes que vivem isoladas se entregam
ao exercício da prostituição.
Artigo 18º – As donas de casa tolerada são
obrigadas a ter as janelas guarnecidas de tabuinhas, ou de modo que o interior
da casa não seja devassado.»
Foi sobretudo com base nos livros de
consultas do antigo Hospital do Desterro de finais do século XIX e inícios do
século XX, onde eram registados todos os doentes, a sua morada, ocupação
profissional, características pessoais e doenças, que procurámos desvendar um
pouco a vida de algumas das mulheres que utilizaram este edifício hoje tão
abandonado. Quanto desespero, quanta esperança, quantas histórias de vida
encerram estes espaços, hoje vazios de sentido, que aguardam um mais que
provável uso comercial e turístico. Quem sabe, talvez sejam estas memórias,
lembradas num belo mural convenientemente integrado numa qualquer cafetaria
gourmet, que no futuro aqui se instale...
Da lista imensa de mulheres que frequentaram
as consultas do Hospital do Desterro limitámo-nos a retirar informações sobre
as que surgem registadas como meretrizes. Os breves apontamentos que recolhemos
têm a força de, em breves palavras, nos trazerem à luz estas pessoas. Do
conjunto total de registos escolhemos apenas cinco, cuja morada era legível,
permitindo-nos assim revisitar as suas casas e observar o que entretanto lhes
tinha acontecido. Estas visitas acabaram por nos fornecer também um excelente
retrato do que actualmente se passa em Lisboa, tanto em termos da dita
«reabilitação urbana» como, em certa medida também, em termos sociais. Cada
casa tornou-se assim um caso único, captado pelas fotografias que aqui
apresentamos.
Casa de Francisca Gomes de Jesus
No ano de 1871 esteve na Enfermaria 24 a
mulher de nome Francisca Gomes de Jesus, de 24 anos, constituição robusta e
estatura regular. Solteira, meretriz registada com o nº 2648, exercia
actividade na sua residência, na Rua das Portas de S. Antão, n.º 12, r/c. Era
natural de Cedofeita, no Porto, e envergava, à data de internamento, um xaile,
casaco, camisa, meias e botas. Sofria de sífilis, com placas mucosas nos
grandes lábios da vulva.
Casa de Isabel Lino e Renes
No dia 4 de Fevereiro de 1871 foi recebida em
consulta Isabel Lino e Renes, de 17 anos, solteira, meretriz com o nº 3606,
natural de Sevilha, Espanha, moradora no Largo de S. Roque, nº 2. De
temperamento sanguíneo, constituição regular, estatura mediana, apresentava
escoriações na vulva.
Casa de Manuela Bárbara
Em 1871 foi atendida em consulta no Hospital
do Desterro, Manuela Barbara, de 18 anos, filha de pais incógnitos, tendo sido
exposta na roda do Alvor. Solteira e meretriz com o n.º 3536, vivia na Travessa
do Pasteleiro, nº 57, 1º andar.
Casa de Maria Libéria
A 20 de Outubro de 1902 foi vista por Thomaz
Mello Bryner, na consulta externa de moléstias sifilíticas e venéreas, Maria
Libéria, de 11 anos de idade, inscrita como doméstica e vadia, sendo natural de
Faro. Vivia na Rua da Mouraria, nº 38, 4º andar. O médico refere nas suas notas
o seguinte: «Em tempos foi levada para uma escada por um homem que tentou
desflorá-la.» Apresentava sífilis sem desfloramento. Recolheu à enfermaria
Nossa Senhora da Piedade, tendo-lhe sido prescrito um tratamento de injecções
de salicilato; saiu apenas um ano depois.
Casa de Maria Rosa
No dia 14 de Abril de 1905 Thomaz Mello
Bryner viu em consulta Maria Rosa, com 16 anos de idade, ocupação doméstica e
meretriz, natural de Mangualde e moradora na Rua da Amendoeira, nº 44 – loja.
Sofria de sífilis, com placas mucosas, dores articulares, gânglios inguinais e
cervicais. O tratamento prescrito foi de fricções mercuriais. O médico completa
a informação escrevendo: «É matriculada, foi à Revista e della escapou!»
•
Maria Ramalho
Formada em História pela FCSH da
Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Arqueologia Medieval pela Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Como investigadora dedica-se sobretudo à
Arqueologia da Arquitectura praticando, no entanto, uma deriva pessoal e
apaixonada pelos legados do movimento Letrista e Situacionista, particularmente
este último com interessantes ligações a Portugal.
Nota da autora
Este artigo é dedicado a Célia
Pilão, que, com a sua generosidade tocante e contagiante, me revelou o património
excepcional da Colina de Sant’Ana e dos seus hospitais.
Nota da edição
Este artigo foi originalmente
publicado na Revista Flauta nº6. As fotos são da autora, salvo outra indicação.
Imagens
1. Convento-Hospital do Desterro
2. A reabilitação do bairro da
Mouraria.
3. Debandada geral no bairro da
Mouraria.
4. Fachada da antiga igreja
conventual, adaptada em 1930 como entrada principal do Hospital do Desterro.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
5. Hospital do Desterro após o
fecho, podendo ver-se a estrutura original do velho Mosteiro. Foto de Carlos
Carvalho.
6. Figuras de cera de mulheres sifilíticas do
Hospital do Desterro (colecção Sá Penella, Museu do Hospital dos Capuchos).
7. A sífilis e a prostituição
segundo um folheto da Direcção-Geral de Saúde da década de 1930.
Ficha Técnica
Data de publicação:
15.01.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •