Monges e meretrizes do Desterro: um mosteiro e cinco casas de Lisboa • Maria Ramalho





Até há pouco tempo, a zona do Intendente, onde se ergue um imponente edifício em ruínas conhecido ainda como Hospital do Desterro, estava associada ao que se considerava mais desprezível numa cidade: prostituição, droga, roubo, sujidade, decadência… Mas eis que, num processo semelhante a tantos outros que se vivem actualmente em Lisboa, este território de «má fama» está a entrar no lucrativo negócio do imobiliário. O programa de «requalificação» do bairro, com o sugestivo nome de «Ai Mouraria», delineado pela Câmara Municipal em 2011 (era então António Costa presidente), rezava assim: «A operação de Requalificação do Espaço Público da Mouraria […] é a operação de maior visibilidade e a iniciativa mais indutora de novos comportamentos, não só em termos de convivialidade pública como também de reabilitação do edificado e de introdução de novas actividades». E o resultado foi tal que, nem passados seis anos, já os jornais anunciavam: «A requalificação feita nos últimos anos na zona do Intendente, em Lisboa, tornou este num local atrativo para investidores imobiliários, que veem ali uma “oportunidade de negócio” para reabilitar edifícios e vendê-los ou colocá-los no alojamento local.» [1]
1. Título do «Notícias ao Minuto», Abril de 2017.




De facto, este processo de «gentrificação organizada» começa agora a dar os resultados esperados pelos seus mentores, os que mandam e os que lucram com ele, uma tarefa conseguida verdadeiramente de mãos dadas, registando-se o aumento de despejos de moradores à medida que nascem mais alojamentos e cafés para turistas. A Mouraria é talvez o último dos bairros históricos a ser «domado», dada a quantidade de pobres, pensionistas e imigrantes que ali moram.
«Carla Pinheiro, de 47 anos, a residente mais nova do tal prédio da Rua dos Lagares, lisboeta dos sete costados, a viver na Mouraria desde os 3 anos. Em novembro passado recebeu uma carta do senhorio, que adquirira recentemente o seu prédio, a comunicar “a oposição à renovação do contrato de arrendamento”, informando-a que teria de sair de casa num prazo de um ano. As mãos de Carla tremem e os cigarros são consumidos rapidamente enquanto relata a angústia que ela e mais 15 famílias sentem desde então.» (Expresso, 16-9-2017).
É neste contexto de «requalificação da cidade» que o antigo Hospital do Desterro, encerrado em 2006 num processo bastante nebuloso, e à venda desde 2008, surge como peça essencial. «Cerca de 200 manifestantes desfilaram ontem ao fim da tarde em cordão humano, entre a Praça do Saldanha e o Ministério da Saúde, em Lisboa, em protesto pelo anunciado encerramento do Hospital do Desterro, de urgências e extensões de centros de saúde e maternidades.» (Público, 13-4-2006). Segundo o representante da empresa proprietária do imóvel, a ESTAMO – Participações Imobiliárias S.A., esta operação imobiliária é fundamental: «Para a Estamo, este projeto, no atual contexto do mercado, é uma forma inovadora de valorizar os seus ativos, evitando a sua comercialização em condições necessariamente muito desvalorizadas e a sua manutenção sem qualquer rentabilidade, sendo uma motivação acrescida poder contribuir para a dinamização económica do país e para a reabilitação urbana de uma importante zona de Lisboa» [2]. Para a empresa MAINSIDE, anunciada como responsável pelo projecto desde 2013, o secular convento será «um território experimental aberto a Lisboa e ao mundo, onde será possível habitar e trabalhar numa cela, cultivar uma horta urbana, frequentar um clube, almoçar num refeitório ou assistir a uma aula, entre muitas outras experiências desenvolvidas por várias empresas e organizações». [3]
2. Página Internet da CML, 27-5-2013.
3. Página internet da CML, notícia de 27-5-2013. 
No meio do processo devorador de cidades a que todos assistimos, este texto procura devolver algum sentido histórico a espaços urbanos e arquitecturas de Lisboa em profunda transformação, desvendando, neste caso, um pouco da vida de um importante edifício religioso, mais tarde transformado em hospital de doenças venéreas. Consultando os registos médicos deste hospital de finais do século XIX, inícios do século XX [4], conseguimos também chegar muito perto de algumas prostitutas que ali foram atendidas, das suas histórias pessoais e dos locais que um dia habitaram, procurando fazer com essa recolha o retrato de uma Lisboa do passado mas também do presente, uma cidade em plena transformação urbanística e social e cada vez mais desmemoriada.
4. Colecção de Dermatologia do Desterro, livros de registo clínico da consulta de moléstias sifilíticas e venéreas, Hospital de Santo António dos Capuchos.

Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro:  um pedaço de Lisboa entre  o século XVI e o século XX
Desde o lançamento da primeira pedra, a 8 de Abril de 1591, até ao seu encerramento em 2006, passaram 427 anos, ao longo dos quais o antigo Mosteiro do Desterro foi testemunha privilegiada de uma certa Lisboa e dos seus mais «desterrados» habitantes, personagens sobre as quais raramente reza a História. Aos poucos, este estranho gigante de 8400 metros quadrados, foi-se revelando um enorme contentor de histórias, adquirindo as prostitutas da cidade, neste contexto, um lugar particular, pois foi aqui que encontraram o apoio de que necessitavam para o alívio dos seus piores males.
Os finais do século XVI coincidiram com uma época de expansão urbana, quando em Portugal reinava Filipe I (II de Espanha). Pouco após ter sido aceite como rei nas cortes de Lisboa, no ano de 1586, o monarca autoriza os abades de Cister a fundarem o seu segundo mosteiro em Lisboa, tendo em conta que esta Ordem, com sede em Alcobaça, era uma das mais poderosas do país. Seguindo o espírito de São Bento, o Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro deveria fundar-se em lugar apartado da cidade, para que os seus filhos «podessem diser com Sam Paulo que a sua conversação era no Ceo». [5] O arquitecto convidado para o desenho do mosteiro foi Baltasar Álvares, correndo as obras a bom ritmo até 1640, quando, no ambiente de restauração da independência, se considerou que uma construção iniciada por usurpadores não merecia ser apoiada pelos novos poderes. Logo desde a origem este edifício parecia estar destinado aos malvistos da sociedade, pois é nele que se vão acolher os monges do Mosteiro de Alcobaça que sofriam de doenças mentais ou que ali se internavam por pecado [6].
5. História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisbôa (1707), tomo II, Lisboa, CML, 1972, pp. 1- 6.
6. Damas Mora, «Desterro: vida e Morte de um hospital», in Clínica, Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do Desterro e na Saúde Pública, Lisboa, ICS, 2011, p. 44.
E assim foi correndo a vida deste mosteiro, que, apesar do lançamento da primeira pedra em finais do século XVI, não tinha ainda, em inícios do século XVIII, a sua igreja terminada. Dos previstos sessenta monges, habitaram-no muitas vezes apenas três ou quatro, arrastando-se o edifício em obras que consumiam todos os rendimentos. Apenas com Afonso VI se deu novo impulso à construção, devido à devoção do rei por São Bernardo. Em 1707, na descrição do conjunto são enumerados três grandes dormitórios, dois claustros que flanqueavam uma igreja inacabada, um deles, o maior, com grandes arcos de volta perfeita [7]. Possuía ainda este mosteiro um refeitório e uma portaria, que servia de templo provisório, local onde, curiosamente, ainda se rezam missas.  Hoje, a monumentalidade da fachada virada à Avenida Almirante Reis, que corresponde aos dormitórios, com os seus quatro pisos, continua a impressionar pela sua dimensão, observando-se ainda, nos extremos da construção, a simulação de torreões, com os seus cunhais originais de pilastras de pedra bem marcados, contrastando com as janelas de desenho mais recente. Da igreja inacabada subsiste apenas a metade inferior da fachada, com o pórtico de arcaria tripla que permitia o acesso ao nártex. A arcaria foi posteriormente fechada, transformando-se na entrada principal do hospital.
7. História dos Mosteiros…, op. cit., p. 3.
A história assistencial deste mosteiro inicia-se em 1750, quando, na sequência de um grande incêndio ocorrido no Hospital de Todos-os-Santos, situado no Rossio, foi necessário transferir para ali alguns doentes. Passados cinco anos, o espaço voltou a servir de alojamento aos milhares de feridos do sismo de 1755 e, novamente em 1796, o Mosteiro do Desterro foi escolhido para internar doentes, neste caso marinheiros [8]. Os monges ainda voltaram ao seu mosteiro, mas em reduzido número, sujeitando-se a habitar um espaço diminuto e separado de todos os outros que entretanto ali se tinham instalado, abandonando definitivamente o espaço em 1814, mesmo antes da extinção das Ordens Religiosas. O velho mosteiro servia agora sobretudo como alojamento das crianças da Casa Pia de Lisboa, instituição que tinha surgido no decurso dos graves problemas sociais ocorridos após o terramoto, problemas estes reforçados pela ocupação francesa que se seguiu. De facto, as tropas francesas, quando entraram em Lisboa, exigiram a entrega do Castelo de S. Jorge, ocupado então por crianças, mendigos e prostitutas.
8. Damas Mora, op. cit., pp. 44 a 46.
Despejados os indesejáveis, foi mais uma vez necessário recorrer aos espaços disponíveis no Mosteiro do Desterro, que, apesar da sua grande dimensão, não eram suficientes para alojar as centenas de crianças que entretanto vagueavam pelas ruas da cidade, sendo recolhidas apenas quinhentas. As condições foram-se agravando neste antigo mosteiro, numa época em que o país atravessava também uma grave crise política, seguida de guerra civil, obrigando, inclusivamente, a uma subscrição pública a favor dos órfãos que ali sobreviviam, quase sem alimentos nem vestuário.
Fruto de um ódio crescente às instituições religiosas e dada necessidade de o Governo liberal conseguir verbas de forma expedita, é promulgado o decreto de extinção de todas as ordens religiosas a 30 de Maio de 1834, tomando a fazenda pública conta dos seus bens, imóveis, terras e alfaias, ocasionando assim uma impressionante revolução fundiária, que levou, consequentemente, a uma reforma urbanística na maior parte das cidades. O Mosteiro do Desterro não foi excepção e, logo dois meses após a promulgação do decreto, diligentes funcionários e seus escrivães iniciam o inventário do que restava dos pertences dos monges [9], tendo como representante da Ordem Frei Joaquim da Cruz, intimado a dar conta de tudo o que tivesse valor para ser vendido ou integrado nos bens do Estado.
9. Inventário de extinção in: http://lxconventos.cm-lisboa.pt/base-de-dados/. Ver Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro.
Nesse inventário são referenciados vários prédios arrendados nas ruas em redor, duas quintas na zona de Sintra, algumas peças em prata, uns cálices e uma custódia, que passam para a igreja dos Anjos. Ficavam também intimados todos os artífices que trabalhavam para o Mosteiro a entregar, a partir de então, os seus instrumentos de trabalho, tais como o carpinteiro de carruagens, o correeiro e o seleiro. A 13 de Janeiro de 1837 a Fazenda Nacional toma finalmente conta do antigo Mosteiro, avaliando-se a igreja em 1000$00 réis e o edifício conventual em 8000$00 réis [10].
10.  Idem, ibidem.
Com a extinção das Ordens e a transferência dos órfãos da Casa Pia para o Mosteiro dos Jerónimos, o Desterro é ocupado por unidades militares, até à sua entrega, em 1848, aos Hospitais de Lisboa, passando a servir como anexo do grande Hospital de S. José. Transitam então para o velho edifício do Desterro as funções hospitalares, dedicadas, inicialmente, a debelar o surto de febre-amarela, utilizando-se a grande ala dos dormitórios dos frades para instalar as enfermarias e os restantes espaços como alojamento do pessoal que ali trabalhava. As condições deste hospital foram sempre muito precárias, talvez porque a população que dele necessitava não fosse considerada merecedora de mais, mantendo-se as instalações vários anos sem luz eléctrica nem cozinha...
Os ímpetos urbanísticos da passagem do século e o desejo de fazer da cidade uma urbe moderna, em vez de resolver os problemas do velho, mas tão necessário hospital, vão agravá-los. Em 1904 são tomadas várias iniciativas para que a Avenida D. Amélia, futura Almirante Reis, tivesse continuidade até à Rua da Palma, procurando, deste modo, ligar a Lisboa burguesa da zona alta com a Lisboa popular da Mouraria. Esta ligação implicava a demolição de importantes sectores do hospital, nomeadamente as enfermarias de S. Roque e S. Alberto, processo este que se irá arrastar por alguns anos. Apesar de concretizado o projecto viário e demolidas partes do mosteiro, a ligação destas duas Lisboas teimava em não resultar, mantendo-se sempre a estranheza e a desconfiança relativamente à população mais pobre da zona sul.

As doenças da vida no Hospital do Desterro




«No Desterro as enfermarias em geral teem pouca luz, má ventilação e cubagem insuficiente, com muito pouca altura. Havia duas enfermarias destinadas ás meretrizes que a polícia manda hospitalisar, onde se encontravam apenas as prostitutas de mais baixa condição.» (José Curry da Camara Cabral).
Em 1862, a atribulada vida do Mosteiro de Nossa Senhora do Desterro conhece um novo episódio ao receber as prostitutas vindas de um outro edifício religioso, o Mosteiro de Rilhafoles (mais tarde designado como Miguel Bombarda), onde estavam também os «alienados». Durante anos, os doentes mentais e as prostitutas vítimas de doenças venéreas estiveram alojados em Rilhafoles, em condições miseráveis, sofrendo sobretudo com o excesso de internados, por exemplo 506 em 1866 para apenas dois médicos. As meretrizes de Rilhafoles são então deslocadas para o Desterro, sendo instaladas nas enfermarias de Santa Maria Madalena e Santa Maria Egipcíaca, passando esta última a ter a função de sala de «cirurgia de meretrizes» [11]. Os nomes escolhidos para estes espaços não poderiam ser mais simbólicos. Para além de Santa Maria Madalena, cujo percurso de vida é conhecido, a mulher de nome Maria que viveu no Egipto no ano de 500 d.C. foi igualmente prostituta, mas em Alexandria, depois de ter fugido de casa dos pais aos doze anos de idade.
11. Damas Mora, op. cit., p. 48.
Em breve a enfermaria de Santa Maria Egipcíaca adquiriu as mesmas condições miseráveis que já tinham sido criticadas em Rilhafoles, levando o próprio rei D. Luís a comentar, quando a visitou em 1878, que se tratava de um «ignóbil pardieiro» [12]. Programou-se então o encerramento destas instalações, algo que nunca ocorreu senão nos anos 60 do século XX, quando deixa de haver enfermarias específicas para prostitutas.
12. João Carlos Rodrigues, «A Dermatologia em Portugal: factos e figuras», in Clínica, Arte e Sociedade: A Síflilis no Hospital do Desterro e na Saúde Pública, p. 81.
«Regulamento Policial das Meretrizes e Casas Toleradas da Cidade de Lisboa em 1 de Dezembro de 1865, governo civil de Lisboa.
Artigo 41º – As meretrizes que sem causa justificada, e contra as disposições d’este regulamento, se recusarem á visita sanitária, considerar-se-hão infeccionadas, e serão metidas na cadeia, aonde se conservarão até se verificar o seu estado sanitário.»
A maior parte das mulheres internadas na enfermaria de Santa Maria Egipcíaca encontrava-se sob vigilância da polícia sanitária e as mais «indisciplinadas» eram encerradas numa cave. «Ir para o Desterro» passa assim a ter o pior dos sentidos para as «mulheres da vida» mais desprotegidas de Lisboa. À medida que aumentava o flagelo da sífilis, o tratamento desta doença venérea foi crescendo em importância no Hospital do Desterro. Às prostitutas atribuía-se a causa deste e de muitos outros males, quando se sabia que grande parte dos infectados eram homens, chegando a ser 10 % da população de Lisboa em 1910. [13]  
13. Célia Pilão e Sandra Tacão, «A profilaxia da sífilis em Portugal (1900-1940): suportes de propaganda», in Clínica, Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do Desterro e na Saúde Pública, p. 176.



«Lembrai-vos da vossa esposa ou da vossa namorada, que deixaste onde viveis e que vos espera. Todas as mulheres que se vos oferecem ou vos desinquietam, deveis considerar suspeitas». Era este o texto de um folheto distribuído aos marinheiros estrangeiros antes de desembarcarem em Lisboa, nos anos 30 do século XX. De facto, a sífilis, doença produzida por uma bactéria, foi, até à descoberta da penicilina, uma enfermidade comum e sem cura, deixando graves lesões no corpo. A Colecção de Dermatologia do Hospital dos Capuchos, por exemplo, que inclui 162 figuras de cera provenientes do Serviço de Dermatologia do Hospital do Desterro, é bem demonstrativa de tais consequências. Estas imagens hiper-realistas, encomendadas pelo médico Sá Penella, foram executadas entre os meados dos anos 30 e 40 do século XX, incluindo vários casos de mulheres internadas no Desterro. Sendo altamente contagiosa, propaga-se também por contacto sexual, logo associada à prostituição, ou por contacto directo com as lesões, podendo ser igualmente transmitida por herança dos pais levando à morte das crianças pouco após o nascimento. Apesar de hoje não ser muito falada, continua a afectar pessoas em todo o mundo.
«Estas prostitutas vagabundas pelas ruas, são as que mais propagão o Virus Venereo: esta única rasão seria mais que suficiente para que nenhum Governo policiado as tolerasse.» (Francisco I. dos Santos Cruz, Da prostituição da cidade de Lisboa, 1841, p. 56.)
O final do século XIX trouxe finalmente ao Hospital do Desterro uma melhoria geral das condições de assistência, por ocasião da nomeação, em 1897, do médico Thomaz de Mello Bryner, responsável pelo então serviço de dermatovenereologia e da «consulta de moléstias sifilíticas e venéreas», ou «doenças vergonhosas», como também era conhecida. A partir de então, as mulheres internadas passam a ser tratadas com a dignidade merecida, mantendo este médico e grande humanista a sua consulta até à data do seu falecimento, em 1933. Há que ter em conta que uma consulta num hospital público desta natureza destinava-se a quem não podia pagar uma visita médica ao domicílio, expondo-se assim aos olhares da sociedade.
Entre 1882 e 1891, quando já era obrigatório que as prostitutas fossem matriculadas no Governo Civil, é possível verificar que, do total das 2316 inscritas, 688 se apresentavam como criadas de servir, logo seguidas das costureiras, passando as prostitutas a ser o dobro nos anos de 1892-1901 [14]. De notar que entre 1864 e o final do século as mulheres migravam mais que os homens, numa altura em que o país assistia a grandes deslocações internas de populações, fixando-se a maioria delas nas grandes cidades [15].
14. Clara Machado Ferreira, Costureiras de Lisboa: Artesãs da Moda (1890-1914), Tese de Mestrado, ISCTE, 2014, p.74.
15. Teresa Rodrigues Veiga, A População Portuguesa no Século XIX, Lisboa, Afrontamento, 2014, p. 129.
Num estudo que aborda a prostituição em Lisboa no início do século XX refere-se que entre 1902 e 1906 foram 1447 as «mulheres da vida» internadas no Hospital do Desterro, muitas delas por diversas vezes. A maioria era oriunda de Lisboa, habitando sobretudo as antigas freguesias da Encarnação e do Socorro. Havia também as que vinham da província, das ilhas e das colónias, predominando, entre as da metrópole, as oriundas de Viseu e, no caso do Ultramar, as que vinham de Luanda [16].
16. Cristiana Bastos e Rita Almeida de Carvalho, «Ai Mouraria! Da hospedaria ao hospital», in Clínica, Arte e Sociedade: A Sífilis no Hospital do Desterro e na Saúde Pública, pp. 158 a 160.
«Além das moléstias congeniaes há outras prostitutas, que pela côr da sua pele parece que devião repelir a aproximação d’hum Europeo, apesar disso ellas são procuradas.» (Francisco dos Santos Cruz, op. cit., 1841, p. 90.).
Nos registos das prostitutas de Lisboa do início do século XX surgiam também algumas estrangeiras, sobretudo espanholas da Galiza e da Andaluzia. Em 1926 eram já 2547 as matriculadas, continuando a maioria a ser lisboetas, seguindo-se as que vinham do Porto. As estrangeiras eram agora maioritariamente francesas. Nesta época continuavam a predominar as prostitutas que se inscreviam como criadas de servir (38 %) [17]. De facto, muitas das mulheres que chegavam a Lisboa ainda crianças para trabalhar como serviçais, dada a falta de condições de sustento nas suas terras de origem, eram facilmente abusadas pelos patrões e outros homens sem escrúpulos, caindo rapidamente nas redes da prostituição.
17. Azevedo Neves in Pecados à Flor da Pele, Lisboa, Ligrate-Atelier Gráfico, Lda., 2015, p.48.

As casas das meretrizes do Hospital do Desterro – um retrato de Lisboa (1871-2018)




Regulamento Policial das Meretrizes e Casas Toleradas da Cidade de Lisboa, publicado a 1 de Dezembro de 1865:
«Artigo 1º – São consideradas meretrizes todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição.
Artigo único – Há duas classes de meretrizes: 1.º As que vivem em comum e debaixo da direcção de uma dona de casa; 2.º As que vivem isoladamente em domicílio próprio.
Artigo 9º – É expressamente prohibido ás meretrizes: 1º habitar nas proximidades de templos, de colégios de educação e de jardins públicos;
Artigo 14º – As casas toleradas dividem-se em duas classes: 1º Casas toleradas onde as meretrizes têem domicilio fixo; Casas toleradas chamadas de passe, onde as meretrizes que vivem isoladas se entregam ao exercício da prostituição.
Artigo 18º – As donas de casa tolerada são obrigadas a ter as janelas guarnecidas de tabuinhas, ou de modo que o interior da casa não seja devassado.»
Foi sobretudo com base nos livros de consultas do antigo Hospital do Desterro de finais do século XIX e inícios do século XX, onde eram registados todos os doentes, a sua morada, ocupação profissional, características pessoais e doenças, que procurámos desvendar um pouco a vida de algumas das mulheres que utilizaram este edifício hoje tão abandonado. Quanto desespero, quanta esperança, quantas histórias de vida encerram estes espaços, hoje vazios de sentido, que aguardam um mais que provável uso comercial e turístico. Quem sabe, talvez sejam estas memórias, lembradas num belo mural convenientemente integrado numa qualquer cafetaria gourmet, que no futuro aqui se instale...
Da lista imensa de mulheres que frequentaram as consultas do Hospital do Desterro limitámo-nos a retirar informações sobre as que surgem registadas como meretrizes. Os breves apontamentos que recolhemos têm a força de, em breves palavras, nos trazerem à luz estas pessoas. Do conjunto total de registos escolhemos apenas cinco, cuja morada era legível, permitindo-nos assim revisitar as suas casas e observar o que entretanto lhes tinha acontecido. Estas visitas acabaram por nos fornecer também um excelente retrato do que actualmente se passa em Lisboa, tanto em termos da dita «reabilitação urbana» como, em certa medida também, em termos sociais. Cada casa tornou-se assim um caso único, captado pelas fotografias que aqui apresentamos. 

Casa de Francisca Gomes de Jesus
No ano de 1871 esteve na Enfermaria 24 a mulher de nome Francisca Gomes de Jesus, de 24 anos, constituição robusta e estatura regular. Solteira, meretriz registada com o nº 2648, exercia actividade na sua residência, na Rua das Portas de S. Antão, n.º 12, r/c. Era natural de Cedofeita, no Porto, e envergava, à data de internamento, um xaile, casaco, camisa, meias e botas. Sofria de sífilis, com placas mucosas nos grandes lábios da vulva.

Casa de Isabel Lino e Renes
No dia 4 de Fevereiro de 1871 foi recebida em consulta Isabel Lino e Renes, de 17 anos, solteira, meretriz com o nº 3606, natural de Sevilha, Espanha, moradora no Largo de S. Roque, nº 2. De temperamento sanguíneo, constituição regular, estatura mediana, apresentava escoriações na vulva.

Casa de Manuela Bárbara


Em 1871 foi atendida em consulta no Hospital do Desterro, Manuela Barbara, de 18 anos, filha de pais incógnitos, tendo sido exposta na roda do Alvor. Solteira e meretriz com o n.º 3536, vivia na Travessa do Pasteleiro, nº 57, 1º andar.

Casa de Maria Libéria


A 20 de Outubro de 1902 foi vista por Thomaz Mello Bryner, na consulta externa de moléstias sifilíticas e venéreas, Maria Libéria, de 11 anos de idade, inscrita como doméstica e vadia, sendo natural de Faro. Vivia na Rua da Mouraria, nº 38, 4º andar. O médico refere nas suas notas o seguinte: «Em tempos foi levada para uma escada por um homem que tentou desflorá-la.» Apresentava sífilis sem desfloramento. Recolheu à enfermaria Nossa Senhora da Piedade, tendo-lhe sido prescrito um tratamento de injecções de salicilato; saiu apenas um ano depois.

Casa de Maria Rosa


No dia 14 de Abril de 1905 Thomaz Mello Bryner viu em consulta Maria Rosa, com 16 anos de idade, ocupação doméstica e meretriz, natural de Mangualde e moradora na Rua da Amendoeira, nº 44 – loja. Sofria de sífilis, com placas mucosas, dores articulares, gânglios inguinais e cervicais. O tratamento prescrito foi de fricções mercuriais. O médico completa a informação escrevendo: «É matriculada, foi à Revista e della escapou!»


Maria Ramalho
Formada em História pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Arqueologia Medieval pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Como investigadora dedica-se sobretudo à Arqueologia da Arquitectura praticando, no entanto, uma deriva pessoal e apaixonada pelos legados do movimento Letrista e Situacionista, particularmente este último com interessantes ligações a Portugal.

Nota da autora
Este artigo é dedicado a Célia Pilão, que, com a sua generosidade tocante e contagiante, me revelou o património excepcional da Colina de Sant’Ana e dos seus hospitais.

Nota da edição
Este artigo foi originalmente publicado na Revista Flauta nº6. As fotos são da autora, salvo outra indicação.

Imagens
1. Convento-Hospital do Desterro
2. A reabilitação do bairro da Mouraria.
3. Debandada geral no bairro da Mouraria.
4. Fachada da antiga igreja conventual, adaptada em 1930 como entrada principal do Hospital do Desterro. Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
5. Hospital do Desterro após o fecho, podendo ver-se a estrutura original do velho Mosteiro. Foto de Carlos Carvalho.
6.  Figuras de cera de mulheres sifilíticas do Hospital do Desterro (colecção Sá Penella, Museu do Hospital dos Capuchos).
7. A sífilis e a prostituição segundo um folheto da Direcção-Geral de Saúde da década de 1930.

Ficha Técnica
Data de publicação: 15.01.2020
Edição #26 • Inverno 2020 •