Ainda no contexto do debate sobre os estágios
não-remunerados (ver a primeira parte deste artigo) não deixa de ser paradigmática a afirmação de um
designer, Karim Rashid,
ao dizer que os estágios não remunerados têm mais valor que a exploração
desencadeada pelos cursos universitários e que um aluno poderia aprender mais aí
do que numa faculdade. Paradigmático porque é revelador do lugar ambíguo em que
as universidades – e, particularmente,
as faculdades de arquitectura – se colocaram ao assumirem uma progressiva
profissionalização das suas práticas pedagógicas. E não se trata, apenas, da
empresarialização da universidade – que precariza todas as suas estruturas e
faz da competitividade e da quantidade o seu lema – mas de currículos que são
totalmente construídos à imagem do mercado. Currículos que apostam, sobretudo,
numa aquisição intensiva de competências técnicas-tecnocráticas, simulando na
sala de aula a experiência total do escritório de arquitectura e as condições
específicas do mercado e, por isso, dirigindo o estudante para os mecanismos e
técnicas operativas da concretização da «solução»: seguindo modelos, códigos,
protocolos, apriorísticos e burocratizados, perdidos na lonjura do tempo, ainda
que ornamentados, aqui e ali, por um ou outro gesto «poético», uma ou outra
«história».
A desvalorização generalizada, um pouco por todo o
lado, dos currículos e das cadeiras ligadas à teoria e aos espaços não
produtivos da instrução crítica e da reflexão – veja-se o exemplo do fim
progressivo das dissertações de final de curso de teor mais reflexivo/teórico e
o predomínio de exercícios que mimetizam e simulam operações «reais» de
projecto com as suas «memórias descritivas» – não tem apenas o custo de
produzir um tipo de aluno e um tipo de arquitecto, para quem a arquitectura só
pode ser um exercício individual e privado, sem qualquer dimensão disciplinar e
comum – como escrevi num pequeno ensaio chamado «Arquitectura e “pessimismo”».
Mas terá ainda o custo – cuja ironia se paga a dobrar – de esvaziar de sentido
as próprias escolas de arquitectura. Na verdade, para que pode servir uma
escola se a sua formação é meramente técnica e está virada exclusivamente para
as exigências específicas e directas do mercado? Para que pode servir uma
escola se esta é, apenas, um estágio, um pré-escritório, uma simulação
«pragmática» e «realista» da profissão? Para que preciso da escola (e de pagar
a escola) se, afinal, posso bem aprender num escritório? É esta a contradição
ou, melhor, a condição limite do modelo neoliberal universitário cuja utopia
realizável assenta na morte da própria universidade.
A precipitação obsessiva na vida profissional que,
hoje, mobiliza cada vez mais o estudante preso à dívida sempre presente da
propina é, ela própria, uma forma de precarização: não apenas naquilo que diz
respeito às mais directas condições materiais de vida, mas porque a propina –
enquanto dispositivo de exploração e de controlo – obriga o estudante a
calcular, a contabilizar e a dirigir o seu tempo precioso apenas para aquilo que
lhe pode ser directamente útil, enquanto saber, ou melhor, know how, aplicado e aplicável.
Mas, ao mesmo tempo, prevalece toda uma ideia na qual
a arquitectura se aprende verdadeiramente em escritório, o que não passa da
imagem desgastada de uma outrora profícua relação entre atelier e escola – mobilizada
a partir de outros pressupostos e num ambiente político muito diferente – que,
hoje, não existe. E, portanto, um mito que é, na verdade, uma força
profissionalizante e mercantilizadora inerente à máquina escolar neoliberal
que, em nome da experiência e da promessa da «prática» e da «profissão», remete
o estudante para o espaço homogéneo e sem
qualidades do trabalho: fazendo da escola já não uma machine à habiter – para usar e subverter a célebre expressão de
Corbusier –, mas antes, uma machine à travailler. Uma máquina que
transforma a sala de aula em escritório, o projecto em solução, a vida de
estudante em vida de trabalho ou, nas palavras de Anne Querrien, que
«transforma o desejo de saber, em obrigação de desejar trabalhar». E, como escrevia
Walter Benjamin: «Antevendo coisas terríveis, Marx respondera já que o ser
humano que não possua outra riqueza a não ser a força de trabalho “será
necessariamente escravo dos outros seres humanos, os que se transformaram em
proprietários”».
•
Nota da edição
«Machines à
travailler (2): Arquitectura, habitação, escola» é um artigo publicado em
duas partes. Para ler a primeira parte do artigo seguir este link.
Ficha Técnica
Data de publicação: 01.05.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •
Pedro Levi
Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, assistente convidado na FAUP e investigador
no CEAU.