Machines à travailler (2): arquitectura, habitação, escola • Pedro Levi Bismarck





Ainda no contexto do debate sobre os estágios não-remunerados (ver a primeira parte deste artigo) não deixa de ser paradigmática a afirmação de um designer, Karim Rashid, ao dizer que os estágios não remunerados têm mais valor que a exploração desencadeada pelos cursos universitários e que um aluno poderia aprender mais aí do que numa faculdade. Paradigmático porque é revelador do lugar ambíguo em que as universidades –  e, particularmente, as faculdades de arquitectura – se colocaram ao assumirem uma progressiva profissionalização das suas práticas pedagógicas. E não se trata, apenas, da empresarialização da universidade – que precariza todas as suas estruturas e faz da competitividade e da quantidade o seu lema – mas de currículos que são totalmente construídos à imagem do mercado. Currículos que apostam, sobretudo, numa aquisição intensiva de competências técnicas-tecnocráticas, simulando na sala de aula a experiência total do escritório de arquitectura e as condições específicas do mercado e, por isso, dirigindo o estudante para os mecanismos e técnicas operativas da concretização da «solução»: seguindo modelos, códigos, protocolos, apriorísticos e burocratizados, perdidos na lonjura do tempo, ainda que ornamentados, aqui e ali, por um ou outro gesto «poético», uma ou outra «história».

A desvalorização generalizada, um pouco por todo o lado, dos currículos e das cadeiras ligadas à teoria e aos espaços não produtivos da instrução crítica e da reflexão – veja-se o exemplo do fim progressivo das dissertações de final de curso de teor mais reflexivo/teórico e o predomínio de exercícios que mimetizam e simulam operações «reais» de projecto com as suas «memórias descritivas» – não tem apenas o custo de produzir um tipo de aluno e um tipo de arquitecto, para quem a arquitectura só pode ser um exercício individual e privado, sem qualquer dimensão disciplinar e comum – como escrevi num pequeno ensaio chamado «Arquitectura e “pessimismo”». Mas terá ainda o custo – cuja ironia se paga a dobrar – de esvaziar de sentido as próprias escolas de arquitectura. Na verdade, para que pode servir uma escola se a sua formação é meramente técnica e está virada exclusivamente para as exigências específicas e directas do mercado? Para que pode servir uma escola se esta é, apenas, um estágio, um pré-escritório, uma simulação «pragmática» e «realista» da profissão? Para que preciso da escola (e de pagar a escola) se, afinal, posso bem aprender num escritório? É esta a contradição ou, melhor, a condição limite do modelo neoliberal universitário cuja utopia realizável assenta na morte da própria universidade.

A precipitação obsessiva na vida profissional que, hoje, mobiliza cada vez mais o estudante preso à dívida sempre presente da propina é, ela própria, uma forma de precarização: não apenas naquilo que diz respeito às mais directas condições materiais de vida, mas porque a propina – enquanto dispositivo de exploração e de controlo – obriga o estudante a calcular, a contabilizar e a dirigir o seu tempo precioso apenas para aquilo que lhe pode ser directamente útil, enquanto saber, ou melhor, know how, aplicado e aplicável.

Mas, ao mesmo tempo, prevalece toda uma ideia na qual a arquitectura se aprende verdadeiramente em escritório, o que não passa da imagem desgastada de uma outrora profícua relação entre atelier e escola – mobilizada a partir de outros pressupostos e num ambiente político muito diferente – que, hoje, não existe. E, portanto, um mito que é, na verdade, uma força profissionalizante e mercantilizadora inerente à máquina escolar neoliberal que, em nome da experiência e da promessa da «prática» e da «profissão», remete o estudante para o espaço homogéneo e sem qualidades do trabalho: fazendo da escola já não uma machine à habiter – para usar e subverter a célebre expressão de Corbusier –, mas antes, uma machine à travailler. Uma máquina que transforma a sala de aula em escritório, o projecto em solução, a vida de estudante em vida de trabalho ou, nas palavras de Anne Querrien, que «transforma o desejo de saber, em obrigação de desejar trabalhar». E, como escrevia Walter Benjamin: «Antevendo coisas terríveis, Marx respondera já que o ser humano que não possua outra riqueza a não ser a força de trabalho “será necessariamente escravo dos outros seres humanos, os que se transformaram em proprietários”».


Nota da edição
«Machines à travailler (2): Arquitectura, habitação, escola» é um artigo publicado em duas partes. Para ler a primeira parte do artigo seguir este link.

Ficha Técnica
Data de publicação: 01.05.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, assistente convidado na FAUP e investigador no CEAU.