Machines à travailler (1): arquitectura, habitação, escola • Pedro Levi Bismarck






A notícia que o arquitecto japonês Junya Ishigami, autor do Pavilhão da Serpentine, este ano, recorria a estagiários não remunerados no seu escritório, desencadeou, nas últimas semanas, um amplo movimento, chamado #archislaver, isto, num país, o Reino Unido, onde todos os escritórios registados no RIBA são obrigados a pagar o ordenado mínimo aos seus colaboradores. Para além de pedir um extenso levantamento de casos, o movimento exigia igualmente que «encomendas de prestígio não fossem entregues a arquitectos que não paguem aos seus estagiários»

Entre os vários artigos publicados na plataforma dezeen, que acompanhou e destacou a discussão, está um artigo que anuncia o fim dos estágios não remunerados no Elemental, de Alejandro Aravena: «Elemental ends internships amid growing row over unpaid work in architecture studios».  O gesto mais interessante deste pequeno artigo está definitivamente na escolha da imagem, neste caso, do projecto de habitação social para a Quinta Monroy, acompanhado pela legenda: «Elemental are renowned for their socially conscious projects such as the Quinta Monroy Housing project». Não se trata, aqui, apenas, da contradição evidente que é fazer «projectos socialmente conscientes» com mão de obra gratuita (afinal, como é que um projecto que institui no seu processo relações sociais e laborais de exploração pode, sequer, reivindicar-se «socialmente consciente»?), mas porque, na verdade, os habitantes da Quinta Monroy e os estagiários não-remunerados do Elemental partilham uma mesma condição.

Ora, se ao estagiário não-remunerado cabe o encargo de se financiar fora do trabalho que ele próprio produz, também ao habitante cabe o ónus de encontrar os meios de financiamento que o permitam concluir a sua habitação fora do projecto original. Esta operação legitima, assim, uma dupla exploração, a do estagiário e a do habitante, transformando-os em sujeitos não-remunerados colocados à mercê do mercado de trabalho. A «força do projecto», que é uma verdadeira machine à travailler – invocando e subvertendo a célebre fórmula de Corbusier «une maison est une machine à habiter» –, está, precisamente, na habilidade em gerir as fronteiras da não-remuneração, enquanto define modos próprios de generalizar outros processos de não-remuneração, isto é, de precariedade e despossessão: através do escritório e da habitação.

Nesse sentido, não deixa de ser trágico que aquilo que a Quinta Monroy dá em espaço é também aquilo que tira em tempo: o espaço vazio das casas – frequentemente celebrado como gesto de generosidade – transforma-se, assim, imediatamente, em tempo de trabalho que o habitante precisa de despender para financiar a conclusão da casa. O lote semi-vazio parece dar a promessa de (mais) espaço e de (mais) vida, mas aquilo que ele oferece é, na verdade, (mais) tempo de trabalho: vida sem qualidade ao serviço do trabalho e da sua infinita subsistência. Um pouco como naquele célebre filme de John Carpenter, «They live», onde escondido por detrás das brilhantes promessas de felicidade de cada casa estaria escrito, a preto e branco, como num outdoor gigante, a injunção: «Trabalha!».

Mas também o estagiário – tal como o habitante – está inexoravelmente capturado pela hábil economia da promessa. O seu sonho de autonomia e emancipação na sua formação de arquitecto é convertido, imediatamente, em mecanismo de exploração e precarização laboral, legitimado pela «experiência», pelo «intercâmbio» e por uma acção ao serviço do «bem comum». E, assim, institui-se e reproduz-se uma lógica de exploração que é, ainda, exportada para outros arquitectos, projectos e gabinetes, ao mesmo tempo que se vende e legitima esta arquitectura como «socialmente consciente», servindo, justamente, para lavar as más consciências humanistas e filantrópicas do circuito comercial e celebratório dos Pritzkers e das Bienais.

Do mesmo modo, na Quinta Monroy a memória de experiências de habitação social participadas e públicas do passado são usadas para legitimar uma operação marcadamente neoliberal de produção de habitação e de cidade – em condições em que a incapacidade de intervenção do Estado em gerar e mediar estes processos é óbvia. E isto não apenas, como vimos, porque este processo faz de cada habitante um empreendedor – um empresário de si mesmo – definitivamente inscrito nas leis do mercado (de trabalho), que em formato do it yourself é obrigado a adquirir os meios próprios para terminar a sua casa, mas porque se institui uma lógica absoluta de privatização da casa. Por um lado, porque a habitação não é assumida como um direito social, básico e fundamental, mas como um «direito» que tem que ser arduamente «conquistado» ou «merecido» através do trabalho de cada um; por outro lado, porque a individualização do processo de produção de habitação acaba por generalizar e trazer a lógica do mercado e da competitividade para dentro de casa e para dentro do bairro. Algo atestado pelos próprios moradores e vizinhos que chamam a atenção para a erosão de todos os espaços e todos os sentidos de comum, num bairro que, afinal de contas, reproduz simplesmente a ocupação desigualitária e especulativa do espaço urbano à sua volta, assim como a extrema desintegração e individualização da própria cidade – na emergência de uma classe média fechada nos seus próprios circuitos de ascensão social.

Mas o mesmo poderia ser ainda dito sobre o estagiário-arquitecto. Pois, este não só interioriza a lógica da sua própria auto-exploração (que será ainda a exploração dos outros), como interioriza plenamente a lógica desigualitária e privatizadora da produção urbana neoliberal, ao mesmo tempo que se deixa fechar nos seus próprios circuitos de ascensão social e produção disciplinar.


Nota da edição
«Machines à travailler (1): Arquitectura, habitação, escola» é um artigo publicado em duas partes. Brevemente estará disponível a segunda parte.

Ficha Técnica
Data de publicação: 04.04.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •

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Via Dezeen

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, assistente convidado na FAUP e investigador no CEAU.