A notícia que o
arquitecto japonês Junya Ishigami, autor do Pavilhão da Serpentine, este ano, recorria
a estagiários não remunerados no seu escritório, desencadeou, nas últimas
semanas, um amplo movimento, chamado #archislaver,
isto, num país, o Reino Unido, onde todos os escritórios registados no RIBA são
obrigados a pagar o ordenado mínimo aos seus colaboradores. Para além de pedir
um extenso levantamento de casos, o movimento exigia igualmente que «encomendas
de prestígio não fossem entregues a arquitectos que não paguem aos seus
estagiários»
Entre os vários artigos
publicados na plataforma dezeen, que acompanhou e destacou a discussão, está um
artigo que anuncia o fim dos estágios não remunerados no Elemental, de
Alejandro Aravena: «Elemental ends
internships amid growing row over unpaid work in architecture studios». O gesto mais
interessante deste pequeno artigo está definitivamente na escolha da imagem,
neste caso, do projecto de habitação social para a Quinta Monroy, acompanhado
pela legenda: «Elemental are renowned for
their socially conscious projects such as the Quinta Monroy Housing project». Não se trata, aqui, apenas, da contradição evidente que é fazer «projectos
socialmente conscientes» com mão de obra gratuita (afinal, como é que um
projecto que institui no seu processo relações sociais e laborais de exploração
pode, sequer, reivindicar-se «socialmente consciente»?), mas porque, na
verdade, os habitantes da Quinta Monroy e os estagiários não-remunerados do
Elemental partilham uma mesma condição.
Ora, se ao estagiário
não-remunerado cabe o encargo de se financiar fora do trabalho que ele próprio
produz, também ao habitante cabe o ónus de encontrar os meios de financiamento
que o permitam concluir a sua habitação fora do projecto original. Esta
operação legitima, assim, uma dupla exploração, a do estagiário e a do
habitante, transformando-os em sujeitos não-remunerados colocados à mercê do
mercado de trabalho. A «força do projecto», que é uma verdadeira machine à travailler – invocando e
subvertendo a célebre fórmula de Corbusier «une maison est une machine à
habiter» –, está, precisamente, na habilidade em gerir as fronteiras da não-remuneração,
enquanto define modos próprios de generalizar outros processos de não-remuneração,
isto é, de precariedade e despossessão: através do escritório e da habitação.
Nesse sentido, não deixa
de ser trágico que aquilo que a Quinta Monroy dá em espaço é também aquilo que
tira em tempo: o espaço vazio das
casas – frequentemente celebrado como gesto de generosidade – transforma-se,
assim, imediatamente, em tempo de trabalho que o habitante precisa de despender
para financiar a conclusão da casa. O lote semi-vazio parece dar a promessa de
(mais) espaço e de (mais) vida, mas aquilo que ele oferece é, na verdade, (mais)
tempo de trabalho: vida sem qualidade ao serviço do trabalho e da sua infinita
subsistência. Um pouco como naquele célebre filme de John Carpenter, «They
live», onde escondido por detrás das brilhantes promessas de felicidade de cada
casa estaria escrito, a preto e branco, como num outdoor gigante, a injunção:
«Trabalha!».
Mas também o estagiário
– tal como o habitante – está inexoravelmente capturado pela hábil economia da
promessa. O seu sonho de autonomia e emancipação na sua formação de arquitecto
é convertido, imediatamente, em mecanismo de exploração e precarização laboral,
legitimado pela «experiência», pelo «intercâmbio» e por uma acção ao serviço do
«bem comum». E, assim, institui-se e reproduz-se uma lógica de exploração que
é, ainda, exportada para outros arquitectos, projectos e gabinetes, ao mesmo
tempo que se vende e legitima esta arquitectura como «socialmente consciente»,
servindo, justamente, para lavar as más consciências humanistas e filantrópicas
do circuito comercial e celebratório dos Pritzkers e das Bienais.
Do mesmo modo, na Quinta
Monroy a memória de experiências de habitação social participadas e públicas do
passado são usadas para legitimar uma operação marcadamente neoliberal de produção
de habitação e de cidade – em condições em que a incapacidade de intervenção do
Estado em gerar e mediar estes processos é óbvia. E isto não apenas, como
vimos, porque este processo faz de cada habitante um empreendedor – um
empresário de si mesmo – definitivamente inscrito nas leis do mercado (de
trabalho), que em formato do it yourself
é obrigado a adquirir os meios próprios para terminar a sua casa, mas porque se
institui uma lógica absoluta de privatização da casa. Por um lado, porque a
habitação não é assumida como um direito social, básico e fundamental, mas como
um «direito» que tem que ser arduamente «conquistado» ou «merecido» através do
trabalho de cada um; por outro lado, porque a individualização do processo de
produção de habitação acaba por generalizar e trazer a lógica do mercado e da
competitividade para dentro de casa e para dentro do bairro. Algo atestado
pelos próprios moradores e vizinhos que chamam a atenção para a erosão de todos
os espaços e todos os sentidos de comum, num bairro que, afinal de contas,
reproduz simplesmente a ocupação desigualitária e especulativa do espaço urbano
à sua volta, assim como a extrema desintegração e individualização da própria
cidade – na emergência de uma classe média fechada nos seus próprios circuitos
de ascensão social.
Mas o mesmo poderia ser
ainda dito sobre o estagiário-arquitecto. Pois, este não só interioriza a
lógica da sua própria auto-exploração (que será ainda a exploração dos outros),
como interioriza plenamente a lógica desigualitária e privatizadora da produção
urbana neoliberal, ao mesmo tempo que se deixa fechar nos seus próprios
circuitos de ascensão social e produção disciplinar.
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Nota da edição
«Machines à
travailler (1): Arquitectura, habitação, escola» é um artigo publicado em
duas partes. Brevemente estará disponível a segunda parte.
Ficha Técnica
Data de publicação: 04.04.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •
Imagem
Pedro Levi
Bismarck
Editor do Jornal Punkto, arquitecto, assistente convidado na FAUP e investigador
no CEAU.