A atribuição de
um prémio não costuma merecer grande comentário para além das devidas
felicitações ao vencedor. Contudo, a primeira edição do Prémio de Design de Livro promovido pela DGLAB e anunciado em 27 de
Julho de 2018 seleccionou um conjunto de 20 dos 195 concorrentes para
representarem Portugal na competição internacional Best Book Design from all over the world a estarem expostos em
Leipzig e na feira do livro de Frankfurt. Vinte é um número representativo que
permite identificar na escolha do júri um padrão coeso sobre edição e produção
de livros, tal como se pode verificar no quadro anexo – que demorou cerca de
dois meses a completar e requereu consultas a várias livrarias, atelieres e
bibliotecas.
Observando
os seleccionados do ponto de vista artefactual, eles apresentam características
que são mais apropriadas para uma galeria do que para uma estante de uma
livraria [1], visto que demonstram uma maior enfâse no lado
matérico, táctil e lúdico do livro, em detrimento da normalização utilitarista
que é promovida pelo mercado livreiro – facto que se torna mais evidente nos
casos onde não existe ou se oculta a lombada. Do ponto de vista do cânone
gráfico livreiro e tendo em conta os seus indicadores mínimos para o
reconhecimento de uma capa – a sinalização do título e do autor –, o conjunto
apresenta uma timidez crónica, que se traduz pela primazia dada à imagem ou ao
espaço vazio. Na maioria dos casos o título está relativamente pequeno em
relação à dimensão da capa, não alcançando dez por cento da altura do formato,
e quatro deles não têm qualquer informação, ou esta encontra-se encoberta pela
sobrecapa. Se esta opção pode parecer contraproducente como prática comercial,
ela de facto torna-se irrelevante, tendo em conta que apenas três livros têm
distribuição alargada, dezasseis encontram-se apenas nos sites das editoras ou
pontualmente em livrarias especializadas e um não tem qualquer distribuição.
1. Em boa verdade são livros que parecem ter sido desenhados
para livrarias que parecem galerias, como a Printed Matter em Nova Iorque,
Other Books and So em Amsterdão, a Motto em Berlim ou mesmo a STET em Lisboa.
Quadro: listagem
técnica dos 20 seleccionados do Prémio de
Design de Livro DGLAB 2018 (clicar para aumentar imagem)
O coerente
desinteresse que este conjunto parece demonstrar pelas práticas comuns do
mercado livreiro e o relevo que é dado à tridimensionalidade e à produção
gráfica, poderá significar que nos encontramos perante um movimento de
vanguarda. A existir este vanguardismo é decididamente técnico e matérico, como
podemos constatar nas palavras do júri:
«De forma
simples e elegante, com uma encadernação que surpreende, a cuidadosa escolha de
materiais ajuda a distinguir os diferentes conteúdos e perspectivas[.]» – sobre
Composição em Tempo Real: Anatomia de uma decisão; e «[…] uma forma
aparentemente sólida num paralelepípedo de papel espesso, e usa a página em
branco como espaço onde imagem e texto coabitam de forma lúdica. Cuidadosamente
impresso em técnicas tradicionais, culmina numa encadernação contemporânea, com
bons acabamentos.» – sobre Fiapo.
2. http://dglab.gov.pt/premio-design-de-livro/
Esta preocupação
com os acabamentos é transversal ao corpo de seleccionados e faz com que
somente quatro dos vinte livros tenham capa mole, sejam brochados e colados com
vinco à francesa – o códice convencional, que é o formato menos oneroso no que
toca à produção de livros com lombada.
O livro-objecto
é um projecto de vanguarda com pelo menos cem anos – um género que remonta a
Mallarmé e aos futuristas russos, mas que reaparece em força nos anos sessenta
do século xx – que aparenta ter alcançado o seu zénite no seu reconhecimento
como livro de artista. A definição de livro de artista é bastante permeável e
flexível, contudo, a autorreflexividade crítica da condição de ser livro, um
livro que expressa reconhecimento e problematiza a sua própria materialidade, é
uma característica que pode ser transversal dentro desta categoria. O
livro-objecto pode ser um tipo de livro de artista que expressa uma
reflexividade sobre a sua tridimensionalidade, a sua presença artefactual.
Todavia, é necessário ter em conta que não se trata de condicionar o género a
objectos exclusivos com impressão e acabamentos luxuosos, como o livre d’artiste do início do século xx, mas
considerar que o livro de artista também pode ser um múltiplo com um preço
equiparável a um livro de grande distribuição. Foi com este intuito que George
Maciunas produziu livros de artista na sua Fluxshop no Lower East Side de Nova
Iorque. No entanto, e à revelia do fracasso comercial demonstrado pelo projecto
de Maciunas, o livro de artista foi sendo integrado dentro do meio e do
discurso artístico como um objecto de culto, especializado e de acesso difícil.
Este
conjunto de seleccionados, com excepção dos três casos com distribuição
alargada e das obras institucionais, padecem do mesmo problema. Contudo, eles
não são livros de artista no seu sentido pleno, e o que os distingue prende-se
com o contexto em que estão inseridos e a pluralidade autoral que ostentam.
Para um livro poder ser considerado de artista, ele tem que, de alguma forma e
por desígnio de alguém, querer ser um objecto artístico ou ser reconhecido como
tal; ele precisa de ser enquadrado dentro do campo. Enquanto alguns dos livros
deste conjunto denotam uma pretensão clara para a inserção dentro do campo da
arte, eles não chegam a pertencer ao campo, pois possuem também uma presença,
ainda que reduzida, dentro do mercado editorial não especializado, o que
potencia a sua normalização como mercadoria [3]. Esta condição só
se resolverá no momento em que forem incluídos num acto expositivo ou se
tornarem quase inacessíveis e esgotarem – a raridade faz despontar outros
tantos estados no mercado…
3. Se observarmos o processo utilizado por Johanna Drucker em The Century of Artists’ Books como uma
unidade metodológica, há um processo de post
factum na constituição daquilo do que é um livro de artista que está
parcialmente ligado ao tipo de fetiche associado à mercadoria, no sentido em
que muitos livros eram apenas livros antes de serem livros de artista.
A pluralidade
autoral deve-se ao facto de editores, designers e autores (os devidamente
creditados) exercerem uma influência directa no processo criativo do
livro-objecto. Esta pode ser encarada como uma partilha onde confluem ou
contrastam várias autorias. Todavia, havendo uma incidência tão clara na forma
e na matéria, o design sobressai como uma presença destacada, contrariando
deste modo a cartilha disciplinar tão dilecta do modernismo: a invisibilidade.
A presença do design e da edição como personagens autorais é legitimada por
este prémio ao privilegiar a forma do livro e a predominância de conteúdo
visual em detrimento de conteúdo textual. A maior parte dos exemplares, com
excepção de Ana / Propósito / Purpose
[4] e Matter
Fictions, são desenvolvidos a partir de uma presença forte da fotografia ou
do desenho, possuindo percentagens reduzidas de texto, o que potencia uma maior
margem de acção para o designer e editor.
4. Ainda que neste caso, e atentando às palavras do júri, o
texto acabe por ser tratado como uma mancha gráfica ou uma imagem: «apresenta
um jogo rigoroso entre forma e conteúdo, definido a partir da letra A. Através da variação de escalas e
ritmos da própria trama da letra, o grafismo impõe uma leitura absoluta, em
contra fibra.»
Tridimensionalidade
e bidimensionalidade na apresentação dos resultados do Prémio de Design de Livro 2017 e do 50 Books | 50 Covers
selections.
Ao
compararmos o Prémio de Design de Livro
com outros galardões como o prémio AIGA (American Institute of Graphic Arts)
2017, 50 Books | 50 Covers selections, e o Best
Book Design from all over the world 2017 encontramos algumas parecenças nos
critérios e resultados, mas também dissemelhanças relevantes. O prémio AIGA faz
uma abordagem parcimoniosa ao separar a apreciação em duas categorias: a capa e
o livro (o objecto como um todo). Dentro da edição de mercado alargado é um
hábito comum não haver qualquer ligação entre o capista e o paginador, facto
que só recentemente foi ultrapassado com a possibilidade de aglomeração de todo
o trabalho numa só ferramenta e num só operador – o computador pessoal e o
designer. Contudo, as maiores editoras continuam a ter equipas de paginação que
trabalham separadamente dos capistas, o que demonstra a persistência da
produtividade e rentabilidade fordista no design editorial.[5] Quando as
editoras maiores como a Penguin fazem reedições com novas capas, inclusive
quando existe uma espécie de curadoria de designers-autor, tentam salvaguardar
que o miolo do livro persista, reutilizando-o, mesmo que a edição original
preceda trinta ou quarenta anos da nova versão.[6] É normal que a
AIGA, que tem pretensões generalistas mas que cobra pela participação no
prémio, continue a separar a capa da ideia do livro como um todo, mas se
olharmos às escolhas para os 50 Books
a ideia e forma de códice encadernado convencional perdura no conjunto. O
critério de diferenciação entre os 50
Books faz-se dentro da bidimensionalidade do plano impresso e de acordo com
o aspecto gráfico dos seleccionados, que se verifica pela predominância de
imagens simuladas em prejuízo de fotografias reais dos livros, enquanto que no Prémio de Design de Livro se dá um maior
relevo à matéria e à tridimensionalidade lúdica do livro.
5. Apesar do relevo
dado ao Fordismo pela linha de montagem e divisão do trabalho, esta última
precede-o e segue propósitos organizativos antes de estes serem tecnológicos. No limite poder-se-ia dizer que o designer surge deste
processo de divisão: «The change was not primarily one of technology, but of
organization, as in Josiah Wedgwood's reorganization of his pottery factories
in the early eighteenth century. Whereas in the past a single skilled potter
cast each entire pot, now the task was divided into discrete phases, each
allotted to a different worker. One of these was a Designer: Wedgwood hired
artists to create the patterns and forms for his different lines of pottery». (Parsons,
2016)
6. O que é economicamente rentável tendo em conta a facilidade
com que se faz um fac-símile nos dias de hoje.
Os premiados do Prémio de Design de Livro são
decididamente mais próximos, em critério e em género, dos premiados do Best Book Design from all over the world
de 2017. Dos quatro primeiros galardoados todos seguem o formato e encadernação
do códice convencional, mas apenas o livro Bugs’
Book aparenta ter uma distribuição mais alargada, e Palimpsest parece não existir para venda ao público. O livro
vencedor, Ornithology, possui a mesma
tensão autoral entre os intervenientes, uma dupla de artistas e um designer,
mas os livros Palimpsest, Bugs’ Book e Withheld due to: são desenhados pelos próprios autores. Este será
seguramente o passo seguinte para a vanguarda do livro-objecto: a fusão
simbiótica entre o designer e o autor – como já fora anunciada por Stefan
Sagmeister e outros designers estrela,
mas neste caso o conteúdo não se limita a um repositório egocêntrico do
trabalho comercial do criativo representado.
Uma
vez estabelecido um padrão de relações entre os eleitos para o prémio, será que
este espírito vanguardista seria transponível para a edição com maior
distribuição? Considerando que o investimento em livros é de retorno lento, os
livros não se vendem, vão-se vendendo, e que as livrarias fazem devoluções
regulares de produtos (muitos deles manuseados e danificados), uma editora com
distribuição alargada dificilmente conseguiria suportar livros com estas
características, seja pela fragilidade dos materiais, seja pelas baixas
tiragens. O peso que a produção gráfica tem no preço final também dificulta a
edição destes livros. Um livro com um preço unitário alto só consegue, dentro
de limites, reduzir o seu custo aumentando a tiragem, o que por sua vez aumenta
o custo total de produção. Porém, os livros eleitos para este prémio atentam
sobretudo ao valor total de produção e a tiragens reduzidas, porque, ou possuem
um público especializado que valoriza a exclusividade e compreende o
funcionamento de mercado de segunda mão, ou têm apoios dedicados para a
produção – que tornam o seu custo quase irrelevante para o preço final. O custo
de um livro de distribuição alargada possui uma relação directa com o preço por
unidade que se multiplica por x ou y, dependendo do volume de custos
associados, direitos, tradução, etc. e do ritmo a que ele é escoado para o
mercado. Um livro sem especial procura tem pouco mais de um mês de exposição
como novidade numa livraria maior, e só terá pago o seu custo de produção
gráfica vendendo cerca de um terço da edição. Este custo só será superado num
prazo de seis meses a um ano, seguindo um ritmo de regular de vendas, e só
alcançará o break even entre um a
três anos [7] – isto tendo em conta que o seu valor de
capa pode ser reduzido ao fim de 18 meses. Para além desta panóplia de
entraves, não é acidental que os livros deste grupo não possuam distribuição ou
presença em livrarias generalistas, uma vez que metade do p.v.p. ficaria, por
norma, aí retido. Sem fazer uma contabilidade rigorosa podemos especular que,
para a vanguarda do livro-objecto poder ser produzida por editoras com presença
no mercado nacional livreiro, a tiragem e o preço teria que subir – na maior
parte dos casos, para duas, três ou quatro vezes o seu valor actual.
7. Valores relativos e proporções aproximadas, servem apenas
para indicação comparativa.
No
entanto, também podemos reconhecer que este conjunto de eleitos desponta dentro
de uma economia própria, a economia pós-digital. Se é certo que existe uma
ênfase na manualidade do livro-objecto, ela só é possível porque uma boa parte
dos custos e do tempo da pré-produção foram substituídos pelo processamento
digital DIY. O designer autónomo, que produz um livro de fio a pavio num espaço
de tempo menor, consegue antecipar e prever os resultados da sua produção nos
vários meios de impressão. Na economia pós-digital é possível cruzar risografia
com impressão offset, serigrafia com impressão digital, gravação a quente
automatizada com tipos de chumbo, porque existe um ambiente digital que é
transversal e une todos os media [8]. Este cenário
retro-futurista está impregnado de uma gestão individualizada de meios digitais
que é aplicada numa produção industrializada, em contínua modernização, que
trabalha de mãos dadas com a actividade mais artesanal para desenvolver
múltiplos matéricos e lúdicos.
8. E um parceiro de produção: repare-se que a Gráfica Maiadouro
é responsável por imprimir 7 dos 20 projectos.
Designers e
artistas não são os únicos agentes que se inserem nesta economia pós-digital. É
também relevante considerar que existem autores que tiram partido das
possibilidades do livro-objecto em ambiente pós-digital, seja por efeito de bookishness, uma fetichização estética do
artefacto em detrimento da sua função comunicativa, seja pela escrita realizada
através ferramentas gráficas de composição, como faz Mark Danielewski. A
editora Visual Editions tenta
igualmente introduzir esta forma de pensar o livro na edição com distribuição
alargada, ao reeditar The Life and
Opinions of Tristram Shandy, Gentleman com recurso a uma panóplia de
acabamentos intrincados e luxuosos.
A selecção do Prémio de Design de Livro apresenta
alguns sinais vanguardistas, que resultam desta produção em ambiente
pós-digital, mas, a existir, ela é tendencialmente invisível, porque de momento
o mais difícil é mesmo saber onde a encontrar.
•
Referências
Cramer, Florian (2012), Post-Digital Writing. Visitado em 31 de Agosto de 2018, http://electronicbookreview.com/essay/post-digital-writing/.
Drucker, Johanna. (2004), The Century of Artists’ Books. New York: Granary Books.
Hatherly, Ana, e
Castro, E.M. de Melo e (1975), “A Reinvenção da Leitura”. In Po.Ex : textos teóricos e documentos da poesia
experimental portuguesa.
Parsons, Glenn (2016), The Philosophy of Design. Cambridge: Polity. E-book.
Nota da edição
O texto foi
publicado como «A Vanguarda Invisível do Livro-objecto. Prémio de Design de
Livro DGLAB 2018» na MATLIT. Materialities
of Literature, Vol 6 No 3 (2018): Electronic Literature: Translations.
Ficha Técnica
Data de
publicação: 24.04.2019
Edição #23 •
Primavera 2019 •
Imagem de capa
Composição em Tempo
Real: Anatomia de uma decisão
Rui Silva
Designer gráfico. Licenciou-se na
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto em 2005, onde desaprendeu
quase tudo e cultivou o fascínio por tudo o resto. Iniciou, nesse mesmo ano, o
projeto www.alfaiataria.org com o propósito de fazer
corte-e-cose gráfico pelo mundo fora. Desde 2007 que tem o prazer de desenhar
livros para editoras como a Antígona, a Orfeu Negro e a Dafne. Sofre de um espírito
diagramático obsessivo e um prazer crescente em colaborar com outros. É um coleccionador
ávido de vinil não anglófono, oriundo da região constrita entre câncer e
capricórnio, que apresenta em pequenas soirées com o seu Instituto Fonográfico Tropical. Em 2016, aderiu ao
paradigma das Materialidades por um período de quatro anos, renovável por tempo
indeterminado.