O debate que aqui se
publica é parte integrante do artigo: Machines à travailler:
arquitectura, habitação, escola
Paulo Ávila: Sem
discordar com o que julgo essencial, questiono dois aspectos: o primeiro é a
primazia das competências técnicas no ensino, pois pergunto-me se este não
tenderá antes a oscilar entre o retórico e o tecnocrático, mais do que entre o
técnico e o artístico (com ou sem aspas); o segundo, relacionado, é se existirá
realmente essa tentativa de aproximar a sala de aula à «experiência total» do
escritório de arquitectura, já que esta é destilada da maioria das dimensões
(também técnicas) que interferem naquele, e na ausência das quais o
encerramento da prática num ciclo auto-referencial resulta muito mais provável.
Isto porque uma formação técnica centrada na concretização da arquitectura não
se confunde com uma formação especializada na resposta às exigências do
mercado, já que a «técnica» a considerar na segunda será fundamentalmente
distinta.
Pedro Levi Bismarck:
Penso que estarás a entrar numa outra dimensão do problema. Primeiro, se ela é
manifestamente retórica é porque muito provavelmente assenta num modelo de
profissão que hoje está em crise e em dissolução – o arquitecto como
profissional liberal – e um certo modelo daquilo que é a arquitectura, que não
corresponde às condições gerais da sua prática e que tu já nem identificas
enquanto tal. Mas isso não significa que não seja profissionalizante no seu
sentido: na direcção que toma transformando o projecto em solução dentro de
condições sempre consideradas como «reais» e «possíveis» – desqualificando o
espaço da instrução teórica da acção de projecto. E se está presa a um ciclo
auto-referencial, como dizes, talvez seja, precisamente, para dissimular a
crise/dissolução desse modelo que toda a gente ouviu falar mas já ninguém
pratica. Esse é o drama da Escola. Por outro lado, pode haver uma formação
técnica da concretização que não se confunda com a resposta estrita ao mercado.
A questão está sempre na interrelação que se faz com a instrução crítica do
projecto. Mas uma formação técnica «centrada» na concretização da arquitectura,
eu diria, nos termos actuais, é já um efeito das exigências do mercado, isto é,
da tecnocratização da arquitectura. Agora, na verdade, estás a dar um valor e
uma carga à palavra técnica, mais perto da «techné» que eu não estou a dar
neste texto (e atenção que eu não estava a falar necessariamente da FAUP).
Paulo Ávila:
O problema é que se admitíssemos um uso flexível da palavra «teoria», tal como
admitimos da palavra «técnica», bem poderíamos reconhecer que o ensino se tende
a tornar cada vez mais «teórico», quando se distancia do concreto e se destila
das complexidades reais da negociação e da construção, para se imergir em representações
idealizadas, no fetichismo do desenho, e nos discursos persuasivos. E, na
verdade, continuaríamos a referir-nos a uma mesma tendência, que não descura
apenas a teoria como espaço improdutivo de problematização, mas também a
própria técnica enquanto relação com o real, o concreto, a matéria, o
sensível...
Por
outro lado, não insisto na função da retórica apenas na dissimulação da crise
do arquitecto liberal, mas sobretudo como traço específico na produção do
arquitecto neoliberal, o criador de marcas, o promotor de produtos, o vendedor
de ilusões... Por isso, ao questionar se o ensino não será antes mais retórico
e tecnocrático do que técnico, não insinuo que este seja, por isso, menos
profissionalizante, mas que participa, também ele, da produção de um modelo
específico da prática profissional, não por via da simulação mais fiel possível
da «experiência total» do escritório de arquitectura, mas antes através de um
isolamento cuidadoso face às condições reais da produção.
Pedro Levi Bismarck:
Volto a referir, em parte estou de acordo contigo: aliás, o «Arquitectura e “pessimismo”»
é precisamente sobre isso. A questão que se coloca neste texto não é se este
modelo é ou não retórico ou teórico, se é ou não dissimulador, mas se ele não
assenta, antes de tudo, num processo de aprendizagem marcado pela
intensificação de um conjunto de instrumentos, procedimentos, ferramentas de
natureza técnica – adquiridos de forma automatizada e controlada – que visam
dirigir o aluno unicamente em direcção à concretização eficiente e operativa da
«solução», sem que seja colocada a instrução crítica da acção projectual e a
reflexão (precisamente) sobre as suas condições de produção. Aquilo que
Giancarlo de Carlo chamava os arquitectos-especialistas: «aqueles que sabem
fazer tão bem uma coisa sem saberem para que serve e o que provoca».
Esta
para mim é a questão essencial. Porque, ao colocar o projecto enquanto pura
«resposta» a um programa pré-dado, enquanto conjunto de procedimentos que se
dirigem univocamente para a «solução», isso obriga a retirar toda uma miríade
de factores do próprio estirador, sempre considerados como «perturbadores». Isto
é, mais do que produzir um ambiente teórico anacrónico, essa abstracção da
realidade realizada pelo projecto é condição necessária para assegurar a
operação projectual enquanto pura resposta eficaz e eficiente. Porque também é
verdade que esse «anacronismo» do modelo didáctico do projecto é, neste momento
a sua força legitimadora: respondendo às necessidades retóricas do desenho,
enquanto a condição profissionalizante e a aquisição das ferramentas técnicas
de trabalho não só estão amplamente cumpridas, como são, aliás, elogiadas pelo
mercado de trabalho, como se vê pela integração positiva dos arquitectos da FAUP
nas suas estruturas de produção.
Portanto,
eu não acho que haja aqui «um em vez de». A simulação do escritório total não
significa aqui que o arquitecto está com as mãos na massa, nu perante a
realidade, mas porque este é o espaço vazio e livre onde se ensaia o projecto
como solução puramente técnica. A contradição, que eu acho interessante e estou
de acordo contigo e já o tinha referido, é que essa abstracção gera um grau de
ignorância do arquitecto face aos processos onde ele próprio se inscreve,
produzindo, simultaneamente, por exemplo, todo um discurso positivista e
idealista em torno da cidade – onde tudo é espaço público e onde tudo é
progresso – que visa cobrir a ignorância da classe e desresponsabilizar o seu
papel histórico nos processos desiguais e violentos que produzem o espaço
urbano.
Paulo Ávila:
O que questiono não é a especialização do ensino que referes – a automatização
dos procedimentos, a anulação do atrito, a consolidação de um modelo único («o
projecto enquanto “resposta”») –, até porque ela vem a par da proletarização da
profissão, da necessidade de abastecer a máquina produtiva com mão-de-obra
dócil… O ponto que tentei problematizar, quanto ao teu texto, é a hipótese de
que essa automatização não incide apenas sobre a teoria, mas também sobre a técnica
como processo de atrito, de experimentação, de desvios, e (porque não?) de
problematização dos modos de vida (o que me parece sair desvalorizado quando a
fazes corresponder à especialização e a opões à teoria). Para além disto,
continuo hesitante em admitir que as transformações no ensino tenham como
objecto central competências estritamente técnicas, quando assistimos também à
intensificação paralela de regimes discursivos («teóricos») de grande
diversidade; que podem centrar-se, por exemplo, na fabricação de linhagens
históricas (de «tradições» como «marcas comprovadas») – falo da FAUP e da
importância estrutural da história no seu currículo –, mas que também se podem
fundar noutros chavões – a tecnologia, a ecologia, a sustentabilidade, o
«social» – desempenhando, em ambos os casos, papéis decisivos na moldagem
positiva de um modelo profissional centrado na sua validação perante o mercado.
Pedro Levi Bismarck: Pois, mas não é precisamente
aí que está o equívoco? Eu não estou a opor a teoria versus prática. E por isso é que eu detalhei melhor o que entendia
por instrução crítica/teórica do projecto: porque é essa relação crítica que
pode tornar inoperantes os modelos
estabilizados e arrancá-los da especialização técnica e da máquina
abstraccionista que eles engendram. Por outro lado, é óbvio que um projecto
reduzido às suas componentes técnicas não é aceitável e, por isso, a
importância desses regimes discursivos que procuram «iluminar» a disciplina e
dissimular a sua reorganização brutal dentro da economia neoliberal: quer sejam
na linhagem do clássico, da identidade local, da profissão poética ou na má consciência do social ou do sustentável.
Diogo Silva: (Ora, com licença...)
igualmente de acordo com toda a questão da profissionalização do ensino, mas
também com sérias dúvidas que ela se alicerce num especial centramento na
técnica ou sequer na fé de uma particular salvação alicerçada na crítica. Diria
antes que a única matriz que sustenta essa profissionalização é o simples
esvaziamento – que será tão nefasto à teoria quanto o é à técnica (como o Paulo
Ávila bem referiu).
Poderia
dizer até que a questão da «instrução crítica/teórica» que falas é tão fulcral
quanto a questão da instrução técnica. Basta ver o carácter crucial que
desempenhou a «instrução técnica» para a derrota das sociais-democracias de
Weimar e de Viena. Na minha perspectiva, essa «instrução» só terá interesse ser
colocada tendo por base um vínculo efectivo, caso contrário continuaremos a tratar
de simulações. E o que me surge com cada vez maior dúvida é se será
efectivamente possível desenvolver tais simulações (de escritório, de mercado,
de social, de produção...), e se elas serão sequer operativas.
Isto para
dizer ainda que, não creio que haja efectivamente na FAUP, na UdK, na UNAM ou
qualquer outra Universidade que tenha conhecido qualquer simulação realista da
experiência do escritório ou das condições do mercado, assim como não há
qualquer simulação realista de um contexto social, tecnológico, cultural... até
porque não interessa ao papel que desempenha a Academia nos processos
produtivos. O seu papel é o de laboratório disciplinar, em que vale em igual
medida teoria e técnica, e em que se consolidam puros exercícios de
autonomização. É precisamente esta autonomia que garante matéria à
intelectualidade na persecução da sua tarefa de «vanguarda» disponível para
esclarecer as massas do rumo que lhe deverá caber. E isto tanto pode servir o
«mercado» como o seu oposto. A história demonstra a facilidade da Academia em
se prestar ao serviço do poder que a solicite e a facilidade desse poder em
instrumentalizar o contributo «crítico» da Academia a seu favor. Provando na
verdade uma certa inconsequência de todas essas «simulações» ou «instruções». Pode
ser, no entanto, que talvez reste à Academia o ensino da língua morta – da
técnica e da sabedoria (que por mortas não são necessariamente desvinculadas ou
desenraizadas).
João Paupério: Debate interessante este,
ainda que, sem malícia, me tenha feito pensar numa das famosas piadas do Zizek.
Aquela em que o homem, num restaurante francês, e após ter compreendido que uma
série de mal-entendidos havia sido causada pela distância que o separava dessa
língua estrangeira, decide sair por cima e despedir-se em latim, com um erudito
«Nota bene»! Não é assim que funcionam a maior parte dos discursos filosóficos,
continua, sobretudo quando um filósofo se aventura na crítica de outro? Afinal
de contas, não tratou a história de demonstrar que a técnica, para além de
prática, sempre se tornou uma forma de retórica, e que essa retórica se tornou
instrumento fundamental da própria prática – dita – artística; não corresponde
a tecnocracia a um processo de institucionalização abstracta das técnicas,
especializadas através da prática, enquanto dogma teórico? E não é esse
pretenso nó, mascarado como grau zero do conhecimento – politicamente neutralizado,
pragmático e «realista» – a que chamamos instrução, a melhor forma de manter
oleada a reprodução dos meios tão úteis à ideologia dominante?
Simpatizando
com a generalidade dos argumentos que foram sendo esboçados, parece-me
efectivamente que todos se lamentam em torno de um mesmo vazio (pelo menos, é
assim que os interpreto, como ao próprio texto) aberto pelo afastamento
hermenêutico entre a Techne e Episteme, isto é, entre o «fazer
enquanto pensar» e o «pensar enquanto fazer». A seguir ao conformismo, esse
hiato talvez seja o sintoma mais claro de um afogamento na ficção incontestada
do «real» que, pela escuridão dos óculos que nos são fornecidos na Escola, nos
faz perder consciência sobre a dependência que ambas deveriam nutrir pela
Teoria; compreendida aqui, seja claro, na radicalidade etimológica do termo: uma
simultânea capacidade de observar o real e de especular sobre ele (e isto,
atenção, não se aplica apenas à FAUP nem às idiossincrasias da nossa querida
disciplina).
(Ainda)
Zizek descreve a Teoria como aquilo que nos permite recolocar as próprias questões,
escapando ao impulso de partir i-mediatamente para as respectivas respostas e
soluções. A escola, nesse entendimento original «ex-cursivo», devia ser o lugar
privilegiado da Teoria: o lugar do jogo e do tempo livre, que nos permite
aprender a ver o mundo libertos da urgência de um contexto que nos habituamos a
dar por certo como realidade. Um território permanentemente por-explorar, em
busca de novas formas de subjectivação capazes de escapar à máquina moral que a
precede e conduzir à criação desses novos vínculos (com implicações, claro
está) eminentemente políticas. Assim sendo, e recuperando o jogo de palavras de
Aureli, a autonomia da escola deixaria de ser vista como uma «autonomia de»,
afastada de qualquer acidente ou imprevisto, e passaria a ser uma «autonomia
para», redistribuindo em cada um as possibilidades do pensamento.
Ora, para
isso, e embora correndo o risco de essa resistência vir a ser instrumentalizada
pelo lado errado, é indispensável o
levantamento de vozes dissonantes capazes de pôr em xeque o Iluminismo que toma
de assalto há séculos as instituições académicas, blindado pelas certezas
inquebrantáveis de «homens brancos privilegiados» [não será, a esse propósito,
a configuração deste debate mais sintomática do que irónica?], sob o pretexto
de defenderem uma sabedoria que vai alternando entre a colectânea acrítica de
tradições e a declamação orgulhosa de virtuosismos clássicos. Para que tal seja
possível, independentemente do nome que se lhe dê, será incontornável uma
qualquer forma de «instrução crítica/teórica» (não só) do projecto, como de um
horizonte mais amplo.
Enfim,
tudo isto lembra uma passagem de Rousseau na sua resposta à questão levantada
pela Academia sobre «se o restabelecimento das Ciências e das Artes contribui
para ao refinamento dos costumes»: «Potências da terra, amais os talentos e
protegeis os que os cultivam. Povos policiados, cultivai-os: escravos felizes,
a eles lhes devem este gosto delicado e fino de que vos servis; esta doçura de
carácter e urbanidade de costumes que tornam entre vós o comércio tão fácil e
aglutinante; resumindo, a aparência de todas as virtudes, sem ter nenhuma.»
Pedro Levi Bismarck: Diogo Silva, agradeço o teu comentário,
mas contínuo a pensar que há um equívoco relativamente ao modo como se leram
alguns dos termos utilizados, nomeadamente «técnica» e «teoria». Como já tive a
oportunidade de explicar antes (e que, aliás, a expressão do Giancarlo de Carlo
resume) trata-se de uma aprendizagem que se faz da aquisição de competências,
procedimentos, protocolos, automatizados e codificados, onde é desqualificada a
instrução/reflexão crítica sobre a acção projectual e as condições sociais e
políticas em que esta opera. Basta estar na Universidade para perceber como,
cada vez mais, a aprendizagem faz de qualquer aluno uma mão-de-obra qualificada
tecnicamente sem lhe oferecer espaço de crítica, reflexão e conhecimento, não
apenas sobre aquilo que ele faz, mas sobre as condições da produção da própria
arquitectura.
E, por
isso, quando falo da simulação do escritório – que eu não estou a defender, nem estou a dizer
que não é inconsequente – não estou a dizer que ela é «tal qual», «realista»,
mas porque os protocolos, os formatos, os programas não só mimetizam a lógica
do mercado, mas moldam o aluno-arquitecto à imagem do mercado e para o mercado,
construindo nesse processo uma absoluta ignorância do arquitecto relativamente
aos processos capitalistas que fazem o espaço urbano e que mobilizam a
arquitectura. Essa simulação reproduz e amplifica dentro da aula, dentro da
escola, os limites e o fechamento da própria arquitectura, reduzida à sua
condição de resposta a um enunciado e a um programa pré-definido, reduzida à
condição de produção de «objectos arquitectónicos». Portanto, não estou a
operar nenhum prática versus teoria,
técnica versus instrução crítica. Nem
sequer estou a por em causa, bem pelo contrário, a academia como espécie de
laboratório. Agora, parece-me útil chamar a atenção para o facto de não
estarmos nos anos 30 nem nos anos 70 e que é um encantamento absoluto acreditar
numa relação arquitecto-vanguarda / massas, reproduzindo estratégias que não
são possíveis no actual quadro da organização dos saberes e das disciplinas na
economia neoliberal e num quadro, como tu o próprio disseste, de absoluto
esvaziamento político e ideológico em que a arquitectura se encontra e onde se
define.
Paulo A. M. Monteiro: Eu não participei,
limitei-me a observar. Fui um espectador atento, confesso. No entanto (em modo
intuitivo), parece-me que a raíz do problema estará no complexo debate sobre o
«trabalho intelectual» (entenda-se, também, «trabalho arquitectónico»): qual o
seu papel e a sua função dentro da máquina capitalista. Conscientes da crise de
cada um dos termos reiterados nesta discussão – teoria e técnica –, insistir em
determinadas «qualidades» mais ou menos idealizadas, ou a-temporais,
corresponderá a um prolongamento da ilusão (ilusão de funções que a
arquitectura já não cumpre e/ou que lhe foram retiradas). No caso específico do
ensino, dentro do esvaziamento e da homogeneização do «pensamento operativo»,
já não seria mau a aquisição dessa consciência «crítica»… Começando de dentro
para fora!
Citando o
velhinho do costume (Manfredo Tafuri), mesmo que datado (também na
terminologia):
«… não é
viável propor ‘contra-espaços’ arquitectónicos: a procura de uma alternativa,
inserida nas estruturas que condicionam o próprio carácter do projecto, é uma
manifesta contradição dos termos. A reflexão sobre a arquitectura, enquanto
crítica da ideologia concreta, ‘realizada’ pela própria arquitectura, não pode
deixar de ir mais além e alcançar uma dimensão especificamente política. Só
então – isto é, depois de excluída
qualquer ideologia disciplinar – é lícito repropor o tema dos novos papéis do
técnico, do organizador da construção, do planner,
no âmbito das novas formas do desenvolvimento capitalista. E, portanto, das
tangências possíveis ou das inevitáveis contradições entre um tal trabalho
técnico-intelectual e as condições materiais da luta de classes.»
Paulo Ávila: João Paupério, o que
procurava era mesmo salientar como esse «grau zero do conhecimento»
(relacionado com a figura do técnico-especialista), não é menos impossível do que
um grau zero da escrita; sobretudo porque a «técnica» que estrutura a
especialização aqui em causa não é a técnica num sentido amplo ou universal,
mas num sentido localizado e específico, estritamente operativo dentro de uma
dinâmica imanente ao mercado, na qual o arquitecto desempenha funções cada vez
mais segmentárias e automatizadas; o que não implica (podendo até excluir) que
ela seja realista, pragmática ou eficaz no que respeita a problemas
propriamente técnicos que não se enquadrem nessa mesma dinâmica.
É preciso
reconhecer que noções como a de «eficácia», de «pragmatismo» ou de «realismo»,
foram empregues nesta discussão com uma conotação bem específica – uma eficácia
avaliada segundo critérios particulares; um pragmatismo investido na resposta a,
e na reprodução de, uma realidade dominante; e um realismo que é apenas o
conformismo face a esta mesma realidade. Assistimos hoje a uma corrente que
reivindica para si o monopólio sobre estes termos, despindo-os, para tal, das
suas ambiguidades; e pergunto-me se não contribuímos para isso quando os
utilizamos quase como se fossem noções puras; um pragmatismo puro, um realismo
puro, uma eficácia pura…
Por outro
lado, certas práticas que fazem das questões técnicas um dos seus principais
focos, nas quais incluo a dos Lacaton et Vassal, vêm demonstrando como um
pragmatismo radical, – desta vez não focado nas exigências do mercado, mas numa arquitectura como
gesto de possibilitação – pode, não só impulsionar, como até pressupor uma reformulação total dos
pressupostos e dos modos convencionais de conceber a arquitectura e o habitar.
Isto não previne que as suas experiências devenham modelos ou que sejam
absorvidos pela lógica mercantil, mas tal não anula a potência da
problematização a que dão corpo e as fissuras que provocam numa realidade
dominante.
João Paupério: Paulo Ávila, de acordo,
sobretudo com o exemplo. Tenho para mim que os Lacaton et Vassal são não só dos
Teóricos mais pertinentes do mundo contemporâneo como, no campo de acção
próprio e limitado da disciplina, dos únicos que questionam efectivamente os
processos de produção em que a sua arquitectura se insere e, doutra forma,
seria refém. Afinal de contas, não é a praça León Aucoc uma das obras-primas da
história?
Pedro Levi Bismarck: Paulo Ávila, continuo o
esforço de explicar o meu texto. Mas o exemplo dos Lacaton et Vassal é bom. Ao
contrário de ti, eu não penso que os Lacaton façam «das questões técnicas um
dos seus principais focos». O que eles fazem é precisamente o contrário: fazer
com que elas deixem de ser meramente técnicas, para passarem a ser propriamente
arquitectónicas, animando uma acção projectual onde a instrução crítica, o
enunciado, a resposta e os meios se dinamizam mutuamente: onde o «como se faz»
e o «porquê» se intersectam e se problematizam; onde o «para que serve» e «o
que provoca» se coloca necessariamente. Espaço/m2/custo aparecem, assim, na sua
natureza económica e política e não, apenas, enquanto critérios técnicos a
cumprir e a responder. Sendo que nesse movimento perturba-se o próprio modelo
que as estabiliza enquanto questões meramente técnicas. O que me parece ainda
mais importante.
Agora,
também não podemos ser inocentes relativamente ao papel que os Lacaton et
Vassal desempenham. Na verdade, nunca são postos aí em causa os processos e as
estruturas da organização capitalista da cidade e da habitação. Portanto,
abre-nos caminho para pensar o projecto, mas longe de pensar que esse
pragmatismo radical será assim tão emancipatório quanto isso.
Volto ao
início. Esta condição profissionalizante e técnica da aprendizagem, que eu
coloco aqui é, sobretudo, neste sentido: uma relação que é mobilizada no
projecto entre meios e fins, entre resposta e pergunta, entre acção e
enunciado, que nunca é questionada e que faz de questões políticas, sociais,
económicas, que estão na mesa do projecto, questões técnicas a cumprir debaixo
de um programa e de um modelo pré-definido e garantido. O que faz dos
arquitectos-alunos autómatos com a máscara de autores, ignorantes dos processos
onde eles próprios participam, reproduzindo ficções e encantamentos em torno da
forma da cidade e do espaço público. Como é que o arquitecto pode desencadear
uma acção que perturbe isso, não foi uma questão que eu tenha colocado aqui, o
que não signifique que não tenha pertinência. E penso que houve aqui uma certa
confusão e precipitação em vir «salvar» o espaço da prática da arquitectura (o
que talvez seja por si sintomático) e que divergiu e fez entrar uma leitura e
um sentido diferente de alguns termos, entre eles o de técnica.
Paulo Ávila: Pedro Levi Bismarck, antes
de mais, julgo que o nosso «desentendimento» quanto à «técnica» já ficou
esclarecido. O que acontece é que a discussão se deslocou do texto propriamente
dito quando engendrou por essa «outra dimensão do problema» que, embora não
seja suprimida pelo texto (como bem esclareces), é pelo menos deixada por
explorar. Não excluindo a hipótese de precipitação/confusão da minha parte,
quando a introduzi, ela não perde a sua pertinência numa abordagem à
transformação actual no ensino. Isto, claro, se nos dispusermos a transgredir a
fronteira dos problemas abordados no texto. Portanto, perdoa-me a divagação:
Voltando
aos Lacaton et Vassal, e admitindo essa reciprocidade – uma «acção projectual onde a
instrução crítica, o enunciado, a resposta e os meios se dinamizam mutuamente» –, a própria relação entre o
«como se faz» e o «porquê» torna-se algo intempestiva, o que não se traduz, de
nenhum modo, numa actuação acrítica…
Podemos
mesmo determinar o que surge primeiro? Será o conceito de uma espacialidade
ampliada, descaracterizada e indeterminada (e a dimensão política que isso transporta),
ou o interesse pela estufa como aparato económico de manipulação de atmosferas
(menos eficaz no controlo da experiência espacial)? ; Será a concepção do
edifício como sistema dinâmico e capaz de fomentar indeterminação programática,
ou a contemplação do esqueleto de betão como meio económico de maximizar a
superfície? Será a intenção de produzir um manifesto que questione a noção da
arquitectura como embelezamento do espaço urbano, ou será a observação
escrupulosa do funcionamento concreto de uma praça, atentando à singularidade
das dinâmicas sociais que acolhe? Para mim, é como a história do ovo e da
galinha…
Se
podemos admitir que uma instrução teórica motiva, neste caso, um modo singular
de re-colocar as questões técnicas, arrancando-as à mera tecnicidade, o oposto
não será também verdade? Ou seja, não pode o próprio confronto com problemas
técnicos específicos motivar uma reformulação dos pressupostos teóricos,
estéticos, disciplinares…? Afinal, não é precisamente perante essa
indecifrabilidade – entre o que é técnico, teórico, disciplinar – que podemos
reconhecer um problema «propriamente arquitectónico»?
Agora, se
essa prática revela limitações no questionamento dos «processos e estruturas da
organização capitalista»? Isso parece-me evidente, e nem foi posto em causa… E,
no limite, quanto ao seu potencial emancipador, ela estará sempre dependente da
tal coincidência entre as intenções libertadoras dos arquitectos e a prática
real das pessoas no exercício da sua liberdade (como referiu o Foucault em
«Espaço, saber e poder»). Mas se o questionamento de certos aspectos fundamentais
do capitalismo – do modo como ele se re-produz no espaço – só está ao alcance
de um pensamento estritamente teórico, tal não significa que este não
enfrentará também as suas contradições e os seus impasses no que respeita à
transformação efectiva dos modos de vida através da arquitectura.
Enfim,
saliento que nada disto põe em causa o que está no texto, pelo que também
compreendo que pode não ser oportuno prosseguir a discussão.
Pedro Levi Bismarck: Quando eu referi os Lacaton et
Vassal e essa interrelação entre enunciado e resposta eu não disse que era uma
«actuação acrítica», bem pelo contrário! Precisamente porque fazem dos tais
assuntos ditos «técnicos», problemas de arquitectura colocados numa determinada
formação económica, social, política...Estás sempre a insistir no mesmo ponto:
se é a instrução teórica ou os tais problemas técnicos que vêm primeiro ou
depois, para mim, isso é indiferente (e por isso é que segui o exemplo dos
Lacaton), porque tem que ver com a dinâmica da operação projectual,
colocando-os em simultâneo, mobilizando um a partir do outro. Quando dizes:
«Afinal, não é precisamente perante essa indecifrabilidade — entre o que é
técnico, teórico, disciplinar — que podemos reconhecer um problema
‘propriamente arquitectónico’?» Na verdade, estás a repetir o que eu disse a
propósito dos Lacaton et Vassal. E por isso é que eu disse que eles faziam das
questões técnicas problemas arquitectónicos...
Por outro
lado, eu não disse que só no pensamento teórico é que pode estar o
questionamento dos processos capitalistas. Eu falei sempre da
instrução/construção teórica e da armação crítica que pode mobilizar um
projecto-de-arquitectura. Mas será bom reconhecer que a emancipação não é
apenas do espírito mas é material e que o questionamento dos modos de vida
implica questionar os modos de produção capitalista – nas condições em que o
pensamento teórico pode explorar e na acção que a prática pode abrir.
Volto
também a referir, seguindo a mesma fórmula: o que o ensino faz é converter
problemas arquitectónicos em problemas técnicos, porque prescreve modos de os
resolver e não modos de os pensar resolvendo; porque implica regras e
procedimentos, normalizados e codificados que os isolam e especializam,
retirando e anulando qualquer discussão sobre os seus efeitos e sobre o modelo
teórico que os estabiliza. O ensino é técnico não porque resolve problemas
construtivos ou funcionais, mas porque se mobiliza num processo de meios e fins
dirigido unicamente para a pura resolução sem inquirir o modelo que o engendra
e mobiliza (isto é o modelo que valida a sua acção), sem dar ao
aluno-arquitecto a possibilidade de inquirir, argumentar, legitimar, as suas
opções, decisões, acções, num quadro de saber tanto estritamente disciplinar
como num quadro de saber, diria, social e político.
•
Nota da edição
Esta publicação é a terceira parte do artigo «Machines
à travailler: arquitectura, habitação, escola» e corresponde a um debate entre
o autor do artigo, Paulo Ávila, Diogo Silva, João Paupério e Paulo A.M.
Monteiro no facebook.
Imagem
1. Rochelle Feinstein, «Love Your
Work», 1999.
2.Escritório SANAA (via
Flickr).
3. Centro logístico da Amazon.
4. Proposta para o Future Music School in Italy / ETB Studio,
publicado no archdaily
com o título “10 Ideas for Presenting Your Project With Concrete Models”.
5. «A Quoit Sert l’Architect?», Pierre Lefèvre (dir.), Livre d’or d’architecture et d’urbanisme
n°1, La Grande Masse (1966).
6. Fala Atelier, Real Estate
Agency (via Domus)
7. Jacques Herzog & Pierre de Meuron Kabinett, Basel, 2015
(Fotografia: Iwan Baan).
8. Jean-Philipe Vassal, Anne
Lacaton, Frédéric Druot, Cité do Grand-Parc,
Bordéus, 2019.
9. Conferência de Jean-Philippe Vassal, «Habiter, Plaisir et luxe
pour tous»
10. Oskar Hansen.
Pedro Levi
Bismarck
Editor do Jornal Punkto e co-editor das publicações stones against
diamonds. Licenciado em arquitectura pela FAUP onde é assistente convidado e investigador
do CEAU.
Paulo Ávila
Arquitecto pela FAUP (2018). Colabora ocasionalmente com a Punkto
desde 2017. Trabalha no Ateliermob, em Lisboa.
Diogo Silva
Arquitecto, formado na FAUP, trabalhador em arquitectura no atelierdacosta
- Póvoa de Varzim.
João Paupério
Arquitecto pela FAUP, escreve e projecta
em prática autónoma.
Paulo A.M.
Monteiro
Está vivo (a muito custo) desde 1977. Existe
com o número de identificação 11135993. É também arquitecto, investigador e
co-editor das publicações Stones against diamonds.
Ficha Técnica
Data de publicação: 26.05.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •