Le maschere di Venezia • Pedro Levi Bismarck




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Eduardo Souto de Moura será, sem dúvida, um dos mais ilustres arquitectos portugueses. Este não é, por isso, um comentário sobre a qualidade específica da sua obra. No entanto, a entrega do Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2018, pela conversão da herdade de São Lourenço do Barrocal num complexo turístico, realçando-se a «relação essencial entre arquitectura, tempo e lugar», a partir do gesto radicalmente simples de exibir duas fotografias aéreas (antes e depois) da construção, é revelador do tipo de discurso e do papel que instituições como a Bienal de Veneza cumprem actualmente.

A Europa é, hoje, uma fortaleza que quanto mais se afunda na crise que ela própria vai gerando, mais necessidade tem de esconjurar os seus fantasmas e assegurar que tudo está bem – que tudo tem que continuar bem. Quanto mais as ambiguidades e contradições das políticas neoliberais crescem (desmantelamento do Estado social, privatização de serviços públicos essenciais, ascensão de populismos, movimentos migratórios, precariedade laboral e social generalizada, desigualdades económicas, já para nem referir os efeitos cada vez mais evidentes sobre o clima e a natureza), mais a Fortaleza Europa se apetrecha em torno de valores humanistas e abstractos como o “tempo”, o “lugar”, a “história” ou a “simplicidade”. Mas o efeito (e a potência) é apenas um paliativo, um ansiolítico, que cumpre todo um ritual litúrgico sem levantar o problema político de fundo.

Um exemplo evidente destas contradições, vindo da América do Sul, é o pavilhão da Argentina que, em plena crise económica com um pedido de resgate financeiro ao FMI, se propõe a «explorar o diálogo entre a geografia, o lugar e a arquitectura», exibindo projectos que foram produzidos desde que a «Argentina regressou à democracia em 1983».

Pela passadeira vermelha de Veneza desfila o grande mercado de luxo da arquitectura haute couture, um produto de gama alta que mobiliza (e gera) elevados recursos económicos, que não nos pertence e que jamais nos será dado a experimentar (aliás, como grande parte da arquitectura que desfila hoje pelas revistas e monografias). Essa relação essencial entre “lugar”, “tempo”, “arquitectura”, é aqui convertida numa mercadoria, num bem de luxo, da qual a maior parte da população permanece excluída, habitando no miserável quotidiano sem qualidades que pode pagar. Podemos admirar o gesto de Eduardo Souto de Moura, mas a sua beleza esconde também uma secreta melancolia: a impossibilidade crescente de tornar partilhável a arquitectura, de a tornar comum. Esquecendo, assim, o compromisso com a sociedade, que é, afinal de contas, o compromisso com a própria democracia.

O comentário do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre a entrega do prémio – bem sintetizado pelos media («Leão de Ouro de Souto de Moura faz “muito bem à alma” dos portugueses») –, tem a vantagem de ser honesto, mas não deixa de expor o lugar, esse sim bem real, que a arquitectura ocupa na retórica política e ideológica: uma arquitectura cujo objectivo é, afinal de contas, levantar-nos a alma e encher-nos de orgulho pelos feitos nacionais dos nossos “heróis”.

Georges Bataille dizia que a verdadeira função dos monumentos era “impor o silêncio às massas”. Os meios e as formas serão, hoje, certamente outros, mais adequados à dimensão performativa da nossa época, mas a arquitectura continua a cumprir essa mesma função. E como arquitectura elevada à categoria de monumento, esta obra de Eduardo Souto Moura também, aqui, cumpre esse papel: fazer silêncio. Talvez, por isso, dizia Adorno que «a grandeza das obras de arte reside exclusivamente no facto de elas deixarem falar aquilo que a ideologia oculta». Eu diria, talvez, aquilo que a ideologia cala.

Ao contrário do que Eduardo Souto de Moura procura evidenciar, não há nenhuma radicalidade nesse “gesto contra o folclore e o espectáculo”, porque a sua função é, precisamente, essa de assegurar as condições para que o folclore e o espectáculo possam continuar.

A possibilidade de uma resistência está menos na radicalidade dos “gestos simples” – eixos fundamentais da moral e da economia da austeridade que apenas servem para esconder os efeitos da política neoliberal – e mais na capacidade de expor a função ideológica que todos estes termos ocupam no discurso da arquitectura. Resta saber, se tal é passível de ser feito no contexto dessa miríade de bienais e trienais que, incansavelmente, produzem mostras atrás de mostras, e cujo princípio subjacente parece ser sempre o mecanismo infinito da “celebração da arquitectura”.



Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto. Arquitecto, investigador no CEAU e assistente convidado na FAUP.

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Francesco Galli

Ficha Técnica
Data de publicação: 28.05.2018