Eduardo Souto de
Moura será, sem dúvida, um dos mais ilustres arquitectos portugueses. Este não
é, por isso, um comentário sobre a qualidade específica da sua obra. No entanto,
a entrega do Leão de Ouro, na Bienal de Veneza de 2018, pela conversão da
herdade de São Lourenço do Barrocal num complexo turístico, realçando-se a «relação
essencial entre arquitectura, tempo e lugar», a partir do gesto radicalmente
simples de exibir duas fotografias aéreas (antes e depois) da construção, é revelador
do tipo de discurso e do papel que instituições como a Bienal de Veneza cumprem
actualmente.
A Europa é,
hoje, uma fortaleza que quanto mais se afunda na crise que ela própria vai
gerando, mais necessidade tem de esconjurar os seus fantasmas e assegurar que
tudo está bem – que tudo tem que continuar bem. Quanto mais as ambiguidades e
contradições das políticas neoliberais crescem (desmantelamento do Estado social,
privatização de serviços públicos essenciais, ascensão de populismos, movimentos
migratórios, precariedade laboral e social generalizada, desigualdades
económicas, já para nem referir os efeitos cada vez mais evidentes sobre o
clima e a natureza), mais a Fortaleza Europa se apetrecha em torno de valores
humanistas e abstractos como o “tempo”, o “lugar”, a “história” ou a “simplicidade”.
Mas o efeito (e a potência) é apenas um paliativo, um ansiolítico, que cumpre
todo um ritual litúrgico sem levantar o problema político de fundo.
Um exemplo evidente
destas contradições, vindo da América do Sul, é o pavilhão da Argentina que, em
plena crise económica com um pedido de resgate financeiro ao FMI, se propõe a «explorar
o diálogo entre a geografia, o lugar e a arquitectura», exibindo projectos que
foram produzidos desde que a «Argentina regressou à democracia em 1983».
Pela passadeira
vermelha de Veneza desfila o grande mercado de luxo da arquitectura haute couture, um produto de gama alta
que mobiliza (e gera) elevados recursos económicos, que não nos pertence e que
jamais nos será dado a experimentar (aliás, como grande parte da arquitectura
que desfila hoje pelas revistas e monografias). Essa relação essencial entre “lugar”,
“tempo”, “arquitectura”, é aqui convertida numa mercadoria, num bem de luxo, da
qual a maior parte da população permanece excluída, habitando no miserável
quotidiano sem qualidades que pode
pagar. Podemos admirar o gesto de Eduardo Souto de Moura, mas a sua beleza
esconde também uma secreta melancolia: a impossibilidade crescente de tornar
partilhável a arquitectura, de a tornar comum. Esquecendo, assim, o compromisso
com a sociedade, que é, afinal de contas, o compromisso com a própria democracia.
O comentário do
Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, sobre a entrega do prémio – bem
sintetizado pelos media («Leão
de Ouro de Souto de Moura faz “muito bem à alma” dos portugueses») –, tem a
vantagem de ser honesto, mas não deixa de expor o lugar, esse sim bem real, que
a arquitectura ocupa na retórica política e ideológica: uma arquitectura cujo
objectivo é, afinal de contas, levantar-nos a alma e encher-nos de orgulho pelos
feitos nacionais dos nossos “heróis”.
Georges Bataille
dizia que a verdadeira função dos monumentos era “impor o silêncio às massas”.
Os meios e as formas serão, hoje, certamente outros, mais adequados à dimensão
performativa da nossa época, mas a arquitectura continua a cumprir essa mesma
função. E como arquitectura elevada à categoria de monumento, esta obra de
Eduardo Souto Moura também, aqui, cumpre esse papel: fazer silêncio. Talvez,
por isso, dizia Adorno que «a grandeza das obras de arte reside exclusivamente
no facto de elas deixarem falar aquilo que a ideologia oculta». Eu diria, talvez,
aquilo que a ideologia cala.
Ao contrário do
que Eduardo Souto de Moura procura evidenciar, não há nenhuma radicalidade nesse
“gesto contra o folclore e o espectáculo”, porque a sua função é, precisamente,
essa de assegurar as condições para que o folclore e o espectáculo possam
continuar.
A possibilidade
de uma resistência está menos na radicalidade dos “gestos simples” – eixos fundamentais
da moral e da economia da austeridade
que apenas servem para esconder os efeitos da política neoliberal – e mais na
capacidade de expor a função ideológica que todos estes termos ocupam no discurso
da arquitectura. Resta saber, se tal é passível de ser feito no contexto dessa miríade
de bienais e trienais que, incansavelmente, produzem mostras atrás de mostras, e
cujo princípio subjacente parece ser sempre o mecanismo infinito da “celebração
da arquitectura”.
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Pedro Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto. Arquitecto, investigador no CEAU e assistente convidado na
FAUP.
Imagem
Francesco Galli
Ficha Técnica
Data de publicação: 28.05.2018