Se a experiência do amor
romântico continua a conhecer sempre novas declamações pessoais isso é porque
ela é tida enquanto experiência fundamental da existência contemporânea. À
contínua recitação pessoal da enfatuação assiste uma e outra vez uma energia
infida que concretiza a experiência do amor ao discursar sobre ele. O desenrolar quotidiano da existência esbate
os episódios da vida contra uma temporalidade abstracta, mas a cada início e
término de relação amorosa corresponde uma história, revivida a cada recitação.
O discurso da amizade é comparativamente
bastante mais pobre e o seu espectro afectivo é francamente mais limitado.
Lembramos os amigos com saudade, com uma ponta de orgulho, admiramos o
património de cumplicidade que foi construído, mas o discurso sobre a relação
em si encontra-se quase sempre determinado pela recitação do contexto histórico
do nascimento da amizade. O discurso da amizade, quando eventualmente emerge,
refere-se quase sempre a um passado, porque no presente, ao contrário do amor,
a amizade apenas parece sublinhar o decorrer diáfano do tempo. Paralelamente, a
sua tonalidade afectiva recusa os exageros trágicos e feéricos da paixão. A
amizade adulta, acreditar-se-ia, seria sempre uma tarde bem passada na praia ou
a galhofa bem regada de um jantar, e nunca um afecto capaz de transcender a
bonomia pastoral ou melancólica do convívio e do lazer.
Nessa parca amplitude afectiva,
nunca ninguém suspirou pela amizade que lhe foi prometida pelo destino, nunca
ninguém lançou o tarot ou leu o horóscopo para saber se iria nesse mês conhecer
a amizade da sua vida. O gesto da idealização parece ser exclusivo do amor. A
amizade surge enquanto algo sempre tendencialmente normativo, como uma
ocorrência sempre circunscrita ao campo do social. Mesmo quando revestida de
práticas iniciáticas, tingida de irreverência juvenil ou de iniciação
institucional, esta é sempre afirmada enquanto elemento de inscrição ritual
dentro de uma ordem preconcebida, quando não naturalizada, do social.
Esta sociologia imediata dos
afectos, tão cara ao espírito dos tempos, deixa, no entanto, várias questões em
aberto. A primeira, é que a pobreza que o discurso sobre a experiência da
amizade carrega estrutura-se a partir de um tabu. Peça-se a alguém que fale publicamente
da sua amizade em relação a outrem e na maior parte das vezes não se recolherão
mais do que duas ou três banalidades, mais ou menos sinceras, sobre a história
da relação. No entanto, coloque-se
esta mesma pessoa num regime confessional – religioso ou terapêutico – e
veja-se então o manancial de complexidades que as questões da amizade abrem.
Em parte, é a extrema
codificação normativa e discursiva do amor romântico que aprisiona a amizade. A
partir do momento em que a relação romântica concentra em si uma dimensão
transcendente, ela opera também uma demarcação clara do seu campo emocional,
uma acumulação primitiva dos afectos e uma determinação férrea das identidades
nela envolvidas. O ideal do amor romântico serve a promover uma cartografia
política dos afectos. O peso desmedido da relação amorosa coloca sob o seu
domínio múltiplas formas de cumplicidade e intimidade assim tornadas
exclusivas. A questão não é sexual, dado que a “revolução sexual” do pós-guerra
serviu a separar as práticas sexuais dos discursos amorosos. Pelo contrário, o
perigo latente a qualquer relação de amizade é que ela transborde para dentro
da fenomenologia afectiva do amor romântico – que ela adquira assim uma
narrativa, uma identidade e uma auto-reflexividade reservada a outro tipo de
relações – e que nesse movimento desestruture o carácter fortemente normativo
do amor romântico, os tabus que estruturam a reprodução social e a
masculinidade enquanto paradigma relacional. A demarcação afectiva e social da
amizade, o silêncio que sobre ela se impõe, enquadra-se inequivocamente dentro dos
dispositivos estruturais do social.
Não se pode falar de amizade,
porque falar dela honestamente implicaria criar nela práticas de discursividade
de si reservadas à esfera do amor romântico. Pelo contrário, no sublinhar da
sua dimensão histórica, na sua inscrição na narrativa temporal de cada um, os
contornos das interrupções e continuidades amistosas desenham uma história
geral das diversas etapas de sociabilidade privada - os momentos laborais,
institucionais, territoriais, associativos, etc - estruturando a dialéctica
relacional e social do avanço da vida pessoal de cada um. A história das
amizades de cada um espelha, tristemente, pouco mais do que uma espécie de
curriculum vitae biopolítico.
Esta normatividade é duplamente
traumática. A amizade não tem dialéctica própria. É-lhe vetada a possibilidade
de se expressar e de entender as suas alegrias e lutos. A amizade não dispõe de
reportório emocional para entender a sua crise e o seu fim. Toda a educação
sentimental moderna se constrói a partir da inevitabilidade da ruptura amorosa,
mas nada prepara os indivíduos para o espectro emocional da ruptura amistosa. A
perda de um amor é a hipótese da reconstrução do próprio, já a perda de uma
amizade nunca inaugura uma nova versão de si, pelo contrário, ela inscreve no
ser uma falta que perdura, uma amputação do sujeito.
Simultaneamente, esta
normatividade serve a controlar a intensidade do encontro amistoso, cuja
potencialidade surge sempre já reduzida à sua caricatura. A intensidade
emocional das amizades da juventude é preservada e celebrada, mas sempre
enquanto mito. A maturidade não é compatível com essa intensidade senão
enquanto anedota, mas, como dizia um importante pensador americano que arrisca
cair no esquecimento: "'remember
when is the lowest form of conversation". É suposto que a maturidade
emocional signifique uma redução da amizade à relação pessoal intersubjectiva.
A dimensão colectiva da amizade – a ideia de "grupo" – deverá ser abandonada
enquanto incompatível com as necessidades emocionais da idade adulta. A anedota
amistosa torna-se no luto social da dimensão colectiva da amizade, da sua
potencialidade política. A amizade, como qualquer fera num jardim zoológico,
surge sempre já imersa numa caricatura da sua potencialidade original, sempre
como mero índice de algo cuja intensidade original só pode ser observada quando
reduzida a diorama, a bibelot, a atracção
de feira.
A desnaturalização desta
hierarquização dos afectos oculta, no entanto, um paradoxo importante, que
transcende a questão normativa, ou que revela o carácter político de toda a
questão da normatividade. A amizade é a única relação social que não é alvo de
jurisdição directa. A amizade não é estipulada na lei. As relações familiares,
as relações amorosas, as relações produtivas são todas fonte de um regime legal
que procura expressar em terminologia jurídica as expectativas sociais dessas
ligações. É certo que uma relação amorosa não tem forçosamente de assumir contornos
de contrato legal, mas, por outro lado, também é verdade que não há relação
mais determinada pela problemática da legalidade e legitimidade do que a
amorosa e sexual. Todo esse edifício jurídico, no entanto, não se aplica à
amizade. Ele aplica-se, certamente, às dimensões colaborativas que possam
surgir da amizade, mas nunca ao teor próprio que compõe a experiência da
amizade. A informalidade da relação torna ridícula qualquer discussão sobre
divórcio, consentimento ou contrato entre amigos – precisamente, é a ausência
de vínculos formais legais, associativos ou familiares que define a amizade. A
amizade fundamenta, em princípio, uma confiança para além da lei.
Existem, certamente, formas de
agregar, estruturar e codificar relações informais. As ideias de sociedade
civil e de cidadania visam dar uma forma política a várias formas sociais que podemos
considerar próximas e derivativas da amizade. Fazem-no, no entanto, obrigando-as
a assumir uma dimensão participativa, relegando-as sempre à esfera da medição
do estado. Por ser impossível de codificar juridicamente, toda e qualquer
relação de amizade corre o risco de se tornar um ponto de fuga ao poder de
estado. É precisamente por se encontrar para lá da lei que a amizade é alvo de
uma codificação informal tão férrea e vasta. Por outras palavras, enquanto dimensão
política, a amizade, em si, não tem direito à cidade. Este está reservado aos
indivíduos. A participação na estrutura do poder é-me apenas permitida na
medida em que me apresente a ele de modo isolado.
É fácil compreender porquê. Assumir
plenamente a excepção legal da amizade significaria a dissolução automática do
estado. Em qualquer relação de amizade é postulada uma fronteira, que não
define necessariamente uma inimizade, mas que demarca uma excepção. Se essa
amizade afirmar no seu seio uma soberania, ou seja, se ela exercer a sua autonomia
legal em relação ao estado – se eu me revelar mais fiel às regras autónomas e
extralegais da amizade do que às regras do soberano – ela faz necessariamente
perigar a estrutura soberana de monopólio da violência. A grande ameaça à
continuidade do estado não são as ameaças individuais, nem as alterações
políticas, mas precisamente que este deixe de ser reconhecido enquanto elemento
universal de poder. O estado só funciona na medida em que a sua estrutura de vínculo
social se conseguir afirmar perante todas as outras. Na sempre latente guerra
civil que opõe diferentes sectores sociais, o estado funciona enquanto estrutura
de mediação entre as formas sociais subalternas e as formas sociais dominantes.
O estado não serve senão a forçar que a guerra entre grupos antagónicos –
“amizades” – assuma um território particular e codificado, o da reprodução do
capital. O estado serve a forçar que a guerra se torne económica em vez de
política. Daí o paralelo fácil de traçar entre o gang e o lobby. Ambas são
formas de “amizade”, de associação informal, que se estruturam enquanto
excepção a partir de uma dimensão económica determinada pela relação dialéctica
entre estado e capital. Com objectivos e métodos obviamente diferentes, a acção
do estado procura uma e outra vez assegurar a sua sobrevivência a partir da
inclusão e controle de ambos os fenómenos gregários.
A amizade, então, não está
expressa na lei porque todo o edifício legal que estrutura o estado é uma
jurisdição sobre a amizade. A amizade está fora da lei porque o estado é, nele
próprio, a interdição da amizade. A separação da vida social em esferas privada
e pública serve a banir a amizade do palco da política.O privado é o campo da
pulverização e atomização das relações sociais, o público é o campo da sua reconstrução
a partir da abstracção do estado e dos interesses que o estado incorpora e
concretiza. Sob este prisma, a história política da modernidade ocidental
assume uma outra forma – foi precisamente enquanto amizade, enquanto afecto
proscrito pelo poder, e pela sua linguagem, que os movimentos políticos
subalternos – do movimento operário aos movimentos LGBTQ – travaram as suas
lutas ao longo dos últimos séculos. A
sua derrota ocorreu sempre e quando essa amizade foi reconfigurada em termos da
soberania estatal.
É aqui que se torna possível traçar
a relação entre a interdição social, psíquica e legal que sofre a amizade. Em todos
os casos, ao seu banimento corresponde a mais férrea das disciplinas e
codificações. Quanto mais imediato e informal surge o afecto, mais ele revela que
a sua aparente simplicidade esconde um complexo dispositivo de proibição e proscrição.
É nesse vazio criado entre a importância social e afectiva da amizade e o modo
de a pensar que se escondem algumas das chaves essenciais para pensar a
política contemporânea.
No livro de Ruth, parte da
bíblia hebraica, surge a história de como uma jovem viúva preferiu continuar
perto da sua sogra Ruth, também ela viúva, em vez de procurar novo marido. Uma escolha
moralmente dúbia. Em Itália, nos anos 70, um colectivo de mulheres que geria
uma livraria feminista deu a essa escolha o nome de Affidamento – afirmando a prática de constituir uma relação de
confiança enquanto relação iminentemente política. O que o gesto de Affidamento revela não é só a relação íntima
entre o afecto e política, mas como no interior de qualquer gesto político está
necessariamente uma consideração política da amizade, na medida em que no
interior dessa autonomia se desenha uma exterioridade ao poder. A amizade
política é aquela que entende que há maior legitimidade e sentido na relação de
cumplicidade colectiva que me separa do poder do que na abstracção da cidadania
que me é continuamente forçada. Isso não significa exigir à acção política o
cliché da pastoralidade bucólica da relação amistosa, nem significa assumir
dentro de cada amizade o mecanicismo neurótico da militância. Pelo contrário,
significa observar que dentro de qualquer amizade persiste algo de antagónico
que lhe é uma e outra vez proscrito e que esse antagonismo tem uma forma
histórica e social. Se a história política da contemporaneidade não é mais do
que a sucessão de formas dialécticas de organização das estruturas de
reconhecimento, então as formas militantes que se afirmaram com a emergência do
capitalismo - a comuna e o partido - não são mais do que declinações colectivas
da excepcionalidade política da amizade.
O discernimento de uma acção
política contemporânea é então esse que descobre um duplo movimento na ideia de
amizade. Por um lado, trata-se de descobrir dentro da experiência da amizade formas
políticas de oposição ao poder. E por outro, trata-se de descobrir dentro das
determinações da política, dentro do terreno material e concreto que esta
desenha, os interstícios por onde forçar as ideias de amizade capazes de
contrariar a captura da totalidade da vida pelo capital.
≡
Ficha Técnica
Data de publicação:
07.06.2018