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Quanto do teu «saal»
são lágrimas de Portugal
Álvaro
Domingues
Pedro Levi
Bismarck
Dois textos: de Álvaro Domingues e Pedro Levi Bismarck em formato de
comentário ou de cadáver esquisito a
propósito da exposição “O Processo SAAL: Arquitectura e Participação, 1974-1976”
patente no Museu de Serralves, Porto, entre 1 de Novembro 2014 e 1 de Fevereiro
de 2015. Exposição dedicada ao SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), um
projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril de
1974. A exposição apresenta 10 projectos documentados através de maquetas,
fotografias históricas, gravações sonoras, documentários e filmes de 8 e 16mm.
Inclui igualmente uma série de encomendas fotográficas aos fotógrafos André
Cepeda, José Pedro Cortes e Daniel Malhão e uma instalação da artista Ângela
Ferreira. Esta exposição é comissariada pelo curador independente Delfim Sardo.
Organização do Museu de Serralves em colaboração com o Canadian Center for
Architecture.
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Álvaro Domingues
Era manhã de domingo na branca catedral. Os fiéis deambulavam
em suas erráticas procissões, ora ensimesmados parando para fixar o olhar e o
pensamento, ora distraídos com seus amigos, filhos, encontros mais ou menos
esperados, bocejos e alegrias. No templo da religião sem deus e incerta crença,
cumpre-se o ritual da visitação e da inspecção de salas e paredes entre
cogitações existenciais e curiosidades intermitentes. A suspensão do tempo
comum dá lugar à flutuação.
O SAAL em retrospectiva tem tudo que o presente não tem:
fervor revolucionário, sangue quente, voluntarismo, generosidade, povo,
participação, estética e revolução. Por isso migra tão facilmente para a sua
condição de mitologia datada na história e nos factos e por isso também ainda mais
mitológica porque enredada entre realidade, ficção, utopia, fingimento, arma de
arremesso e doce nostalgia. Faltava uma manobra potente de estetização. Aí está
ela. O caso blindou-se. Mesmo que se tenha perdido a fé, as coisas veneradas
passaram do culto para a arte sacra e assim ecoam por múltiplas esferas e
rituais de rememoração.
Hoje a arquitectura de intervenção é um tédio para entreter
pessoas (expressão que não designa entidades políticas) que participam e que
partilham (expressão corrente no mundo morno e leviano do livro das faces) em
eventos devidamente registados para depois prolongarem artificialmente o seu
ciclo de vida até se dissolverem no éter voraz da informação e dos
acontecimentos. Por isso o passado é tão calmo e reconfortante. É ainda
melhor que o futuro porque já aconteceu e por isso teve lugar. É só contar como
foi em tempo mais que perfeito, de preferência pelas partes envolvidas porque
assim o legitimam como testemunhas encantadas, a cores e ao vivo em 3D para lá
do aborrecimento mudo das fontes mortas.
O sistema está sofisticado. A grande narrativa das causas e
dos princípios absolutos decompôs-se em labirintos. Qualquer enunciado sobre
qualquer coisa, qualquer massa de milhões imediatamente é capturada por este
dispositivo multifunções que tudo separa em porções menores, relações instáveis,
expressões vagas, e equações diversas. Mil planaltos. A função é a dissipação:
dissolver sólidos e evaporá-los.
Siga pois a função. Não se esqueçam, porém, que outros são os
tempos e que não se enchem angústias e perplexidades de hoje com comidas
requentadas e vol-au-vent. Porque os
abismos são terríveis e muitas as inseguranças, queremos mentiras novas, como
está escrito nas paredes. É que as utopias, sobretudo as reais, podem ser
tóxicas se esconderem atrás da sua celebração o que as moveu e ainda move.
Oh deixai
de edificar
tantas
câmaras dobradas
mui
pintadas e douradas
que é
gastar sem prestar.
Alabardas,
alabardas
espingardas,
espingardas
nam
queirais ser genoeses
senam
muito portugueses
e morar em casas pardas.
Gil Vicente (1514), Auto da Exortação da Guerra
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Pedro
Levi Bismarck
Walter Benjamin escreveu
algures em Parque Central que “o souvenir
é a relíquia secularizada”. Acrescentando
logo a seguir que “nele reflecte-se a crescente auto-alienação do indivíduo que
faz o inventário do seu passado como haveres mortos”. Se a relíquia vinha do
cadáver (dos santos), diz Benjamin, o souvenir procede da experiência morta, ou daquilo a que se chama eufemisticamente a vivência. O comércio dos souvenirs
sucede assim ao comércio das relíquias. Por exemplo: os souvenirs que
coleccionamos vindos de Paris, da Grécia ou do Tibete, são os substitutos dessa
experiência que o turista anseia profundamente mas que nunca consegue realizar.
São os emblemas de uma experiência morta,
impossível, de uma vivência que irá
certamente compor maravilhosamente bem os álbuns ou as clouds fotográficas, mas que pouco poderá acrescentar ao turista no seu tempo do ócio. O souvenir nada tem para dizer a não
ser que não pode dizer nada. Ele é o emblema que está em vez da experiencia que
não se teve e por isso é um fetiche, recompensa
o turista da sua eterna insatisfação e entrega-o, enfim, ao reino das
mercadorias.
Que algo se tenha transformado em souvenir significa que
deixou de pertencer à topologia das coisas no quotidiano, que deixou de ter precisamente
um “valor de uso” (o pártenon souvenir, a Veneza souvenir). Mas também
significa que a relação que se estabelece com esse objecto já só é possível
através do “valor de exposição”. Isto é que a nossa relação com as coisas já só
se concebe a partir de um olhar estético e não a partir de um olhar histórico. A
visão desinteressada do turista é o
olhar estético. Não procura nada mais que o objecto que tem à sua frente, não
procura extrair dele nenhum conhecimento, nenhuma história, nenhuma razão. A
sua relação é a da empatia e do gosto.
O turista é hoje a figura preponderante do museu. O objecto de
consumo pode ser de outro grau, mas a relação que se estabelece é a da vivência e da empatia de um domingo bem
passado, em família, e ainda por cima, libertando a consciência para esse fim
bem burguês e elevado que é o da contemplação desinteressada. Não é por acaso
que na grande parte dos museus a loja dos souvenirs adquiriu já um espaço
assinalável. Também é certo que os museus têm procurado contrariar essa
relação, promovendo serviços educativos e acções paralelas que procuram
estabelecer um outro tipo de ligação e conhecimento com a obra em exposição.
Umas com mais sucesso que outras.
A consagração do SAAL à categoria de objecto de exposição
teria obviamente de se haver com esse limbo dramático onde caminham os museus e
os seus objectos actualmente. O facto do título da exposição ser o “Processo SAAL”
abria, porém, uma janela de esperança. O envolvimento de alguns dos
intervenientes e a expectativa de amostragem de um espólio valioso, o facto de
a tónica ser posta no processo
parecia admitir a possibilidade de um modo de apresentar e de expor capaz de
responder às exigências de um processo que apesar de curto no tempo foi
bastante complexo e heterogéneo, tendo inúmeras implicações e sequelas. Tanto
no que diz respeito às políticas da habitação em Portugal, como no que diz
respeito à própria visibilidade da arquitectura portuguesa e da Escola do Porto.
E, contudo, nenhuma dessas questões parece ter sido endereçada
pela curadoria da exposição. A queda do SAAL no maravilhoso mundo dos souvenirs
é imediata mal se entra na primeira sala, entre os ruídos nostálgicos de
gravações e os cartazes de intervenção pendurados melodramaticamente nas
paredes brancas do museu. As vitrinas guardando as relíquias desse tempo passado acentuam mais ainda essa
distância convertendo-as em curiosidades bric-à-brac,
as cópias heliográficas arranhadas, os projectores de slides à “época” e a
parede funerária com os nomes inscritos dos participantes nos vários projectos
adquire aquele último suspiro de homenagem e louvor aos mortos pela grande
batalha da habitação social em Portugal. Mas tudo sem grandes distinções e
requintes. A pobreza ascética dos meios disponíveis, dos elementos expostos,
das próprias impressões, está entre a expectativa do low cost e do retro, da
escassez e do precário. O “processo”, a chave de leitura do que foi o SAAL,
está ausente, mas também a própria arquitectura e os seus moradores. Nem um
deles teve direito a figurar nas encomendas fotográficas, sem desprimor para os
fotógrafos. Talvez seja que essa ausência diga muito mais do que tudo o resto.
Mas nada disso é relevante, no final tudo se dissipa numa atmosfera nebulosa e esbranquiçada
de desenhos, maquetes, fotografias, que não chegam sequer a cumprir aquela
inicial vaga promessa de estetização que pelo menos os museus e as curadorias
tão habilmente aprenderam a fazer.
Esgotada e não cumprida a transformação do SAAL em objecto
museológico, a sua estetização e elevação à categoria de relíquia sagrada, ficou
por cumprir aquele que de facto poderia ter sido o grande objectivo deste
projecto expositivo e curatorial. E qual era? Pois é precisamente isso que fica
por saber. Mas não será de todo impossível considerar que os limites desta
exposição sejam já os limites da interpelação feita pela equipa curatorial ao “Processo
SAAL”. Talvez o problema se coloque precisamente no tipo de questão que se
endereçou ao objecto em causa, no tipo de objectivos que motivaram e orientaram
essa incursão pelo “Serviço de Apoio Ambulatório Local”. Neste sentido, a
verdadeira questão que podemos dirigir não será tanto a pergunta-homenagem, a
inquirição historicista e nostálgica que procura saber «o que foi o SAAL?» ou
«onde está o SAAL?». Não se trata de interpelar os sonhos ou a memória
esquecida do “Processo SAAL”, de o classificar e enterrar num gabinete de
curiosidades como relíquia santificada, vendida enquanto indulgência para
salvar a consciência da disciplina na sua progressiva conversão em prática
burocratizada, tecnocrática e despolitizada. A potência do gesto SAAL só poderá
ser passível de ser compreendida e, por isso, actualizável, não na homenagem,
não na celebração que nos remete nostalgicamente e esteticizadamente para o seu
tempo, para a sua época, como lembrança de um passado ao qual jamais se poderá
voltar, mas no movimento contrário. Não se trata de o interrogar, mas deixar
que seja o SAAL a interpelar-nos, a interrogar a nossa contemporaneidade. Mas também
não se trata de instrumentalizar o SAAL ou de simplesmente o trazer para o “presente”,
mas de o colocar numa relação directa e íntima com o fazer e o pensar da
arquitectura na actualidade, na sua relação com a cidade e com a sociedade, com
aquilo que somos e fazemos enquanto arquitectos hoje. Em suma: nem homenagens,
nem lições. Talvez algo que seja preciso voltar a aprender. Algo que tem a ver
com o ser arquitecto e o fazer-se arquitectura. E aí talvez seja possível
voltar a encontrar a potência do gesto SAAL, certamente não (apenas) no museu,
mas nas escolas e nos currículos de arquitectura, nos ateliês e no debate
arquitectónico.
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Nota da edição
Ver também crítica de Ana Catarina Costa ao Simpósio
“SAAL:
em retroprospectiva”, organizado a 10 de Maio de 2014 em Serralves.
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Imagens
Exposição “O Processo SAAL: Arquitectura e
Participação, 1974-1976”. Museu de Serralves.
©
José Carlos Melo Dias (Flickr)