1+1=3 \ Ana Catarina Costa



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1 + 1 = 3
Tarkovski: a “Nostalghia” da duração
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Ana Catarina Costa

O tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas. A montagem não pode determinar o ritmo (neste aspecto, ela só pode ser uma característica do estilo); na verdade, o fluxo do tempo num filme dá-se muito mais apesar da montagem do que por causa dela. O fluxo do tempo, registrado no fotograma, é o que o diretor precisa captar nas peças que tem diante de si na moviola. (1)
“Esculpir o Tempo”: o tempo enquanto factor crucial e determinante na captação de tomadas, na selecção e (re)criação de realidades emocionais. Fragmentos são entendidos na sua duração, explorando o decorrer do tempo, esculpindo-o em função da pressão e das emoções que dele resultam.“Nostalghia” pode entender-se como um trabalho da duração: o registo do fluxo de vários tempos, a sua conjugação num só tempo, criando um ritmo que se compõe pela compilação e desfragmentação em outros tempos que lhe são derivados.
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Reapoderemo-nos pelo contrário de nós próprios, tal como somos, num presente denso e, além disso, elástico, que podemos dilatar indefinidamente para trás fazendo recuar cada vez para mais longe o écran que nos esconde de nós; reapoderemo-nos do mundo exterior tal como é, não somente na superfície, no momento actual, mas em profundidade, com o passado imediato que o pressiona e lhe imprime o seu élan; habituemo-nos, numa palavra, a ver todas as coisas ‘sub specie durationis’: imediatamente o tenso se distende, o adormecido desperta, o morto ressuscita na nossa percepção galvanizada. (2)
Da noção bergsoniana de duração, o passado apresenta-se como “élan vital” convocado para a significação do presente. Ao atribuir profundidade aos actos mais instantâneos do quotidiano, o passado reveste o presente de camadas, conferindo-lhe densidade, permitindo uma revisitação de atmosferas nas experiências contemporâneas.
A memória é a ferramenta de acesso ao passado (3), de ingresso aos compêndios que se vão formulando e que ajudam a qualificar coisas e acções. Durante o processo de rememoração não se faz uma indagação aos dados exactos do passado, pois de exacto eles têm pouco – a imaginação coopera com a memória (esta consiste num campo nebuloso que vai ganhando formas distintas com o passar do tempo) e vai-a reformulando, num sistema de reinscrição (4) constante.
A memória vem de alhures, ela não está em si mesma e sim noutro lugar, e ela desloca. (5)
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Chegamos a duvidar de ter vivido onde vivemos. Nosso passado está em qualquer outra parte e uma irrealidade impregna os lugares e os tempos. (6)
O sentimento de nostalgia advém da melancolia causada pelo desencontro com algo pertencente ao passado. Porém, a ligação com o passado que a caracteriza consiste num processo de sobreposição do passado em relação ao presente, da sua prevalência e até da negação deste em favor daquele. Essa negação é destrutiva. Memórias do passado avolumam o presente, avassalam o homem, não lhe concedendo espaço.

Fotograma de Nostalghia.
1 + 1 = 1. Domenico afirma que a soma de duas gotas resulta numa gota maior e não em duas gotas. Passado e presente serão um só. No entanto, a sua união não resulta num presente denso, mas sim num predomínio de uma parte, a fusão num estado, o estado de nostalgia.
A nostalgia alimenta-se da memória, do passado, alienando o presente. O processo de rememoração, quando recorrente, valendo-se sempre das mesmas memórias, torna-se numa reinscrição insistente: uma operação sobre as mesmas atmosferas, as quais não consistem mais no que foi absorvido, mas sim no que a imaginação delas fez. O desvanecimento do que foi dá lugar a uma ideia muito mais clara e definida de algo que se pensa ter sido, mas que é ilusório. Um passado imaginário, sobrevalorizado, sonho que se crê mais real e satisfatório que o universo circundante; uma incompreensão dos elos que ligam ao mundo exterior por prisão a essa ideia, por submersão nesse estado.
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Mise en abyme, cair no abismo. Os interseccionismos existentes ao longo do filme amplificam esta condição, mesclando sonho e realidade, na intensificação atribuída ao universo do sonho. Experiência fragmentada, cortada, descontínua, demarcando vazios cheios e cheios vazios. A perpetuação desta existência condena o homem a um tempo irreal, imaginário, que lhe coloca um problema de contemporaneidade. A realidade assoma-se somente nos umbrais, nessas intersecções em que algo do presente suscita o passado e ganha qualquer coisa mais que alheamento. Mas também eles serão cobertos de recordações, sobreposições insistentes, agregando os umbrais ao mundo fictício.
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A nostalgia advém do constrangimento do presente em prol de uma liberdade sonhadora? Ou a excessiva liberdade provoca o constrangimento aos baús redesenhados do passado?
O factor que conduz à nostalgia poderá desfazer-se, abrir portas à repressão que fomentava essas lembranças desejadas e possibilitar o seu reencontro. A liberdade, após o estado de nostalgia, será um abismo. O que se deseja já não é o que foi deixado; para além das mudanças que essa realidade possa ter sofrido, o desejado não corresponde ao que se deixou, é fruto do mundo do sonho.
1 ≠ 1 + 1. Esta constatação renega o regresso ao universo deixado – existiriam irremediáveis desfasamentos com a realidade. Para voltar ao que se deixou, ter-se-ia que destruir tudo o que se lhe seguiu. Os temores têm fundamento, nada mais haverá que o confronto entre os dois mundos, a constatação de um abismo que impede um viver sincrónico.
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1 + 1 = 3. O passado deverá pertencer ao presente. O presente não se deverá cingir nem submeter somente ao passado. Imaginação e sonho são mecanismos de percepção e apreensão, modos de libertação e inscrição no presente vivido, no encontro de umbrais que amplificam a experiência presente.
Os dois não se reduzem a um; presente e passado somados são três: cada um deles em si mesmo, sabendo que o presente cambia constantemente (futuro passa a presente) e o passado se vê incrementado (presente passa a passado), e ainda a relação e interacção entre eles, interpretação do passado no presente. É dessa interacção, ao originar um terceiro significante, que resulta a possibilidade de se ser contemporâneo. Uma duração contínua.
A imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior. Para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição… não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem. (7)
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Através das associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo. Ele passa a participar do processo de descoberta da vida, sem apoiar-se em conclusões já prontas, fornecidas pelo enredo, ou nas inevitáveis indicações oferecidas pelo autor. Ele só tem à sua disposição aquilo que lhe permite penetrar no significado mais profundo dos complexos fenômenos representados diante dele.(8)

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Referências
1. Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 139
2. Henri Bergson, A Intuição Filosófica, Lisboa: Edições Colibri, 1994, p. 66
3. “Memory is the present’s mode of access to the past. The past is preserved in time, while the memory image, one of its elements, can be selected according to present interests.” In Elizabeth Grosz, Time Travels. Feminism, nature, power, Durham: Duke University Press, 2005, p. 103
4.“A memória prática é regulada pelo jogo múltiplo da alteração, não só por se constituir apenas pelo fato de ser marcada pelos encontros externos e colecionar esses brasões sucessivos e tatuagens do outro, mas também porque essas escrituras invisíveis só são claramente “lembradas” por novas circunstâncias. O modo de rememoração é conforme ao modo da inscrição.” In Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 163
5. Idem, p. 163
6. Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 71
7. Andrei Tarkovski, 2002, op. cit., p. 41
8. Idem, p. 17
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Ana Catarina Dinis Costa. Doutoranda em Arquitectura na FAUP desde 2012, é arquitecta pela mesma instituição. Tem-se dedicado à investigação.