SRU: Da Farsa à Tragédia | Pedro Bismarck




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Da Farsa à Tragédia
A SRU-Porto Vivo
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Pedro levi Bismarck

Este cartaz pertence ao programa da Conferência sobre «Reabilitação Urbana e Espaço Público» organizada pela SRU - Porto Vivo, a decorrer no próximo dia 3 de Abril. Excluindo Manuel Salgado (que aliás parece vir na condição de vereador) não parecem existir outros arquitectos neste programa de festas, mas, acima de tudo, não parece haver nenhum debate dito de arquitectura: falam os gestores, os sustentáveis, os económicos, os presidentes de câmara. Em suma, fala o capital em peso, mas não há ninguém, como aliás não há ninguém na SRU, para falar daquilo que deveria ser, afinal, a sua missão: a «reabilitação». E para se fazer reabilitação (ainda para mais em áreas classificadas de «Património Mundial da Unesco») é preciso ter arquitectos, falar com arquitectos, discutir (imagine-se lá) arquitectura: casas, tipologias, formas, métodos, técnicas, custos, obras.
O que a SRU faz não se chama «reabilitação», chamar-se-á quanto muito «negócio» ou, talvez, «imobiliário», essa terra devastada onde tudo é sacrificado à solidão dos números, dos lucros mais imediatos e dos negócios mais escuros. Tudo isto mascarado por uma operação de cosmética urbana, cujos resultados conseguem ser tão encantadores como o rosto daquelas senhoras que procurando escapar da sua própria idade, exibem triunfalmente um rosto esticado e sem rugas, mas tão inexpressivo e deformado, que dificilmente se pode dizer que seja seu. O «Passeio das Cardosas», o mais recente capítulo da arquitectura portuense, é uma dessas senhoras botox que, no seu glamour provinciano pequeno-burguês, passeia o mais reles dos tecidos como a seda mais exótica (o «Intercontinental» é exemplo de tudo isso, vejam-se as estantes do seu Caffé repletas de livros feitos de estuque).
Mas a ironia que, desde há muito, se tornou insustentável é todo o silêncio (não sem alguma lamentação, diga-se, de alguns resistentes), toda a apatia da classe e, sobretudo, das instituições que a representam perante todo este cenário. Por todos os lados, ouvimos falar, até à exaustão, dos pritzkers, dos pringles e pretzels portugueses (sempre prontos a surgir e a consumir); das bienais, da discrição, da identidade, do orgulho, da especificidade da chamada arquitectura portuguesa. Por todo o lado se mobilizam e afinam os aparatos mediáticos em torno da promoção e da defesa dessa arquitectura. Golpe estratégico de marketing da Nau Catrineta Portugal, da arquitectura como produto que urge exportar ao serviço da belle économie nacional. Golpe estratégico que, dizem-nos, irá contribuir para o tão desejado reconhecimento social da profissão em Portugal. (Atenção, nada contra o justo reconhecimento nacional e internacional de Siza e Souto Moura, aquilo que se torna absurdo é toda a apropriação mediática em torno destes).
Enquanto isso, enquanto se lançam as naus do caminho marítimo da arquitectura portuguesa e enquanto se vende no planeta sozinho do turismo essa meca nacional da arquitectura: «Porto: cidade dos pritzkers, capital da arquitectura» segue a inevitável e silenciosa tragédia local. Não bastou à especulação imobiliária desbaratar o território da suburbanidade, vira-se agora contra os centros históricos; tábua de salvação do grande império falido da construção civil e, claro, de mão dada com o Estado e com as melhores teorias económicas, sempre prontas a justificar todas as suas acções.
Há, de facto, um necessário e urgente reconhecimento do papel e do lugar do arquitecto na sociedade portuguesa. Mas essa luta, que nos cabe quotidianamente (tarefa de todos: dos que fazem, dos que escrevem, dos que ensinam, dos que representam), não se fará enquanto pritzker-marketing, ego-votações em sites como o archdaily, arte à lá Joana Vasconcelos, mas na capacidade comum de intervir sobre os problemas do presente, das cidades, das formas-de-vida, do tempo e do espaço, da habitação e do público, e, claro, da reabilitação. Não se trata de, agora, cada um ir a correr reclamar o seu pequeno projecto, mas da classe profissional (ordens, secções regionais, instituições de ensino, associações, arquitectos) se mobilizar e marcar uma posição decisiva, perante algo que, neste caso, começou como farsa, mas salvo inversão urgente, não terá outro fim senão a tragédia. Será esse o legado que iremos deixar às gerações futuras? É que se nada for feito não haverá mais a tão apregoada «cidade dos pritzkers», mas simplesmente, «pritzkers sem cidade».