Pedro Levi Bismarck
O último véu antes do terrível
Os céus de Pequim
«Durante o fim-de-semana, a poluição na capital
chinesa registou níveis nunca antes vistos e considerados perigosos pela Organização
Mundial da Saúde (OMS). Segundo a OMS, a média de concentração de minúsculas
partículas de poluição – 100 vezes mais finas do que um cabelo humano – não
deve ultrapassar os 25 microgramas por metro cúbico. Acima dos 100, o ar é considerado
não saudável e ao atingir os 300 as crianças e os idosos devem permanecer
dentro de casa. Leituras oficiais chinesas revelam, no entanto, que, no sábado,
os níveis de poluição em Pequim ultrapassavam os 400 microgramas por metro
cúbico, diz a BBC. Monitorizações não oficiais da embaixada dos Estados Unidos
registaram valores superiores a 800 microgramas.»
Jornal Público, 14 de Janeiro de 2013
Talvez as próximas imagens de simulação tridimensional, minuciosamente
produzidas pelas empresas de arquitectura para todos esses edifícios em construção
acelerada no território hoje conhecido como República Popular da China – imagens
que trespassam encantadamente cada vez mais o nosso quotidiano –, possam, por um breve momento,
abandonar o seu brilho espectral azul e dar a ver um pouco mais do verdadeiro
ar que ali se respira.
As imagens, companheiras fiéis da nossa distracção, parecem-nos
afirmar sempre lá de cima: nós estamos aqui, nós somos o único que existe, nós agora
somos o real absoluto. E somos belas. Mas por detrás desse brilho, com o qual
elas não desejam mais que cobrir toda a face do mundo, está ainda o real. E o
real aparece, por vezes, é certo, também na forma de imagem. Contudo, a imagem
verdadeira não é aquela que cobre o real, mas a que procura, ainda, des-cobrir esse manto engenhoso e cínico
com que os discursos e o marketing encheram
até à exaustão o ar irrespirável da nossa atmosfera. Quanto mais avança a
colonização avançada do capitalismo pelo território fértil das imagens, mais emaranhados
estamos na sua pretensa totalidade; mais encantados e neutralizados estamos pelo
seu canto. Por isso, a imagem que dá a ver o real, que mostra na sua nudez as suas
contradições, que dissipa o véu da estética e que não cede ao (en)canto da sereias
do marketing ideológico, é a imagem
que devemos arrancar do espectáculo e guardar para nós como instrumento de
trabalho, porque ela é, ainda, a única capaz de nos dar essa última réstia de esperança
com que podemos ambicionar libertar o nosso quotidiano do seu jugo.
Se eu gritar, quem poderá
ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum
Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente.
Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo
podemos suportar, e se
tanto o admiramos é porque, impassível, desdenha
destruir-nos.
Rainer
Maria Rilke, As Elegias de Duíno
---------------------
Imagem 1: Fotografia que
acompanhava o artigo do Jornal Público, mostrando o edifício CCTV sob um manto
denso de poluição atmosférica (Reuters/Jason Lee): www.publico.pt/ecosfera/noticia/poluicao-excessiva-em-pequim-gera-indignacao-1580624
Imagem 2 : Imagem tridimensional da
torre CCVT desenhada pela OMA (Rem
Koolhaas) e completada em 2012.