Sobre fazer projectos e a temporalidade que isso implica \ Ana Bigotte Vieira



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Sobre fazer projectos
e a temporalidade que isso implica:
performance, eficácia, resistência e desgaste
Ana Bigotte Vieira

I.
Há qualquer coisa - mais uma sensação do que um discurso bem articulado - neste trailer de Hans Shot First, que eu gostava de convocar. Espectáculo arranque, de e sobre o início, sobre a dificuldade do início, este foi o começo da colaboração de Diogo Bento e Inês Vaz. Vejamos parte do seu trailer (o vídeo pode ser igualmente visualizado aqui):


Paremos aqui (1:11) e fiquemo-nos então com estas duas frases: “sempre nós os dois – e mais um pouco. Nós os dois - e mais um bocadinho.”. E, sobretudo: “O que não é muito interessante, bem sabemos, mas é aquilo que temos À MÃO”.
II.
Avancei com este título (Sobre fazer projectos e a temporalidade que isso implica: eficácia, performance, resistência e desgaste) muito antes de ter escrito este texto e assim, de certa forma, ele passou a funcionar como o projecto da minha apresentação. E um projecto funciona como uma promessa.
Em The Project Horizon: On the Temporality of Making Bojana Kunst parte da proliferação da palavra projecto – estamos todos envolvidos em diversos projectos, por vezes mais do que um ao mesmo tempo, em diferentes latitudes, e muitas vezes quando iniciamos o seguinte não terminámos ainda o anterior – para traçar uma análise daquilo a que chamou uma “temporalidade de projecto”. Na sua opinião, o termo denotaria então um modo temporal, uma atitude projectiva em que se navegaria entre vários projectos (realizados, em curso e não realizados ainda) procurando descortinar um futuro por entre eles alinhavado.
No entanto, e se a imaginação do futuro tem sido terreno para experimentações artísticas colaborativas várias – e pense-se como frequentemente os processos de trabalho colaborativo, por exemplo nas artes performativas, contém em si uma proposta de utopia a realizar ali, durante o tempo do ensaio, durante o tempo que antecede a finalização do projecto [1] – a temporalidade a que Kunst alude, esta temporalidade de projecto, força essa mesma imaginação do futuro a depender de circunstâncias e modos de produção que lhe são totalmente alheios, impossibilitando-a quase de supor e criar modos de vida política e económica diferentes dos existentes. Conhecemo-lo bem: chamamos-lhes candidaturas, concursos, pitching, fundraising. São os momentos de apresentação do projecto, do lacrar da candidatura, da submissão da proposta e do conhecimento dos resultados. São os procedimentos que visam tornar materialmente exequível o que se projectou, reunir as condições de possibilidade para que o projecto realmente aconteça.
Pontuando a sua análise com exemplos concretos de performances em que estas questões são afectivamente trazidas à boca de cena (Kunst analisa Product of Other Circumstances de Xavier Le Roy e Fate Work de Stephano Harney e Valentina Desideri), a autora afirma que o projecto, palavra usada para nomear uma multiplicidade de trabalhos singulares que se dão a ver (e a fazer) enquanto infinita e contínua adição de suplementos discretos, se transformou no horizonte último do fazer actual – e relembro aqui o “tudo isto e mais um bocadinho” que ouvimos há pouco. Mas nesta temporalidade contínua, após a finalização de um projecto é sempre necessário recomeçar de novo pelo que, independentemente das possibilidades abertas, há uma temporalidade que à partida se encontra cerceada pelo seu próprio terminar, i.e., por um lado, pela realização de algo já anteriormente projectado [2] e, por outro, pelo facto de se ter de começar de novo. O que é, evidentemente, um paradoxo dado que a continuidade consiste em: novo projecto, nova promessa de concretização, nova implementação de dívida para com o que há-de vir.
Chegada a este ponto e à noção de ‘dívida’ Kunst justapõe-lhe, num parêntesis, o estado de exaustão como “tonalidade emotiva” (sugestão de tradução de Agamben para as stimmung Heideggerianas [3]), avançando com uma proposta de pensamento da subjectividade assim operante. Diz-nos então: “…and this is also the reason for the exhaustion of the subjectivity that works like that”: EXAUSTÃO A temporalidade de projecto em continuidade levaria a um estado de exaustão.
Nesta dimensão temporal de penhora do por vir, e atentando aos processos de subjectivação desencadeados, encontrar-se-ia uma ligação entre o trabalho criativo e os modos produtivos do capitalismo. É que esta perseguição do horizonte último do projecto influenciaria a aceleração do trabalho criativo requerendo uma contínua e cada vez mais radical individualização do sujeito, que, não obstante e por maior que seja o seu grau de individualização, projecta estandardizadamente, sendo a produção da subjectividade (neste caso da subjectividade que faz projectos) “a mais importante e primária forma de produção, a ‘mercadoria’ que subjaz à produção de todas as mercadorias”, como escreve Maurizio Lazzarato.
Relacionando directamente esta análise com as artes performativas a autora constata o crescente interesse pelos jovens artistas e a multiplicidade de estruturas que alimentam a sua “emergência” (residências, redes, plataformas de formação, mostras de jovens trabalhos), atentando à sua razão de ser. De facto, analisando-o sob o ponto de vista das dinâmicas contemporâneas de produção, em particular no que diz respeito ao trabalho dos artistas é interessante verificar que este interesse deriva não do seu trabalho concretamente, uma vez que este ainda mal começou, mas da “promessa” que as suas jovens práticas encerram: os seus potenciais feitos estão ainda por vir.
O que nos traz de volta ao “e mais um bocadinho”, o tal bocadinho que há-de vir, aquele que é difícil de enumerar no CV porque ou ainda não aconteceu ou excede a sua descrição: aquele de que tão orgulhosa quanto ironicamente Inês e Diogo nos dão conta no trailer que vimos.



Han Shot First, diz-nos a descrição do youtube, é um obra sobre o início e a dificuldade do início que – e por isso o invoco hoje aqui – adopta como tom e como modo uma paródia à celebração. E nisto traz à luz a CELEBRAÇÃO como outra das “tonalidades emotivas” desta temporalidade que vimos projectiva: “Tivemos DGARTES!”, “Fui escolhido para a residência X!”, “Tive bolsa de Y!”, “Fui aceite em H!” “A proposta foi aceite!” “O apoio saiu!” É de celebrar.
É que o trabalho de todas estas jovens promessas está ainda por vir. Fá-lo-ão em cursos, residências, open studios, mostras, apresentações em prédios cedidos provisoriamente, precários pontos de apresentação onde (com sorte, é de celebrar! – daí o tom comemorativo de cada uma destas ocasiões) mais um bocadinho do projecto será levado a cabo, apresentado, adquirirá valor de circulação. O que nos diz algo sobre a instabilidade deste seu valor, que continuamente tem de ser testado e mediado, posto em apresentação (o que faz pensar na figura do virtuoso ou do performer como o trabalhador por excelência do Pós Fordismo, como sugere Paolo Virno [4]).
Kunst especula então sobre o papel dos artistas na produção contemporânea de subjectividades (arrojadas, promissoras, intrépidas) em perpétua condição de “precariedade experimental”: forças de trabalho mal pagas ou não pagas de todo, constantemente em fluxo (de residência em residência, projecto em projecto, apresentação em apresentação, país em país), perpetuamente em processo de transformação porque constantemente sujeitos a escrutínio do público, em aprendizagem constante e concorrência feroz.
Para terminar, a autora propõe três pontos que, a seu ver, poderiam contribuir para colocar fora de cena esta “temporalidade projectiva” e abri-la ao presente:
1.
Não à especulação económica
sobre o futuro valor da arte
(o “promissor”):
Tendo como horizonte a erosão da esfera pública nas sociedades neoliberais e a impotência da arte (por mais politizada que se afirme) em fugir àquilo a que a crítica “populista” chama “elitismo esquerdista”, a autora insurge-se contra uma suposta defesa de que a arte seria boa para a economia e para o mercado, retórica esta que tem minado muita da argumentação sobre os cortes na cultura. Assim, seria importante repensar o valor social e político da arte entendendo-os como intimamente ligados à percepção, ao reconhecimento e à determinação da visibilidade do que temos e poderemos ter em comum.
2.
Sim à apropriação
do tempo presente
“Não é muito interessante, bem sabemos, mas é aquilo que temos À MÃO.” Relembro aqui a segunda frase com que abri este texto. Diz-nos a autora: “Sim à persistência no presente, à duração e à endurance. É de uma importância primordial para a arte e para os trabalhadores neste campo exigir continuidade, persistência e ocupar espaços do presente tanto quanto possível. O que é comum é aquilo que é agora e não o que virá”. Encontramo-nos, e logo vemos para que era o tempo que nos faltava [5]: assim se chama um evento que gostávamos de levar a cabo na plataforma baldioespaço onde se ensaia uma abordagem a que se pode dar o nome de estudos de performance de que faço parte há dois anos. De certa forma isto foi o que ficou por fazer do que fizemos em Montemor-o-Novo (Setembro 2013) e no Teatro Maria Matos (Março 2014) quando organizamos eventos onde tentávamos, a um tempo só, ensaiar praticas de hospitalidade e pensamento crítico (no primeiro) e organização colectiva (no segundo): Encontramo-nos, e logo vemos para que era o tempo que nos faltava.
“Logo vemos” foi justamente aquilo para que nos faltou tempo quando já nos tínhamos encontrado, ao menos no lugar. Foi aquilo que não chegámos a fazer: mas como reunir as condições para tal? E como fazer para que quando essas condições estiverem reunidas, aquilo que sentíamos como necessidade não se tenha já transformado noutra coisa? O título paradoxal deste evento que queremos fazer – mas que (paradoxalmente, também) não é um projecto – é, no fundo, uma forma de reclamar a possibilidade do presente: como criar formas de permitir ao presente readquirir o seu valor temporal, a complexidade e cumplicidade mútua que o constrói sem cair numa retórica que em tudo lembra o comércio da individualista auto-ajuda? Por via de que estruturas tal poderia ser feito? Como passar da ansiedade e da antecipação para uma posição de presente, não um presente cristalizado mas um presente em devir, feito de negociações, acordos, conflitos, encontros?
3.
Não à excelência
e à conclusão de projectos
Neste terceiro e último ponto a autora propõe a recuperação de diferentes modalidades do quotidiano que na actual economia do tempo se assemelham a luxos: preguiça, lentidão, falta de eficiência, bloqueio, resistência a ser global, perder-se na complexidade das próprias ideias, chegar atrasado, levar tempo, ter reticências quanto a estar e a fazer coisas em todo o lado ao mesmo tempo. Mas isto não como afirmação da suposta “preguiça boémia dos artistas”, que desmonta enquanto mito, mas numa espécie de afirmação Bartlebiana da recusa: “I would prefer not to” (eventualmente um pouco à semelhança das teses Agambenianas sobre a inoperatividade).
Segundo Kunst, a desvalorização da arte faria então parte do interesse capitalista geral de que cada um trabalhe para o seu interesse particular – estando os modos do seu fazer estruturados de forma a serem administrados através da temporalidade projectiva para que as suas propostas não possam durar no presente nem articular-se com nenhum momento comum.
Mas voltemos então a Han Shot First, o que não é muito interessante, bem sabemos, mas é aquilo que temos À MÃO. Na candidatura à DGARTES, usada como material do espectáculo e colocada propositadamente disponível no seu blog pode ler-se:
Han shot first é a primeira criação de dois jovens actores independentes. Desde já convém esclarecer que Han shot first nasceu do desenvolvimento de uma ideia prévia de ambos os criadores, intitulada primeira obra. Devido a circunstâncias de programação do Teatro Taborda e a outras de cariz profissional (Diogo Bento e Inês Vaz foram convidados para trabalhar com outras companhias de teatro), este trabalho foi sendo adiado (e desenvolvido) até, finalmente, ter data de estreia marcada para (...) o Teatro Taborda, integrado no ciclo TRY BETTER, FAIL BETTER, com o título com que agora se apresenta. (...) Ainda que possa parecer irónico, a denominação do ciclo onde este espectáculo surge integrado vem mesmo a calhar. Han shot first fala da tentativa, da falha, de dois anti-heróis e do início de dois criadores que executam a sua passagem ao acto.
Como se vê, esta é uma obra (neste caso uma primeira obra) cujas condições de produção são em tudo semelhantes às enunciadas acima. Do blog do espectáculo constam igualmente uma série de fotos sobre esta primeira vez, este feriado nacional na vida de Diogo e Inês, que, como é natural, celebram. O que nos traz de volta à questão das tonalidades emotivas características desta temporalidade de projecto: CELEBRAÇÃO (Tivemos DGARTES!”, “Fui escolhido para a residência X!”, “O apoio saiu!”) e, como vimos, EXAUSTÃO (por se ter de cumprir tudo o que foi proposto no projecto, por preencher formulários e avaliações e relatórios) seriam, então, os dois estados que, por via desta cinética projectiva, à vez, ou quem sabe por vezes em simultâneo, nos atravessariam, moldando os nossos movimentos, os nossos corpos, as nossas emoções, o nosso viver em relação. São estas tonalidades emotivas e as suas conseguintes declinações corporais e relacionais que hoje gostava de trazer para esta conversa.
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Referências
1. Ver a este respeito a análise que Bojana Bauer faz do processo de trabalho de Vera Mantero "Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza" in Bojana Bauer The Makings of … Production and Practice of the Self in Choreography: The Case of Vera Mantero and Guests.
2. “We can also reflect upon the project with the help of Gilles Deleuze and his conceptualization of the difference between virtual and possible: the project can only disclose the possible, it does not belong to the virtual, the possibility is already implemented in it. In that sense, it does not belong to the realm of change.”
3. “(…) maneira fundamental como o ser está, a cada vez, já disposto.” Cfr Agamben, o Aberto.
4. Paolo Virno, em A gramática da multitude, faz da figura do “virtuoso” − de que o paradigma seria o bailarino, o músico, o orador empolgado… (o performer, em suma) – aquele cuja actividade se cumpre em si mesma, sem que dela resulte a produção de um objecto exterior, e cuja actividade exige a presença dos outros − um eficaz objecto de análise das mutações pós-fordistas do trabalho. De acordo com o autor, “com o nascimento da Indústria Cultural, o virtuosismo converte-se em trabalho massificado” porque nesta, a “actividade comunicativa, que em si mesma se cumpre, é um elemento central e necessário. O trabalho assemelha-se então cada vez mais a uma “execução virtuosa”.
5. Este evento parte de uma ideia de Sílvia Pinto Coelho, após reflexão sobre os dois eventos anteriores de grande escala organizados pelo baldio em 2013 e 204 e o seu título, originalmente de Nuno Leão, deriva de uma conversa entre este e eu, em que Nuno se referia às actividades do Grupo de Tradução baldio, a actividade mais regular desta plataforma.
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Imagens
Frames do trailer de Han Shot First. Um espectáculo de Diogo Bento e Inês Vaz, co-produzido pelo Teatro da Garagem, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Ver vídeo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=tgJ0RbFnIjo
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Nota de edição
Comunicação apresentada no seminário “Pensamento Crítico Contemporâneo e Trabalho” organizado pela Unipop e Revista Imprópria, realizado no dia 11 de Outubro de 2014, no ISCTE-IUL, com a colaboração da Associação de Estudantes do ISCTE. Mais info aqui.
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Ana Bigotte Vieira
Doutoranda em Ciências da Comunicação – Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias na FCSH-UNL, tendo sido Visiting Scholar em Performance Studies na NYU-TISCH entre 2009 e 2012. Estudou História Moderna e Contemporânea no ISCTE. A sua investigação incide sobre o papel performativo dos Museus de Arte Moderna, centrando-se nas transformações culturais por que Portugal passa após a entrada na União Europeia. Dramaturgista e investigadora, trabalhou com Gonçalo Amorim, Miguel Castro Caldas e Bruno Bravo, Manuel Henriques, Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, entre outros. É fundadora de baldio |Estudos de Performance e dramaturgista. Juntamente com Sandra Lang (CH), com quem co-edita a revista Jeux Sans Frontières, tem organizado uma série de eventos discursivos e performativos em torno da relação entre arte e política. Traduziu vários autores entre os quais Mark Ravenhill, Pirandello, Agamben, Lazzarato.