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Arquitectura pela arquitectura
(Lacaton et Vassal: mode d’emploi)
José
Capela
Um dos fenómenos que marcou a arquitectura da
transição do século XX para o XXI foi uma arrebatada competição entre
arquitectos para produzir o ângulo mais insólito, a curva mais subtil, o
sistema de «repetição e diferença» graficamente mais eloquente... Já nada disso
está na moda. Entretanto, face à falência da prática política enquanto
construção ética, face à crise económica que daí resultou e, acredito, face
também à necessidade do mercado de substituir essas imagens por outras, surgiu
no panorama arquitectónico internacional um outro fenómeno: uma vez mais na
História, procura-se a redenção da arquitectura através do entendimento da sua
prática como serviço social.
A oposição entre estas duas acepções de
arquitectura não é muito interessante. De um lado, está uma ideia de âmbito
disciplinar conservadora: a arquitectura enquanto «escultura do espaço», ou
apenas escultura — uma ideia de artisticidade insolitamente alheia a fenómenos
como, por exemplo, os readymade que Marcel Duchamp começou a produzir há 100
anos. Do outro lado, está uma desistência da arquitectura enquanto arte: uma
arquitectura transformada em moral. Trata-se da oposição entre devaneio
retiniano e abnegação missionária. Ou entre estética e ética... Dualidades!
Estas considerações servem aqui para criar um
pano de fundo ao qual vou contrapor, a seguir, a defesa de que o trabalho de
Anne Lacaton & Jean-Philippe Vassal, na sua singularidade, foi capaz de definir
um tipo de artisticidade para a arquitectura no qual ética e estética não se
distinguem.
Quando se observam os projectos de Anne
Lacaton & Jean-Philippe Vassal, verifica-se que há um conjunto de
princípios que lhes é comum. Pela sua constância e sobretudo pela sua
coerência, esses princípios acabaram por consubstanciar um programa ético
reconhecível. (1) A configuração de espaços visa sobretudo aquilo que neles
potencialmente pode acontecer, em detrimento de qualquer efeito «plástico». (2)
A linguagem é desvalorizada enquanto tal, a favor de uma construção cujos
constituintes materiais parecem escolhidos e agregados de modo estritamente
funcional, ou seja, com vista apenas à efectivação técnica dos espaços e à sua
climatização. (3) O preço da construção é controlado de modo a que, usando o
montante disponível, se possa construir edifícios com maiores áreas do que
seria de prever. (4) A especulação criativa em torno do programa conduz, muitas
vezes, a que os edifícios sejam suporte para mais coisas do que seria, à
partida, de prever. (5) As formas e os usos característicos dos espaços
interiores e do «chão» exterior são miscigenados; assim se criam, por exemplo,
espaços com a ambiguidade própria das estufas, ou espaços exteriores elevados à
semelhança dos que Le Corbusier inventou (as coberturas-jardim ou os jardins
suspensos dos immeubles-villas, por
exemplo). Julgo que assim se conciliam, por um lado, uma ideia de «uso» distante
de qualquer determinismo (o uso dos espaços é matéria de invenção para quem os
usa) e, por outro, alguns princípios enunciados no âmbito do movimento moderno.
No que respeita a estes últimos, já me referi à filiação moderna das situações
de ambiguidade interior/exterior mas, para prosseguir no argumento, gostaria de
referir-me a um outro aspecto: a desvalorização do objecto, inerente aos
pontos (1), (2) e também (3).
A desvalorização «plástica» do objecto
arquitectónico e a sua redução a um artefacto estritamente funcional (uma
máquina, mais do que ser bonita, deve funcionar) podem ser encontradas no
ideário racionalista de Hannes Meyer — na sua «arquitectura que já não é
arquitectura». A linguagem é o resultado directo dos requisitos técnicos da
construção: quer dos requisitos relativos aos procedimentos construtivos, quer
dos relativos à objectiva eficiência do artefacto arquitectónico. Em vez de as
vicissitudes da construção serem contornadas de modo a desaparecerem e a
emergir uma outra lógica formal (uma «linguagem»), recorre-se a uma linguagem literal em relação a essas vicissitudes.
A linguagem é portanto uma consequência, e não um objectivo. É deduzida da
necessidade, e não objecto de uma intencionalidade autónoma. Torna-se literal.
Lacaton
& Vassal, ENSA (Escola Nacional Superior de Arquitectura), Nantes, 2009. Fotografias:
Paulo Catrica.
Quer isto dizer que a aparência dos edifícios
deixa de ter qualquer significado? Julgo que não. Pelo contrário. Há uma
diferença assinalável entre a construção literal como puro expediente
(constrói-se assim porque não se considera a questão da linguagem) e a
construção literal proposta por alguém que opta deliberadamente por ela como linguagem. Desde que a possibilidade de
uma linguagem literal passou a fazer parte do corpo teórico da arquitectura
(designadamente na obra de Hannes Meyer), ela passou a ser uma linguagem por
direito próprio. Não há arquitectura de autor sem linguagem. A literalidade é,
inclusive, mais do que meramente «mais uma» linguagem: é um statement sobre a linguagem. É uma linguagem (uma determinada lógica
formal inerente à aparência das construções) contra a linguagem (contra a centralidade que pode ser atribuída a
essa lógica formal como factor qualitativo da arquitectura).
Se houve um contexto artístico no qual as
linguagens literais foram sistematicamente utilizadas, foi o da arte
conceptual. Também nesse âmbito a obra de arte foi subordinada a intenções que
não se centravam no estatuto formal do objecto. As obras de arte conceptual são
a tradução literal da ideia que as define. Concretizar uma obra passa, então,
por encontrar a forma mais banal que possa veicular essa ideia. Trata-se de um
processo que tende a não acrescentar dados à ideia que não aqueles que derivam
necessariamente da própria circunstância de concretização. A passagem do
conjunto de dados contidos na ideia (entidade abstracta) para uma obra com uma
forma e/ou uma matéria (entidade concreta) é directa, ou seja, é uma passagem
centrada no rigor com que se corresponde aos dados e não visa dotar a obra de
qualidades derivadas da concretização em si mesma. Não há lugar na obra para
qualquer qualidade formal ou material que não vise a estrita correspondência
com a ideia. As decisões sobre a forma (designadamente, se for esse o caso,
sobre o «desenho»), sobre os materiais ou sobre a execução não visam um
qualquer maneirismo que possa «enriquecer artisticamente» a obra. A introdução
de quaisquer factores de sofisticação formal apenas produziria ruído
morfológico.
Na arte conceptual, quando se recorre a
imagens ou objectos, eles têm uma aparência banal, desafectada. É comum
recorrer-se ao que é genérico: objectos-tipo, fotografias de carácter
documental, escrita manual ou lettering
vulgar como o das máquinas de escrever ou o que é utilizado nos jornais,
desenhos esquemáticos, tabelas e diagramas, mapas, folhas de papel de uso
corrente ou simplesmente arrancadas de cadernos, fotocópias, material de
escritório como dossiers de argolas, fita-cola, papel milimétrico... em suma,
coisas sachlich.
Em sentido inverso, a ideia que define
«aquilo que a obra é» caracteriza-se pela sua natureza sintética — o que exclui
quaisquer preciosismos de ordem formal que ultrapassem o estritamente
necessário à ideia em si mesma. É essa síntese que permite que as obras sejam
enunciáveis, ou seja, resumíveis a um enunciado simples.
Em arte, uma obra ser enunciável significa
que existe um enunciado que é capaz de sintetizar o que essa obra é e,
consequentemente, de sintetizar o seu significado. Apesar de a concretização
da obra poder acrescentar ao enunciado um conjunto de fenómenos inerentes à
concreta interacção observador/ obra, em última análise o enunciado encerra o
significado da obra. Os readymade de Marcel Duchamp, inauguradores da
enunciabilidade, são exemplares. Fountain,
de 1917, é uma obra que pode ser definida como: um urinol pousado sobre a face destinada a ficar voltada para a parede,
assinado pelo seu autor (enquanto arte), e apresentado em contexto expositivo.
Por muito que a experiência de percepcionar a obra possa ser estimulante, esta
definição é suficiente para retirar da obra (ou do seu enunciado) o significado
que ela possa ter. É isto que, por definição, se verifica em todas as obras de
arte conceptual. É isto que caracteriza a enunciabilidade.
Lacaton
& Vassal, FRAC (Fundo Regional de Arte Contemporânea Nord-Pas de Calais) em
Dunquerque), 2013. Fotografias: Paulo Catrica.
A arquitectura é uma coisa muito diferente da
arte. Mas esta enunciabilidade pode ser identificada em algumas obras de Anne
Lacaton & Jean-Philippe Vassal. Por exemplo, a Casa em Coutras (2000) pode ser definida como: duas estufas justapostas — uma que serve de revestimento exterior a um
volume que contém os espaços domésticos essenciais, outra deixada livre como
amplo espaço de transição entre interior e exterior. A Casa em Lège, em Cap Ferret (1998) é: uma caixa metálica elevada sobre pilotis e atravessada pelo tronco dos
longos pinheiros que ocupam o terreno. A sede de The Architecture Foundation, em Londres (2004), é: um edifício com quatro pisos amplos, todos
atravessados pela escultura gigante de uma mulher sentada no chão. O FRAC Nord-Pas de Calais, em Dunkerque
(2013) é: um hangar industrial existente
que ganha um seu duplicado, que lhe é justaposto e que, ao contrário do
original (opaco e amplo), é transparente e contém um conjunto de percursos e
espaços flexíveis, sobrepostos em vários pisos. A Praça Léon Aucoc (1996)
é: uma praça cuja configuração é aquela
com que se encontrava. É um puro readymade.
A arquitectura é uma coisa muito diferente da
arte, mas a enunciabilidade — o desinvestimento naquilo que as coisas parecem,
a favor daquilo que as coisas são — cumpre um propósito semelhante em ambas. A
ausência de entertainment visual
desvia o entendimento da obra para outro lugar: para um lugar baseado na desilusão.
No limite, o desapontamento que obras deste tipo podem causar conduz à pergunta
«Mas isto é arte?» ou «Mas isto é arquitectura?». E, daí, o exercício da
consciência pode avançar para a questão «O
que é arte?» ou «O que é
arquitectura?». Portanto, longe das variações formais em torno de um modelo
reconhecível de arte ou de arquitectura, trata-se de obras cujo alcance é a
especulação sobre os próprios contornos daquilo que pode ser considerado
«arte» ou «arquitectura». São obras auto-reflexivas.
O que diferencia a arquitectura é o facto de
ela ter a limitação e a oportunidade de
criar obras que servem de suporte ao quotidiano. A arquitectura é feita para
que nela aconteçam coisas, e não para que seja ela o acontecimento. É essa a
sua especificidade enquanto prática artística. E é por isso que Anne Lacaton
& Jean-Philippe Vassal, ao mesmo tempo que parecem recuperar os 100 anos de
atraso da artisticidade da arquitectura, criam obras que são radicalmente
arquitectónicas: espaços abertos a que quem as habita lhes invente o uso.
Na arte, as práticas conceptuais esgotaram-se.
A desvalorização do objecto a favor da auto-reflexividade — a favor de voltar
as obras sobre si próprias — esgotou-se. Sendo a obra de arte conceptual
exclusivamente sobre si própria enquanto «obra de arte», quando ela se esgota
enquanto o seu próprio tema, não sobra nada. Na arquitectura não é assim. Os
objectos arquitectónicos não são auto-suficientes. Na arquitectura, o apagamento
do objecto (ou seja, a desvalorização do objecto enquanto tal) não conduz a um
vazio. Apaga-se o objecto, mas resta a função que ele é capaz de cumprir. Resta
o fundamental: a fértil capacidade desse objecto de servir de suporte ao
quotidiano. Resta aquilo a que se chama «arquitectura». Pelo menos na obra de
Anne Lacaton & Jean-Philippe Vassal é isso que acontece.
A desvalorização «conceptualista» do objecto
(um programa estético) e a valorização do uso (um programa ético) são uma e a
mesma coisa. Arquitectura.
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Nota de
edição
O texto “Arquitectura pela arquitectura” que
aqui se reproduz foi escrito para o catálogo da exposição “Lacaton et Vassal: mode d’emploi” do fotógrafo Paulo Catrica; uma
incursão fotográfica por duas obras da dupla de arquitectos franceses: o FRAC
(Fundo Regional de Arte Contemporânea Nord-Pas de Calais) em Dunquerque, e a
ENSA (Escola Nacional Superior de Arquitectura) em Nantes. A exposição esteve
patente no CAAA – Centro para os Assuntos
da Arte e da Arquitectura, Guimarães, entre 31 de Outubro e 30 de Novembro
e foi comissariada por Pedro Bandeira e Ivo Oliveira. O catálogo foi editado
pela Pierrot le fou em Dezembro de 2014. A “Pierrot le fou” é
uma editora dedicada à fotografia, fundada em 2012 por Dulcineia Neves dos
Santos, Susana Lourenço Marques, Bruno Figueiredo e Pedro Bandeira, sito em
Porto e Basileia.
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José
Capela
Nasceu em 1969. Arquitecto (FAUP, 1995) doutorou-se com a dissertação Operating conceptually in art. Operating
conceptually in architecture. É docente na Universidade do Minho desde
2000, leccionando actualmente nos cursos de arquitectura e de teatro. Foi um
dos comissários da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010. Em 2003, fundou a
mala voadora com Jorge Andrade, com quem partilha a direcção artística, sendo
responsável pela cenografia dos espectáculos. Escreve e apresenta comunicações
regularmente, sobre arquitectura e sobre teatro. Em 2013, publicou o catálogo
de cenografia modos de não fazer nada.
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Paulo
Catrica
Nasceu em 1965, é fotógrafo, estudou no Ar.Co
(1985), concluiu o mestrado em Imagem e Comunicação no Goldsmith’s College
(1997) e o doutoramento em Estudo de Fotografia na University of Westminster
(2011).
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Imagens
As imagens publicadas são todas da autoria de
Paulo Catrica e pertencem ao catálogo da exposição “Lacaton
et Vassal: mode d’emploi”.