Ainda
há pouco tempo, o pensamento político radical oscilava sobretudo entre dois
eixos: 1968 e 1989. A coincidência dos números invertidos metaforizava os pontos
de viragem decisivos do imaginário contemporâneo, desde a hipótese de mudança
revolucionária ao beco sem saída do fim da história. A última década, no
entanto, deslocou o holofote para o intervalo esquecido entre duas eras
icónicas, tanto na cultura popular como na produção académica, da análise
económica de Thomas Piketty, O Capital (2013), aos ensaios críticos de
Franco “Bifo” Berardi, do filme documental de Adam Curtis, Hypernormalisation
(2016), às ficções artísticas de Stan Douglas (2012-16). Subitamente, a
década cinzenta, insolvente e rarefeita surge como a chave do presente, com as
suas crises do petróleo, infra-estruturas decadentes, recessões globais e o
colapso do sistema monetário como a causa da desregulação do mercado, da
política de austeridade e da privatização do espaço social: em suma, da nova
ordem neoliberal. Cavalgando a onda, o novo estudo de Michael Hardt, The
Subversive Seventies (2023) — o primeiro, em trinta anos, sem a companhia
de Toni Negri — propõe, todavia, o exercício inverso: em vez de recuar a essa
década para identificar a origem dos nossos males, entrevê-a no futuro como o
princípio das nossas possibilidades. Não insiste em retraçar, pela enésima vez,
o desmantelamento do estado social ou a ascensão da finança global, mas
resgata-a pela capacidade preciosa de dar nomes e criar os mecanismos para a
luta política de hoje. Assumindo a falácia inerente a toda a periodização,
Michael Hardt afirma inequivocamente que, apesar da convulsão revolucionária,
os anos 60 “marcaram o fim de uma era”, ao passo que os anos 70 “marcaram o
início da nossa era”, tendo semeado novas formas de poder mais difíceis de
fixar, difusas e descentralizadas.
O estudo
assenta sobre a premissa de que é uma certa memória cultural que tem servido de
obstáculo à imaginação política. Por um lado, pela impostura dessa imagem de
que ao clímax de utopia revolucionária sucedeu o derrotismo, e depois a
paralisia. Por outro lado, por uma fixação obsessiva com a espectacularização
da violência dos pequenos grupos de luta armada (como os Baader-Meinhof, as
FP25, as Brigadas Vermelhas, ou o Exército Vermelho Japonês). A falsa dicotomia
entre a violência e a não-violência, segundo Hardt, eclipsou o facto mais
extraordinário da década: as experiências democráticas imaginativas e radicais
elaboradas de forma autónoma pelos movimentos de massas. Com as comemorações do
25 de Abril em marcha, importa não deixar inapercebida tal abordagem, ainda
para mais quando o fulcro da atenção deste filósofo político recai justamente
sobre o caso de Portugal, Guiné-Bissau e Moçambique, enquanto modelo de experiências
revolucionárias em democracia que pretenderam não assimilar o formato
hegemónico da Europa, mas antes reinventá-la experimentalmente. As estruturas
esclerosadas daquela que foi a mais longa experiência autoritária e colonial da
Europa, deixaram um vácuo que permitiu forjar novos imaginários políticos, com
conceitos e práticas incipientes de democracia para abrir um caminho
alternativo aos poderes políticos centralizados.
Ao
invés de recitar a proverbial história da crítica e resistência aos regimes
autoritários, ou de recapitular as formas violentas de repressão e confronto,
Hardt coloca a tónica na audácia com que os processos revolucionários ousaram
refazer o mundo de baixo para cima, inventando formas de participação política
no local de trabalho, no bairro urbano, ou no meio rural — debulhando paralelos
improváveis entre Setúbal em Portugal, Kwangju na Coreia do Sul, Santiago no
Chile ou Fatsa na Turquia. O foco estratégico em modelos espontâneos e
excepcionais de autogestão elegeu, como denominadores comuns a estas lutas, o
poder popular, a democracia revolucionária e a liderança colectiva, misturando
ambiciosamente exemplos da Europa, América, África e Ásia. A finalidade deste
notável exercício revisionista — uma palavra cuja conotação negativa permanece
um enigma do passado recente — de Hardt veio encontrar aqui respaldo nas
afirmações do historiador Robin D. G. Kelley, “com demasiada frequência, os
nossos padrões para avaliar os movimentos sociais existem em função de se foram
ou não “bem-sucedidos” na realização das suas visões, e não em função dos
méritos ou do poder das visões em si mesmas.”
A
segunda parte deste livro detém-se essencialmente sobre os conceitos de
multiplicidade e de articulação, como ideias estruturantes de uma década na
qual, segundo Michael Hardt, a luta contra a exploração capitalista não apenas
se tornou irreversivelmente transnacional, como se expandiu por todo o mundo
para incluir outras comunidades e formas de opressão em torno da raça, do
género, orientação sexual ou classe — a génese daquilo a que hoje se denominou
a interseccionalidade. O fim da centralidade do operário enquanto actor
principal da luta política e como paradigma de resistência contra as estruturas
opressivas foi uma oportunidade, e não uma tragédia, de acordo com Hardt,
afirmando que os projectos teóricos mais interessantes da década, aqueles que a
implantaram firmemente na era presente, foram os que cruzaram fronteiras para
atacar as estruturas interligadas do poder. É esse o contributo mais fascinante
do livro, o modo como persegue e sintoniza os ecos entre movimentos à medida
que surgiram em diferentes pontos geográficos, entre tradições culturais ou
circunstâncias políticas diferentes, exprimindo uma contaminação absoluta e
produtiva — cruzando, por exemplo, o levantamento dos camponeses na Nicarágua
com o caso do Black Consciousness Movement na África do Sul, ou a resistência
civil à construção do aeroporto de Narita, perto de Tóquio, à insurreição dos
operários negros da indústria automóvel nos EUA. Os exemplos da multiplicidade
e da articulação das lutas políticas sucedem-se, mesmo que de uma forma
assumidamente fragmentária, como exortação a uma outra história ainda por
escrever — e quem recorda, na verdade, os lençóis estendidos ao longo da Rua
132 em Harlem, em 1973, a fim de projectar o documentário de Robert Van Lierop,
A Luta Continua, sobre as zonas libertadas da FRELIMO em Moçambique, para
a comunidade afro-americana? Ou quando, no mesmo ano, milhares de litros de
vinho português foram colectivamente derramados no porto de Boston, em acto
solidário com o caso das Três Marias em Lisboa? Ou ainda meses depois, em 1974,
quando os activistas da Weather Underground dinamitaram a sede da Gulf Oil em
Pittsburgh, acusando-nos de financiarem a guerra colonial de Portugal em
Angola?
Todos
estes exemplos derivam daquilo a que Hardt chama “fim da mediação”, a sua
teoria-mestra para articular a nossa condição política do último meio século. A
recusa das chefias em aceder às reivindicações dos trabalhadores, a relutância
do Estado em responder à pressão social com reformas governamentais, o progressivo
desmantelamento das estruturas comunitárias, e a crescente ineficácia das
formas de protesto, deixaram-nos face ao declínio dos mecanismos e das
instituições de mediação política que eram os pilares do poder executivo e
económico até meados do século passado, ameaçando as condições básicas da
sociedade democrática, e precipitando uma mudança no modo como os movimentos
operam. A resposta para o fim da mediação, para Hardt, não passa tanto por
aquela que ainda ocupa o lugar central na memória cultural, a de confrontar as
instituições dominantes em termos iguais, mas antes na elaboração de projectos
autónomos. Qualquer leitor de Hardt reconhecerá no ponto de chegada o próprio
ponto de partida. Ao percorrer as várias frentes de batalha contra as
“estruturas de dominação”, Hardt proclama que a verdadeira libertação consiste
numa governação democrática de baixo para cima, e não de cima para baixo,
emancipando-se assim da liderança tradicional de governos, partidos ou
sindicatos. O mais convincente nesta releitura autonomista da história recente
é, todavia, o modo como nota que a libertação — talvez o termo mais comum de
todas as lutas políticas de então — simplesmente desapareceu do léxico político
contemporâneo. A libertação parece ter-se esgotado numa garantia de igualdade,
a ideia da participação activa acabou se metamorfosear na obtenção de
representatividade, e o projecto de transformação social foi equiparado a um
reconhecimento de direitos. A libertação enquanto objectivo e possibilidade, ou
seja, a transformação da subjectividade colectiva e das estruturas políticas
contra os poderes instalados, tem de ser recapturada hoje, apela Hardt. O facto
da maior parte dos movimentos ter falhado o alvo não deve ser determinante, não
significa, no entanto, que isso deva ser despiciente. Mas Hardt insiste
militantemente que é preciso “analisá-los e apreciá-los com relativa
independência face aos resultados obtidos”. O ímpeto fundamental deste livro é,
por isso, uma tentativa de repensar a década não como uma história de falhanços
(o fim de um ciclo determinado por um problema interno), mas antes de derrotas
(um recomeço depois de perder contra forças externas). É a recuperação, no
fundo, de uma audácia perdida que tem por objectivo o reconhecimento da
multiplicidade da vida, a revitalização da cultura democrática, e a libertação
pessoal e colectiva. No livro mais histórico de Hardt, nem sempre se mergulha
profundamente em cada caso, e não será difícil criticá-lo pelos sobrevoos
convenientes. Mas em certo sentido, reside aí a força da polémica. Ao cortar
diagonais entre os mais inesperados processos subversivos, aquilo que sobressai
é a tal audácia: por vezes, é urgente dar um passo maior do que a perna.
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Afonso Ramos
Investigador no Instituto de
História da Arte (NOVA FCSH/IN2PAST), Editor Associado da Revista de História
da Arte e Professor Auxiliar Convidado na NOVA FCSH. Foi Professor Auxiliar
Convidado na Universidade de Coimbra, bolseiro no Forum Transregionale Studien/Freie
Universität Berlin e doutorou-se pelo University College London. Co-editou recentemente
os livros Ernesto de Sousa 1921-2021 (IHA, 2023); Photography in Portuguese
Colonial Africa, 1860-1975 (Palgrave Macmillan, 2023); Activism: Documents of
Contemporary Art (The MIT Press, 2023); e editou O Castelo Surrealista de Mário
Cesariny (Documenta, 2024) e Hoje Soube-me a Pouco (Tinta-da-China, 2024).
Nota da edição
Recensão do livro de Michael
Hardt, The Subversive Seventies, New York: Oxford University Press,
2023.
Ficha Técnica
«Michael Hardt: refazer o mundo
de baixo para cima» • Afonso Dias Ramos
Data de publicação: 17.02.2025
Edição #43 • Inverno 2025 •