Bestiário do Imobiliário III \ Álvaro Domingues




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Bestiário do imobiliário 3
Álvaro Domingues

1.
Estou aqui há que tempos com a cabeça encostada a este muro a pensar. Não se ouve o barulho do contador da água nem da luz. Nunca foram ligados. Viemos aqui todas em rebanho comprar casas. Foi um cão que nos trouxe; dizia que era pastor: cão pastor. Estamos com a corda ao pescoço com os bancos e o sacana do construtor desapareceu sem fazer as casas. Até já tenho a lã das tosquias dos próximos 20 anos empenhadas, 10 cordeiros e 200 litros de leite. Não me importo com o leite e a lã. Vender filhos é que não! Agiotas! Agora tomamos conta deste terreno. Quem quiser vir para aqui mandar bitaites terá que se haver connosco. Resistiremos até à fase do ensopado de borrego.
A luta continua! 



2.
Este animal de soquetes brancos sou eu, a égua. Antes de ter mudado de sexo, era um dos cavalos do motor do carro do meu patrão. O meu patrão tinha uma fábrica de almondegas para o IKEA para onde iam, dizia ele, todas as minhas amigas e colegas que entretanto nunca mais vi (terão emigrado? Terão ido a Ascot às corridas no countryside?). Para além desta fábrica, o meu patrão tinha também o tal carro desportivo com um motor que tinha, dizia ele, duzentos cavalos. O homem era megalómano e disparatado. Duzentos cavalos nem lhe cabiam na fábrica, quanto mais no carro. Fábrica é uma maneira de dizer; isto aqui ao lado é um barraco onde entra vento e chuva por todo o lado. Agora diz que vem aí uma inspecção do banco e das finanças e o homem pôs-se a queimar coisas, papéis, facturas. Sabe-se lá o quê mais, mas já sai fumo branco. Diz que é por causa do papa novo. Eu não sei; ele já se pôs ao fresco. Isto está uma barafunda tal que me deixa louca de relinchar aqui presa. Que farei quando tudo arde?, como dizia Sá de Miranda que ainda não sabia que tudo que é sólido se dissolve no ar (em fumo).



3.
Pode não parecer mas o meu parente mais próximo é o monstro de Loch Ness, uma besta inclassificável que nem deve ter estado na Arca de Noé. Nunca o vi, acho os escoceses bastante convencidos e não me parece de todo apropriado usar aquelas saias ao xadrez e a gaita-de-foles ao dependuro.
Uma verdadeira gaita é este negócio em que me meti. Tinha tudo para dar certo: as casas com vista para a lagoa, os desportos aquáticos, a criação de patos, a pesca e tudo, e tudo, como em Veneza mas mais perto e com menos turistas. Agora, tenho a impressão de que tudo se vai afundar nesta pasmaceira de águas paradas. Tudo é miragem e flutuação. Nem um escocês para comprar uma só casa da lagoa; só ricos para lavar dinheiro em mansões acima de um milhão de euros.
Sinto a humidade no plástico das entranhas; arde-me a crista verde de tristeza. Levantarei vôo com estas asas rachadas e irei para os confins da Antárctica. Venderei casas de gelo que são imunes à febre imobiliária.



4.
Quem desce a Serra Algarvia a caminho dos ardores do sol e do mar sereno, vai avistando esta marca indelével de saúde e bem-estar: as piscinas e a sociabilidade intensa que proporcionam.
É assim o nosso branding: cinco empresárias corajosas e naturistas que recusam o fado e os balcões frigoríficos dos talhos e se fizeram à vida no admirável mundo do negócio imobiliário do eco-resort. Só temos este problema com a inconstância atmosférica. De Inverno, chove que alaga tudo; de Verão, ou mantemos a água na piscina, ou se secam os relvados, coisa que põe os clientes nervosos porque dizem que não se deitam no restolho e nos cardos. Isto dos clientes também é coisa que nunca está satisfeita; se não é o restolho, é o pó, se não é o pó, são os mosquitos.
Está tudo muito parado. Talvez seja melhor oferecer umas aulas de fitness para atrair vacas gordas e o tempo mudará.
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Imagens
Fotografias do autor.
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Álvaro Domingues
Melgaço, 1959. É geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
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Ficha técnica
Data de publicação: 25 de Setembro de 2013
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