Num país
que passa metade do ano a falar da Autoeuropa, da sua importância estratégica para
a economia nacional, para o PIB e para o diabo a quatro, ontem, dia de Greve Geral, dia em que
Autoeuropa parou completamente a sua produção, com níveis de greve entre os 60%
e os 95% — considerando as empresas satélite —, não houve nem uma reportagem
televisiva sobre um facto tão determinante para a medição do sucesso da greve —
exceptuando pequenos apontamentos em alguns jornais de referência como o Jornal de Notícias.
Não é
estranho: ontem assistimos em directo na televisão, sobretudo nos telejornais,
em horário nobre, a uma tentativa consumada de liquidação política desta greve
geral, para a transformar numa «greve da função pública», uma «greve dos mesmos
de sempre», uma greve «inexpressiva», como referiu Luís Montenegro, não-representativa
dos interesses desse «povo sereno» a que Leitão Amaro fazia referência.
Ficaram
as imagens das estações de comboio vazias, das «pessoas que queriam ir
trabalhar mas não puderam», dos «vândalos que provocam desacatos», mas não
houve nem uma imagem de uma fábrica em greve, nem uma reportagem, nem uma notícia,
sobre os trabalhadores que decidiram em muitos casos de forma plena aderir à Greve
Geral. Toda a linha orientadora foi a de construir a imagem de uma greve de
funcionários públicos e de sectores de esquerda e de extrema-esquerda, contra o
«povo trabalhador», colocado pelos media, como espectador e vítima de um
processo que não só nada tinha a ver com este, como estava mesmo contra este.
É
certo: a greve não contou com uma adesão generalizada nas pequenas e médias
empresas, sobretudo serviços, onde, por vezes, as relações laborais estão
demasiado próximas das relações sociais com uma grande proximidade entre
trabalhadores e patrões e em sectores de forte atomização e pouca sindicalização.
Mas aquilo que esta greve prova é que aí onde a solidariedade colectiva do
trabalhador impera houve condições reais de mobilização. E é justamente isto
que a Greve Geral deixa em aberto: como reconstituir linhas de solidariedade
entre trabalhadores imigrantes, sindicatos, precários, estudantes, numa luta
que não se pode cingir à recusa do pacote laboral ou à liberalização do mercado
de trabalho, mas a um processo em marcha de expropriação absoluta de direitos não
apenas laborais, mas políticos, sociais e, no limite, existenciais, no sentido
em que são as condições mesmas da nossa existência que foram postas em causa
pela máquina neoliberal.
É
preciso fazer a greve e, simultaneamente, furar a greve, isto é, escapar
ao mecanismo institucionalizado que impõe as suas formas, os seus limites — temporais
e espaciais —, que a circunscreve e a pacifica no exercício do direito
constitucional estabelecido à greve, para que a vida, enfim, possa voltar «à normalidade»,
quando é a «normalidade», justamente, o problema político maior que temos
diante de nós: a normalidade e a normalização de desigualdades
sociais e económicas brutais, a normalidade e a normalização de
uma progressiva escravização do trabalho.
Não
fosse a intervenção de André Ventura, distanciando-se activamente do pacote
laboral, quase poderíamos ter ficado convencidos do fracasso real da greve, tal
foi o esforço a que a comunicação social se dedicou para anular os seus efeitos
e significado político. É também essa a outra lição da greve: é preciso,
seguindo uma fórmula canónica, tomar os meios de comunicação. Não é
apenas contra a Assembleia da República que o manifestante deve exercer a violência
do seu direito de expressão e o seu direito à violência da expressão,
mas contra o complexo político-mediático: justamente porque é essa expressão
aquilo que ele, o manifestante, o dēmos da democracia, está — hoje, cada
vez mais — impedido de exercer publicamente e politicamente com o fim da esfera
pública.
Foi
um combate pela democracia aquilo que esteve em causa ontem na Greve Geral: uma
luta da expressão contra a «inexpressividade». Já todos o perceberam
menos a classe média que continua encerrada no entretecer infinito das suas
pequenas ilusões. Ontem, a classe média, cujo nível de solidariedade social
corresponde ao seu nível de auto-alienação, pôde ver representado na televisão,
em horário nobre, com esplendor e mesquinhez, o espectáculo da sua auto-consolação
reconfortadora, mas também a confirmação da sua trajectória histórica em cujo
horizonte apenas pode brilhar a luz crepuscular do fascismo, para o qual esta se
deixa atrair como borboletas na iminente chegada da noite.
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Pedro Levi Bismarck
Editor do jornal Punkto,
investigador, crítico e ensaísta, publicou o livro O Mito de Israel. O
Ocidente, a Política, a Morte (Documenta, 2025).
Imagem
Greve Geral de 11 de Dezembro, Concentração
nos Aliados, Porto. Fotografia de Egídio
Santos.
Ficha técnica
A Greve Nunca Existiu • Pedro Levi Bismarck
Data de publicação • 12.12.2025
Edição #44 • Verão — Outono 2025


