A greve nunca existiu • Pedro Levi Bismarck




Num país que passa metade do ano a falar da Autoeuropa, da sua importância estratégica para a economia nacional, para o PIB e para o diabo a quatro,  ontem, dia de Greve Geral, dia em que Autoeuropa parou completamente a sua produção, com níveis de greve entre os 60% e os 95% — considerando as empresas satélite —, não houve nem uma reportagem televisiva sobre um facto tão determinante para a medição do sucesso da greve — exceptuando pequenos apontamentos em alguns jornais de referência como o Jornal de Notícias.

Não é estranho: ontem assistimos em directo na televisão, sobretudo nos telejornais, em horário nobre, a uma tentativa consumada de liquidação política desta greve geral, para a transformar numa «greve da função pública», uma «greve dos mesmos de sempre», uma greve «inexpressiva», como referiu Luís Montenegro, não-representativa dos interesses desse «povo sereno» a que Leitão Amaro fazia referência.

Ficaram as imagens das estações de comboio vazias, das «pessoas que queriam ir trabalhar mas não puderam», dos «vândalos que provocam desacatos», mas não houve nem uma imagem de uma fábrica em greve, nem uma reportagem, nem uma notícia, sobre os trabalhadores que decidiram em muitos casos de forma plena aderir à Greve Geral. Toda a linha orientadora foi a de construir a imagem de uma greve de funcionários públicos e de sectores de esquerda e de extrema-esquerda, contra o «povo trabalhador», colocado pelos media, como espectador e vítima de um processo que não só nada tinha a ver com este, como estava mesmo contra este. 

É certo: a greve não contou com uma adesão generalizada nas pequenas e médias empresas, sobretudo serviços, onde, por vezes, as relações laborais estão demasiado próximas das relações sociais com uma grande proximidade entre trabalhadores e patrões e em sectores de forte atomização e pouca sindicalização. Mas aquilo que esta greve prova é que aí onde a solidariedade colectiva do trabalhador impera houve condições reais de mobilização. E é justamente isto que a Greve Geral deixa em aberto: como reconstituir linhas de solidariedade entre trabalhadores imigrantes, sindicatos, precários, estudantes, numa luta que não se pode cingir à recusa do pacote laboral ou à liberalização do mercado de trabalho, mas a um processo em marcha de expropriação absoluta de direitos não apenas laborais, mas políticos, sociais e, no limite, existenciais, no sentido em que são as condições mesmas da nossa existência que foram postas em causa pela máquina neoliberal.

É preciso fazer a greve e, simultaneamente, furar a greve, isto é, escapar ao mecanismo institucionalizado que impõe as suas formas, os seus limites — temporais e espaciais —, que a circunscreve e a pacifica no exercício do direito constitucional estabelecido à greve, para que a vida, enfim, possa voltar «à normalidade», quando é a «normalidade», justamente, o problema político maior que temos diante de nós: a normalidade e a normalização de desigualdades sociais e económicas brutais, a normalidade e a normalização de uma progressiva escravização do trabalho.

Não fosse a intervenção de André Ventura, distanciando-se activamente do pacote laboral, quase poderíamos ter ficado convencidos do fracasso real da greve, tal foi o esforço a que a comunicação social se dedicou para anular os seus efeitos e significado político. É também essa a outra lição da greve: é preciso, seguindo uma fórmula canónica, tomar os meios de comunicação. Não é apenas contra a Assembleia da República que o manifestante deve exercer a violência do seu direito de expressão e o seu direito à violência da expressão, mas contra o complexo político-mediático: justamente porque é essa expressão aquilo que ele, o manifestante, o dēmos da democracia, está — hoje, cada vez mais — impedido de exercer publicamente e politicamente com o fim da esfera pública.

Foi um combate pela democracia aquilo que esteve em causa ontem na Greve Geral: uma luta da expressão contra a «inexpressividade». Já todos o perceberam menos a classe média que continua encerrada no entretecer infinito das suas pequenas ilusões. Ontem, a classe média, cujo nível de solidariedade social corresponde ao seu nível de auto-alienação, pôde ver representado na televisão, em horário nobre, com esplendor e mesquinhez, o espectáculo da sua auto-consolação reconfortadora, mas também a confirmação da sua trajectória histórica em cujo horizonte apenas pode brilhar a luz crepuscular do fascismo, para o qual esta se deixa atrair como borboletas na iminente chegada da noite.

 

 


Pedro Levi Bismarck

Editor do jornal Punkto, investigador, crítico e ensaísta, publicou o livro O Mito de Israel. O Ocidente, a Política, a Morte (Documenta, 2025).

 

Imagem

Greve Geral de 11 de Dezembro, Concentração nos Aliados,  Porto. Fotografia de Egídio Santos.

 

Ficha técnica

A Greve  Nunca Existiu • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 12.12.2025

 Edição #44 • Verão — Outono 2025