Heiner Müller,
tem escrito bastante a partir da história alemã, especialmente do
nacional-socialismo. Há algo de especificamente alemão nessa matéria teatral?
Mao
Tsé-Tung disse uma vez que enquanto o nacional-socialismo estivesse ao ataque
seria imbatível. E esteve vertiginosamente ao ataque, no espaço vazio, um
movimento puro, sem freios. No momento em que o ataque chegou a um impasse, às
portas de Moscovo, acabou. A primeira paragem foi também a última. A batalha de
Estalinegrado foi o caixão de Átila, o Huno. O único assunto nacional é a saga
dos nibelungos.
Não foi também
Auschwitz um assunto nacional? É possível, de todo, lidar com este tema no
teatro?
É
difícil. Uma vez arrisquei a pele na Jugoslávia durante a digressão de uma
produção do Teatro do Povo da peça A Batalha. Depois da actuação
abriu-se um debate e eu referi — talvez com alguma imprudência — que Hitler
tinha sido mau a Geografia. Ele fez no centro da Europa o que qualquer europeu
íntegro faria em África, na Ásia ou na América Latina. O genocídio era normal
nas colónias, mas na Europa era uma aberração. Foi aí que Hitler se desviou da
norma. A outra questão é que o anti-semitismo alemão foi tão virulento porque,
provavelmente, se baseava num trauma antigo. Do nosso ponto de vista, nos dias
de hoje, parece estranho que a terminologia usada pelos nazis fosse
frequentemente judaica: por exemplo, o «império dos mil anos». Até 1933, o
anti-semitismo era mais evidente na Polónia, na Rússia, na Europa de Leste. Na
Alemanha, ao contrário do que sucedia em França ou nos Estados Unidos da
América, era menos prevalente. Há uma teoria para isso que me parece bastante
interessante. Depois da queda de Roma, os primeiros missionários cristãos
vieram para a Francónia, onde viviam os francos, a principal tribo germânica em
França e na Alemanha, e os missionários disseram aos francos: «Vocês são o povo
escolhido e, por isso, tendo sido escolhidos, devem tomar a cruz.» E eles
tomaram a cruz. Cem anos mais tarde, os judeus, um outro povo escolhido, chegou
à Europa. Não pode haver dois povos escolhidos, um deles tem de partir. É
totalmente irracional, mas foi isso que os nazis desenterraram do subconsciente
nacional.
O
problema tem também a ver com o próprio Hitler. Há uma lenda que diz que logo a
seguir à anexação da Áustria, a primeira ordem secreta de Hitler foi a
evacuação e destruição de uma pequena aldeia no norte, para que se tornasse num
campo de treino para as tropas. Tratava-se, supostamente, da aldeia onde estava
enterrada uma das avós de Hitler, e havia um rumor de que essa avó tivera uma
ligação com um judeu. Então, a motivação de Hitler também resultou desse medo e
da repulsa que lhe causava o sangue judeu que acreditava ter a correr nas suas
veias. Talvez um outro aspecto dessa motivação fosse o facto de que o nacional-socialismo
só pôde ser concebido com um movimento permanente. Hitler nunca falava no
«Partido», dizia sempre o «Movimento». Há um paralelo em Kleist: os alemães
estão sempre a tentar fugir de si próprios, mas esse movimento tem os seus
limites.
Os
judeus eram o principal problema nesse contexto, porque não podiam ser
assimilados. Encarnavam uma resistência. Os judeus serviam também como álibi,
uma vez que para uma grande parte da população eles eram os capitalistas, um
catalisador para todas as energias anticapitalistas, da esquerda à direita. O
capitalismo chegou à Polónia e à Rússia através de uma economia monetarizada.
Na Idade Média, só aos judeus era permitido cobrar juros, uma vez que, aos
olhos da Bíblia, essa actividade era anticristã. Então, os judeus abriram
bancos e casas de empréstimos e ocuparam o lugar do inimigo ideal. Isso também
explica porque é que a pulsão de base do nacional-socialismo era
anticapitalista. Está demonstrado que, em 1933, as SA eram compostas, em grande
parte, por antigos comunistas. Os nazis foram capazes de se apropriar de uma
grande parte da energia da esquerda. Quando as Wehrmacht ocuparam Creta,
Karl Korsch escreveu numa carta a Bertolt Brecht que «A Blitzkrieg é
energia de esquerda reprimida». O nacional-socialismo foi, efectivamente, a
grande conquista histórica da classe trabalhadora alemã.
Está a falar a
sério?
Podemos
dizê-lo de outra forma: a Blitzkrieg, ou a guerra-relâmpago, foi — depois
da revolução falhada de 1848 — a passagem dos trabalhadores alemães da condição
de explorados para a de caçadores. Com a guerra tornaram-se caçadores.
Ouvimo-lo recorrentemente em qualquer café de esquina. A memória da guerra é a
da maior experiência de liberdade. A guerra tomou o lugar da revolução, tal
como, nos dias de hoje, a violência contra os estrangeiros tomou, uma vez mais,
o lugar de uma revolução nunca levada às últimas consequências. Os judeus
tornaram-se no inimigo ideal porque os verdadeiros capitalistas eram necessários,
de facto, para financiar a guerra. Ficaram na sombra de Hitler, e por isso é
que nunca ninguém lhes tocou.
Mas os
capitalistas judeus foram também desapossados e mortos nos campos.
Sim,
mas as indústrias importantes para a guerra, sobretudo a indústria pesada,
estavam em mãos alemãs — a Flick, a Krupp, a Thyssen. A indústria alemã sempre
sonhou com o cenário actual do Leste. Tentaram-no primeiro com Hitler, mas não
funcionou. Agora têm o que sempre quiseram. A Europa de Leste está rendida aos
seus pés, quer como mercado quer como força de trabalho. Logo em 1943 houve
conferências secretas em Madrid e em Londres com industriais alemães, ingleses
e norte-americanos que estavam preocupados com a divisão do mercado no Leste a
seguir à guerra. Tinham já percebido que as coisas não correriam bem com
Hitler. Foi um erro de cálculo, e agora vão pelo mesmo caminho. Eles nunca
compreenderam a Rússia. Há um conto engraçado de Leskov sobre a Rússia no tempo
de Napoleão. Ele diz que a Rússia é como a massa do pão, podemos apertá-la com
a mão, pisá-la com a bota, golpeá-la com um machado, mas assim que retiramos a
bota ou o machado, a massa volta a expandir-se, cresce e regressa à forma
inicial.
Como explica a
agressividade dos alemães?
Há
talvez uma explicação histórico-económica para isso: os alemães chegaram sempre
demasiado tarde, sobretudo quando se tratava de dividir o mundo. Enquanto
Frederico O Grande promovia as suas guerras regionais, os franceses e os
ingleses estavam a dividir o mundo entre si, o que explica porque é que os
alemães não tiveram colónias. E o que acabou por tornar o capitalismo alemão,
possuído por um espírito de invenção e com uma incrível capacidade produtiva,
no mais dinâmico da Europa. Esta é uma explicação histórico-económica para a
invenção posterior do assassinato em massa tecnologizado. As colónias tornavam
fácil a uma nação dispersar a sua força agressiva pelo globo, ao passo que, na
Alemanha, essas forças ficaram concentradas.
Há
alguns outros acontecimentos na história alemã que contribuíram para formar as
suas características nacionais. A Alemanha está no centro da Europa, pelo que
todas as guerras tiveram lugar inevitavelmente no seu território. Os alemães
nunca foram capazes de imaginar uma guerra que não tivesse duas frentes. Os
ingleses e os franceses podiam enviar os seus criminosos para a Austrália ou a
Argélia, onde continuariam os seus massacres, mas na Alemanha os criminosos
ficavam em casa, tal como a energia criminal — o que naturalmente inclui a
energia criminal do capital. Houve, no entanto, uma discrepância entre a
ideologia dos nazis e os interesses da indústria alemã. A indústria alemã via a
guerra como uma disputa pela força de trabalho. Os nazis, por causa das teorias
raciais de Hitler, entendiam a guerra como a aniquilação do trabalho. O milagre
económico da Alemanha Ocidental é um resultado de Auschwitz. Todas as grandes
empresas alemãs usaram trabalhadores em Auschwitz e noutros campos, em aliança
com empresas norte-americanas e britânicas.
Há provas disso?
Há
documentos em Washington que mostram que os americanos tinham conhecimento dos
campos desde cedo através de fotografias aéreas. Churchill sabia da sua
existência desde 1941. Tudo isso foi mantido em segredo porque a IG Farben, a
Krupp e a Thyssen tinham ligações estreitas com empresas norte-americanas. Na
verdade, o único interesse dos americanos era a destruição da União Soviética.
Porque é que
acha que a esquerda tem tantos problemas para lidar com a questão judaica?
Em
1962, escrevi um texto para um documentário sobre o campo de Buchenwald.
Tínhamos imagens que mostravam que Wernher von Braun visitava com frequência
Dora, o campo periférico de Buchenwald onde eram montadas componentes dos
foguetes V-1 e V-2. Nós queríamos, naturalmente, utilizar essas imagens, mas
não fomos autorizados, com o argumento de que no campo de Oranienburg, onde o
V-2 também era produzido, Manfred von Ardenne, o nosso mais importante físico,
trabalhara nas suas investigações que, mais tarde, viriam a ser a base para a
medicina e a exploração espacial. Posteriormente, Ardenne trabalhou para os
russos. Também não podemos esquecer a máquina de propaganda em massa dos nazis,
que teve muito sucesso a convencer a população de que os judeus eram vermes. A
maioria da população não sabia exactamente o que se passava nos campos porque
as forças ocidentais esconderam essas informações na esperança de que Hitler
viesse a esmagar a União Soviética. Hitler era o pastor alemão a quem fora dada
uma longa trela, a ver se ele ferrava o dente nos comunistas, mas quando se
descontrolou teve se ser amansado.
Mas não é
perigoso reduzir o nacional-socialismo ao fenómeno de Hitler?
Devemos
fazer uma distinção. O gás para as câmaras não era fabricado pelas mesmas
pessoas que depois o usariam. Era a indústria alemã que o fornecia. Os
industriais alemães sabiam bem como seria usado. Essas pessoas ou se reformaram
ou ocupam ainda posições de relevo na indústria alemã. Fala-se muito das bestas
de uniforme SS, mas esquecemo-nos das bestas que estavam sentadas nos conselhos
de administração. Não estou a dizer que as SS ou o exército eram inocentes, mas
devemos compreender as ligações. Os campos de concentração foram um grande
negócio para a indústria alemã. Muita tecnologia foi desenvolvida e testada nos
campos. As tecnologias da morte sempre corresponderam ao estado da arte, e a
tortura é uma das profissões mais velhas do mundo. Os ingleses amarravam os
indianos aos canos dos seus canhões — ainda não tinham inventado nada melhor.
Churchill estava no Egipto quando a metralhadora foi testada pela primeira vez.
Os ingleses usaram a sua tecnologia militar sobre os africanos. As novas
tecnologias foram sempre testadas e implementadas contra as minorias, ou
melhor, contra a ameaça de que viessem a tornar-se maiorias. Todas as
tecnologias modernas orientadas para matar vão um dia ser utilizadas. O
lançamento da bomba atómica sobre o Japão não tinha qualquer sen- tido do ponto
de vista militar, mas foi um sinal enviado à União Soviética. O problema é que
Auschwitz reduziu as inibições.
Isso leva-nos de
volta à questão inicial: Auschwitz é um assunto para o teatro?
Li
uma vez um conto interessante do Stephen King sobre um jovem californiano de
treze anos. O rapaz tinha um hobby: coleccionava documentos,
fotografias, tudo o que conseguisse apanhar sobre os campos de concentração. O
seu interesse era o facto de que «eles fizeram mesmo aquelas coisas». Eles
fizeram o que, para qualquer pessoa, nunca passaria de um sonho. Um dia,
enquanto espera o transporte para a escola, vê um velho que lhe parece
familiar. Procura na sua colecção e encontra o homem numa fotografia vestido de
uniforme SS. No dia seguinte resolve segui-lo até à pequena casa onde vivia num
dos extremos da cidade. O rapaz toca à campainha e mostra-lhe a fotografia. O
velho treme. Não pode negar que, de facto, é mesmo ele. Tem medo de ser
denunciado, mas o rapaz tranquiliza-o: «Não, quero só que me diga como fazia
aquelas coisas. Como é que metia os judeus dentro dos fornos? Como é que os
torturava?» O velho não queria falar, mas o rapaz ameaça denunciá-lo às
autoridades. Então acaba por ceder e conta todos os detalhes. A seguir, o rapaz
diz: «Agora quero ver isso a acontecer.» E no dia seguinte regressa e traz um
cão. E diz: «Pega no cão e mete-o no forno. Mostra-me como é que se consegue
fazer.» Assim acontece e acabam por montar uma empresa que se dedica ao
assassinato, a Murder Inc. Primeiro com cães, depois com velhos indigentes,
meteram-nos a todos dentro do forno.
Eis
o modo como a juventude cresce hoje em dia. O que há de mais horrível na
violência em Rostock ou em Hoyerswerda é que ela faz parte desta sociedade, não
é apenas uma excrescência bárbara. E ao mesmo tempo o fascismo é um produto da
economia de mercado. Nos Estados Unidos, esta forma de violência é muito comum,
mas aqui há algo de novo. Há, por exemplo, um termo usado entre alguns bandos
de jovens alemães que é o «pisão no lancil». Depois de espancarem um imigrante,
e quando ele já está de rastos no chão, pegam-lhe na cabeça, colocam-na no
lancil do passeio e saltam-lhe em cima com as suas botas Springer. Os skinheads
fizeram isso a um africano em Eberswalde. E falam do assunto com toda a
naturalidade: «A cabeça dele estava ali no chão e eu pensei para comigo: porque
não saltar-lhe em cima?» O jovem que disse isto na televisão tem dezanove anos,
trabalha, é serralheiro, e fala disto como uma banalidade, sem um pingo de
emoção.
Queria, uma vez
mais, regressar ao tema ao tema de Auschwitz. O conceito de Graça é um elemento
essencial na minha vida. Quando o ouço a tentar explicar Auschwitz, pergunto-me
como poderemos continuar a invocar a Graça e conservar uma esperança transcendental
num mundo em que tal coisa seja possível.
É
uma boa questão. Auschwitz é o modelo para este século e para o seu princípio
de selecção. Nem toda a gente pode sobreviver, e é aí que entra a selecção.
Quando penso no significado de heroísmo lembro-me de uma pequena história. Num
dos últimos navios a sair da Alemanha havia um corpulento jornalista desportivo
judeu. O navio foi atingido por um torpedo e começou a afundar. Naturalmente,
não havia espaço para todos nos botes salva-vidas, mas o robusto jornalista
judeu conseguiu arranjar um lugar. De repente surge uma mulher com um filho,
mas os botes estavam já lotados. O judeu deixou-se cair para o Atlântico e,
desse modo, já houve espaço para a mulher. É a única resposta possível.
Não sei se
percebi.
Não
é para se perceber. É o problema de Dostoiévski, de Raskolnikov. Também
Dostoiévski só encontrou uma resposta no fim, e isso é a Graça. Assumindo que
Auschwitz é o modelo para a selecção, então uma resposta política é impossível.
Talvez reste uma resposta religiosa. O problema desta civilização é não ter uma
alternativa a Auschwitz.
Agora percebo.
Há
um tópico recorrente em Walter Benjamin. O socialismo, o comunismo, ou qualquer
outra utopia não tem hipóteses se não lhe juntarmos uma dimensão teológica. E
continua a ser uma questão fundamental nos dias de hoje. Tenho outra história
que se relaciona com isto. Uma vez tomei LSD na Bulgária. Na casa onde
estávamos havia uma espécie de arrecadação, uma cave, e estava um grilo enorme
na porta. Na rádio passava música turca ou árabe, música do deserto com uma
toada muito repetitiva, um pouco hipnótica. Havia também um gato que, a dada
altura, apareceu ao pé de nós. Mostrei o grilo ao gato e já sabia o que ia
acontecer. Cinco ou dez minutos depois, o gato lá conseguiu apanhar o grilo e
começou a persegui-lo escada acima, mordia-o, depois largava-o, depois mordia-o
de novo. O grilo começou a coxear. A música árabe continuava a tocar. E eu
observei tudo aquilo muito intensamente, com a droga a distorcer completamente
a minha noção do tempo. Diverti-me, mas ao mesmo tempo também senti repulsa por
me ter divertido. Nunca esquecerei a repugnância que me invadiu pelo prazer que
senti a observar aquela cena em câmara lenta. O que distingue o gato de um
soldado das SS é que o gato precisa daquele alimento para manter o suco
gástrico em ordem. É uma necessidade biológica. O homem não o faz por
necessidade, e é isso que o separa do gato. Matar é um gesto tornado cada vez
mais abstracto, as inibições são cada vez menores. Não consigo imaginar-me a
esfaquear outro ser humano, mas consigo imaginar-me a alvejá-lo, e é assim que
a coisa funciona. Não custa mais do que apertar o gatilho e o outro acaba por
morrer na mesma. A cobertura noticiosa da Guerra do Golfo foi o cúmulo da
abstracção, uma guerra inteiramente abstracta.
É um fenómeno
que começou a aparecer na Alemanha a seguir à Segunda Guerra Mundial?
Não.
Li uma coisa interessante nas memórias de Roßbach, um conhecido chefe dos
Freikorps a seguir à Primeira Guerra Mundial. Ele conta como, certa vez, um
membro da sua brigada, a mando dos Freikorps, matou alguém — um assassinato por
encomenda. Depois do serviço feito, o homem encontra-se com Roßbach e diz-lhe:
«Sinto-me terrivelmente mal. Não sei como conseguirei continuar a viver. Como
pude matar outro homem daquela maneira, sem ser em combate, de homem para homem,
mas pelas costas e a soldo? Nunca mais matarei outro homem e não voltarei a
pegar numa arma.» Este homem era Rudolf Höß, mais tarde comandante em
Buchenwald e em Auschwitz. E tenho ainda uma outra história. No campo de
concentração de Oranienburg havia um soldado SS extremamente brutal. Depois da
guerra, os russos encontraram a sua mulher e contaram-lhe tudo o que o seu
marido fizera no campo. A mulher ficou perplexa. Ele era trabalhador, tinha
sido sempre um bom pai para os filhos, uma pessoa adorável. Os russos
insistiram e perguntaram-lhe se nunca estranhara nada. Depois de pensar um
pouco, disse: «De vez em quando chegava a casa com sangue nas botas.» Quando
lhe perguntava que sangue era aquele, ele respondia: «Hoje mantámos um porco.»
Durante todos aqueles anos, a mulher nunca soube de nada. Enlouquecida com o
que acabara de ouvir, matou os filhos, pegou fogo à casa e desatou a correr aos
gritos. Nos campos de concentração, os membros das SS menos graduados eram
muitas vezes filhos de agricultores. Estavam por isso habituados a matar
animais. Tudo o que era necessário era alimentá-los com a ideologia de que os
prisioneiros não eram pessoas mas animais.
Mas esses
soldados menos graduados não podiam simplesmente recusar-se a cumprir ordens,
por exemplo quando crianças ou mulheres eram seleccionadas para as câmaras de
gás?
Tinham
essa opção, claro. Há uma resposta a essa questão num filme de Konrad Wolf.
Numa cena aparece um antigo prisioneiro de um campo de concentração que
sobrevivera porque tinha a tarefa de retirar os cadáveres dos fornos. Esse
trabalho foi sempre feito pelos prisioneiros. A cada dia, os prisioneiros eram
confrontados com um dilema: «Faço-o ou morro.» O que faríamos numa situação
dessas? Mesmo hoje, esse é o verdadeiro problema. A única resposta a isto é que
cada um de nós está sozinho consigo próprio e com a sua decisão.
•
Heiner Müller
Heiner Müller (1929 — 1995), dramaturgo e escritor alemão, viveu e trabalhou na República Democrática Alemã. É considerado um discípulo de Bertolt Brecht e um dos mais importantes dramaturgos de língua alemã da segunda metade do século XX.
Nota da edição
Conversa de Heiner Müller com jovens realizadores franceses, realizada
em 1995 e publicada recentemente em português em O Futuro é o Mal, uma
edição da Língua Morta (2025) que reúne poemas e duas entrevistas de Heiner Müller,
com organização e tradução de Fernando Ramalho, a quem agradecemos a
colaboração e a cedência da tradução.
Imagem
O maestro Paul Dessau conversa com Heiner Müller durantes os ensaios
de Lancelote, Staatsoper Berlin, 1969.
Via Staatsoper.
Ficha técnica
Auschwitz ad
infinitum • Um debate com Heiner Müller
Data de
publicação • 21.10.2025 •
Edição #44 • Verão — Outono 2025


