Seria preciso
encontrar um termo apropriado para o momento exacto em que um sistema deixa de
ser capaz de dissimular e ocultar as suas próprias contradições. O «acidente» não
é apenas o «milagre invertido», como dizia Paul Virilio, que expõe as
fragilidades da tecnologia e do desenvolvimento: ele é o momento que
expõe, na forma mais trágica possível, as contradições de todo um sistema político-económico.
Está ainda, certamente, por fazer toda uma história do «acidente».
Deste ponto de
vista, o «acidente» com o elevador da Glória não tem apenas um sentido simbólico,
não é simplesmente uma metáfora, mas tem uma materialidade própria. É uma espécie
de ponto de condensação onde se reúnem de forma catastrófica as consequências e
os resultados das políticas económicas neoliberais que uma cidade como Lisboa
tem seguido nos últimos anos: (1) externalização dos serviços de manutenção,
isto é, privatização da manutenção da Carris e dos serviços públicos, isto é, precarização das condições de trabalho e obliteração
das cadeias de transmissão de saber técnico (como realçava Paula Godinho num
texto publicado no Facebook); (2) corte de financiamento da Carris (no ano de
2024) e a aparente transferência de uma considerável verba do orçamento desta
empresa para apoiar esse megaevento que é a Web Summit e, portanto, a
degradação dos serviços públicos essenciais, da infra-estrutura básica da
cidade, à custa do nacional-deslumbramento dos grandes eventos unicórnicos
e da grande epopeia do marketing das cidades-marca e das best destinations.
A idealidade
absurda do neoliberalismo financeiro que Moedas representa é a cidade-Potemkin:
puro fachadismo, pura encenação de si mesma. Cidade sem conteúdo, cidade
reduzida a forma pura da sua rentabilidade económica. E, por isso, a política
da privatização (neoliberal) é, antes de mais, a política de externalização sine die dos
custos políticos e sociais (e, por isso, pode Moedas não se demitir, ao
contrário do que fez Jorge Coelho aquando da queda da ponte de Entre-os-Rios).
O «acidente» do Elevador
da Glória é, de facto, o «acidente» da Lisboa neoliberal: mas este deve ser
visto, igualmente, como sintoma de burnout, sintoma de uma cidade em burnout,
porque há, paralelamente à falta de manutenção, a questão da intensidade e da
violência do uso de uma infra-estrutura que deixou de conseguir responder ao
uso massivo que dela é exigido: justamente, o uso massivo de uma actividade turística
que hoje tomou conta do centro da cidade
de Lisboa, que devora e coloniza inteiramente a cidade. E, portanto, o «acidente»
dá-se no centro, numa das zonas fundamentais de confluência e concentração do
turismo de massas e atinge, justamente, um dos «ícones», uma das «representações»
fundamentais da Lisboa-turística e da sua ideologia.
O «acidente» revela,
assim, de forma tão abrupta, a materialidade social e económica que suporta a
frágil encenação fachadista da Lisboa requalificada, da Lisboa
cosmopolita, da Lisboa alegre, para expor a condição de uma cidade (como tantas
outras) reduzida à pura condição de Luna Park, constituída por
infra-estruturas degradadas e sobrecarregadas, uma cidade explorada
intensivamente até ao ponto do seu colapso por uma especulação imobiliária
animada pela utopia do crescimento sem fim do turismo e da reprodução mágica do
capital financeiro. Neste sentido, devemos ver a impecável cor amarela dos
elevadores como a superfície-ideológica que dissimula a degradação absoluta dos
componentes que constituem a infra-estrutura oculta do funicular. A importância
catastrófica do «acidente» na política moderna é justamente essa: o «acidente» é
o momento em que o reprimido (a infra-estrutura) aparece de forma violenta na
linguagem dissimulada da ideologia política (a superestrutura).
O «acidente» do Elevador
da Glória é o «acidente» do neoliberalismo e das suas instituições:
externalização, privatização, rentabilidade absoluta de tudo e todos até ao
ponto iminente do colapso. Dizia alguém que a arte da política é a mentira. Ora,
o «acidente» é o ponto trágico em que a verdade aparece enquanto tal. Todas as
políticas têm custos e o «acidente» é, justamente, a forma política em que o custo aparece. Para a lógica política da contemporaneidade a fórmula só pode
ser uma: quanto maior o «acidente», maior a mentira.
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Pedro
Levi Bismarck
Editor
do jornal Punkto, crítico, investigador e ensaísta.
Ficha
técnica
«Lisboa, política sem glória» • Pedro Levi Bismarck
Data de publicação • 04.09.2025 •
Edição #44 • Verão — Outono 2025