O Fim da Revolução • Pedro Levi Bismarck





O argumento segundo o qual a CDU deveria ter apoiado a candidatura de Alexandra Leitão não tem nenhuma lógica política a não ser na démarche própria das paixões partidárias. A questão, na verdade, deveria ser posta ao contrário: por que razão deram o Bloco e o Livre apoio político a um programa que de «esquerda» tem muito pouco e não se reuniram em torno de João Ferreira?

No rescaldo dos anos da Troika, a gerigonça foi inevitável, assim como foram os seus custos políticos a longo prazo. Dez anos depois, Bloco e Livre, por razões diferentes, continuam a perseguir o sonho da geringonça como uma frente de esquerda. Mas para isso era preciso que o PS fosse de esquerda. E ainda que o comentariado nacional assim o proclame, o PS nada tem de esquerda (veja-se o malogrado destino de Pedro Nuno Santos).

A estratégia de continuar a orbitar em torno do planeta PS pode ter ganhos políticos para Rui Tavares, mas não terá certamente para a esquerda no seu todo. O nível de reorganização da direita e da extrema-direita exige certamente frentes de esquerda, mas dificilmente poderão ser feitas com o PS. No Porto, o Bloco praticamente desapareceu (de 6.323 para 2.075 votos) e a CDU perdeu muitos votos (de 7.609 para 4.512 votos). Com uma candidatura conjunta, talvez CDU, Bloco e Livre, pudessem ter assegurado um vereador, mas, acima de tudo, talvez pudessem ter assegurado uma maior presença mediática e local numa eleição muito fragmentada e disputada.

Mas para isso é preciso chegar a um consenso: a esquerda não pode estar aí para suportar eleitoralmente o caminho semi-neoliberal do PS, mas para se garantir como um espaço de resistência e de contraponto a esse processo de permanente dissolução social e política levado a cabo pelo neoliberalismo (de que o PS faz parte integrante). E não tenhamos dúvidas, dentro das portas das actuais instituições democráticas liberais  não resta muito mais do que isso.

O fim da social-democracia pôs um ponto final no papel que a esquerda desempenhava tradicionalmente no sistema de equilíbrios e redistribuição do Estado Social. Na economia política do neoliberalismo, a esquerda já não tem nenhuma função a desempenhar e tem de ser obliterada, porque não há nenhuma mediação, nenhuma redistribuição, nenhum equilíbrio a ser feito (e, por isso, pode ser ridicularizada, como o é habitualmente no prime time como um souvenir de outros tempos). O Social acabou. As instituições democráticas do Social estão arruinadas: escolas, universidades, partidos, jornais, museus. É isso que a privatização significa. A força subjacente já não é o progresso (a ilusão do progresso, a ilusão do fim da História). A força que organiza socialmente o sistema é o ressentimento, o medo, a catástrofe, a possibilidade permanente do fim de tudo. O sistema encontrou na ficção do fim de si mesmo a fórmula mágica que lhe permite continuar a acumular capital e destruir a sociedade enquanto se parodia a si mesmo infinitamente. O Chega é a força política por excelência, em Portugal, dessa paródia, organizando o ressentimento e o medo para que a acumulação de capital possa continuar, para que o capital possa continuar a «libertar-se» e a desvincular-se do peso aritmético do Estado (Social).

A esquerda que sonha o retorno da social-democracia está condenada a desaparecer solitariamente no movimento da história. Mas o comunismo que vem nada terá que ver com o comunismo que foi. Nada há de mais urgente hoje do que encontrar os meios e as formas de enfrentar o processo absoluto de expropriação da vida posto em marcha pelo neoliberalismo. A substituição do imaginário «utópico» pelo imaginário da «catástrofe» onde o neoliberalismo se funda(menta), se legitima e se dissimula, bem como o desaparecimento das condições históricas que tornaram possível o Estado Social onde a esquerda se institucionalizou, obrigam necessariamente a inventar toda uma nova linguagem política, todo um novo conjunto de modelos, formas e instituições, capazes de denunciar e expor a rota de colisão do neoliberalismo e, simultaneamente, reconstituir a partir dos estilhaços desse passado (desse presente e desse futuro) a possibilidade de um outro horizonte político para lá do domínio catastrófico do capital. O espectro do fascismo e o espectro do obsolescência planetária a tudo isso obrigam.

Mas a «revolução» nunca foi um atributo exclusivo da esquerda. A revolução funda a lógica político-económica do capitalismo: «Tudo o que é sólido se dissolve no ar», avisavam já Marx e Engels, chamando a atenção para a renovação incessante dos meios de produção que o capitalismo nunca cessava de exigir. Foi sempre o capitalismo que foi revolucionário e foi sempre a partir daí que este conseguiu iludir e elidir as condições do seu  colapso. A revolução é, de facto, permanente e imparável. E o neoliberalismo é, sem dúvida, o momento histórico que mais longe levou esse movimento revolucionário infernal, não apenas no aceleramento temporal desse processo, mas na sua generalização e individualização.

Para a esquerda o desafio mantém-se: está condenada a ser revolucionária, mas apenas na medida em que a revolução não seja para si um meio, mas um fim — lido aqui, obviamente, na dupla acepção da palavra, como necessidade de colocar um ponto final num processo (catastrófico!), mas também como horizonte, objectivo e finalidade, a descobrir na experiência de uma prática política que tem de ser reinventada, uma e outra vez. Descobrir (uma vez mais) o fim da revolução: é esta a tarefa que hoje se volta a colocar diante de nós de forma tão urgente.

 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Punkto, crítico, ensaísta, investigador.

 

imagem

Richard Long, A line made by walking, 1967

 

Ficha técnica

O fim da revolução • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 13.10.2025

 Edição #44 • Verão   Outono 2025