A Palestina e a Academia: um depoimento • Constança Viegas Martins



 

No dia 26 de Outubro, recebi um email do departamento GRID - Genderová rovnost, inkluze a diverzita [Departamento de Igualdade de género, inclusão e diversidade] da Academia de Belas Artes de Praga, AVU, onde estou a realizar mobilidade ao abrigo do Programa Erasmus. O email referia que gostariam de reunir comigo para falar acerca da «situação da Palestina – Israel». Fiquei especialmente alarmada, pois nessa mesma semana estudantes no Reino Unido foram suspensos por fazerem parte de uma sociedade de solidariedade para com a Palestina. Respondi ao email, num tom irónico, escrevendo que «estava contente com a preocupação da faculdade para com o genocídio do povo palestiniano». Depois disso marcamos a reunião.

Na manhã do dia 2 de Novembro, fui à reunião e no começo da conversa a psicóloga da faculdade perguntou-me como é que me sentia relativamente a «esta situação Palestina-Israel», o genocídio, não tendo percebido o rumo que a conversa iria tomar com esta pergunta. Não me vou concentrar na pessoa que falou comigo, pois ela não é mais que uma peça na engrenagem de uma máquina maior que usa o peso da instituição de ensino como um instrumento de repressão: como é óbvio acho que ela está a ser indirectamente cúmplice, mas é assim que funciona a máquina da propaganda.

No início da conversa tomei uma atitude muito ponderada no discurso, talvez por medo e um certo receio, até ao momento em que me foi dito que uma colega minha, residente em Jerusalém ocupada, estaria desconfortável com a partilha de um post no meu Instagram, que considerava inclusive fazer um apelo à violência. A partilha que eu fiz consistia num poster da resistência palestiniana, onde se podia ver uma fisga e a bandeira, com a frase «Intifada Continues». «Intifada» é um termo árabe que significa «agitado», esta expressão está ligada à resistência palestiniana desde 1987, significa «Revolta civil palestiniana contra a ocupação israelita», segundo o dicionário Priberam da Língua Portuguesa.

A conversa adquiriu assim um claro tom repreensivo, com o pedido disfarçado de mostrar consciência relativamente ao sofrimento do lado opressor e de ter cuidado com a exposição das minhas posições políticas. A minha colega poderia ter falado abertamente comigo, no entanto escolheu usar a instituição como instrumento de censura, porque todos sabemos que lado tomam as universidades europeias perante determinados conflitos geopolíticos. A funcionária referiu que queria manter a neutralidade neste assunto, pois existem opiniões conflituantes. Apesar disso, esta mesma faculdade tem uma bandeira da Ucrânia na janela, emitiu comunicados e realizou exposições, dando (e bem) o seu apoio ao povo ucraniano. Mas agora a «política» é tabu, já não são os «nossos»… Vêm-me falar de neutralidade, a neutralidade é a mais ignorante posição política.

Ela disse-me que as minhas colegas ainda não estavam preparadas para falar sobre isso publicamente. Respondi que seria normal, pois o colonialismo não é um tema confortável para as pessoas brancas e para os privilegiados, sendo que contra mim falo. Tenho colegas, principalmente brasileiras, que na FBAUP confrontam a restante comunidade académica com questões relacionadas com a colonização e os processos históricos envolventes e é normal que sintamos um mal-estar que advém da tomada de consciência da violência da nossa história. Mas que aprendamos com ela, mudemos os livros de história, tomemos consciência e sejam feitas as devidas reparações.

O privilégio é uma questão fulcral nesta discussão, a minha colega pelo menos tem a liberdade de vir para a República Checa, as pessoas na faixa de Gaza têm 365 km2 em que se podem movimentar entre bombardeamentos. Outra pequena nota é que não temos nenhum colega palestiniano em mobilidade, nem nos apercebemos do nosso privilégio em algo tão simples como a liberdade que temos para nos movermos e em segurança, enquanto outros não o podem.

Tal como outros países da Europa central, a República Checa sente uma dívida histórica para com o povo judeu, e por isso a funcionária realçou que deveria ter cuidado com o anti-semitismo. «Intifada» é sobre descolonização, não é anti-semita exigir o cessar-fogo, o fim aos muros e à ocupação. Os colonos israelitas violentamente ocuparam as casas dos palestinianos, logo é natural que o processo de descolonização seja também resposta à força dessa mesma violência.

Há umas semanas fomos a uma visita de estudo à National Gallery, na qual nos deparámos com objectos de origem indígena e africana, sendo que um dos meus colegas questionou a docente se as peças iriam ser devolvidas. Na resposta houve uma certa desvalorização: esta não seria actualmente a maior preocupação, mas sim o estudo dos efeitos do colonialismo no país (por parte da Rússia). O sentimento de europeísmo dos países da Europa Central deveria ser válido para tudo, e não selectivo: ora vítimas numas coisas, ora orgulhosos de fazerem parte das grandes instituições de repressão neocolonialista, a União Europeia. O genocídio na Palestina, no Congo, a ocupação na Arménia e o Ecogenocídio que envolve as várias comunidades indígenas um pouco por todo o mundo, tem culpados e financiadores, a UE é um deles.

A segunda consideração que faço acerca desta situação é sobre o papel das faculdades: ao invés de serem espaços críticos e políticos, são classistas e desprovidos de razão de ser. Nos seus planos de actividades, lemos a expressão «terceira missão», actividades e propostas que, de forma superficial e assistencialista, interagem com a sociedade civil e as comunidades que as rodeiam. Mas enquanto tudo isso se passa, aquilo que é verdadeiramente necessário é uma democratização da educação. A relação da Universidade com a sociedade deveria ser real, no sentido de haver um vínculo sério e um compromisso social. No entanto, as instituições não querem dar lugar à escrita da história pelos oprimidos, muito pelo contrário, ou a ocultam ou a fetichizam.

Um pouco por toda a Europa as Universidades reprimem a pouca consciência política que respira dentro delas, os meus colegas da Academia de Belas Artes de Helsínquia receberam uma notificação para não usar o email institucional com motivos políticos depois dos protestos pró-Palestina. Os nossos colegas em Lisboa foram detidos pela PSP por exigirem uma transição energética. Os colegas em Bolonha vivem um aumento da violência policial contra os movimentos estudantis na rua. A AEFBAUP, da qual faço parte, também foi intimidada em Setembro deste ano num protesto no jardim da Cordoaria, onde estava ex-Primeiro-Ministro, tendo um funcionário da Universidade prometido que se parássemos o protesto teríamos uma reunião com o ex-PM. É óbvio que existe uma clara afronta ideológica nas universidades à liberdade de discurso, à análise crítica e à acção fora dos moldes legais e burocráticos.

No futuro, olharemos para a passividade e a inacção perante este genocídio. A culpa será pesada sobre a funcionária que me disse que devia ter cuidado e que não deveria promover discurso de ódio nas redes sociais ao usar a palavra Intifada. Mas a culpa será mais um legado de vergonha para os povos da Europa que compactuam com esta tragédia. Como disse um grande amigo meu «o melhor que temos a fazer pelo povo palestiniano é lutar contra as instituições aqui», no sítio onde vivemos, assim o farei.

 

 

Constança Viegas Martins

Nasceu em Évora, 2001. Estudante na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e dirigente estudantil.

 

Imagem

Cartaz “Intifada Continues” cuja partilha nas redes sociais causou a situação relatada pela autora do texto

 

Ficha Técnica

«A Palestina e a Academia: um depoimento» • Constança Viegas Martins

Data de publicação: 04.12.2023

Edição #40 • Outono 2023 •