No texto O Canteiro e o Desenho, que
aqui publicamos pela primeira vez em Portugal,[1] Sérgio Ferro
formula a crítica do «desenho separado» e revela como o desenho de
arquitectura, desde as suas origens, imprime uma separação gradual entre a
autoria do projecto e o estaleiro de obras, desconsiderando as condições
materiais e laborais de produção. Para enquadrar o texto fizemos uma longa
entrevista ao autor. Quando o visitámos na sua casa no sul de França fomos
calorosamente recebidos pela família e amigos, com quem tivemos a oportunidade
de conviver. À chegada, e antes de nos sentarmos a conversar, Sérgio Ferro
fez-nos uma visita guiada à casa, um antigo estábulo que tem vindo a reabilitar
com um pedreiro local. As paredes em alvenaria de pedra aparente, o pavimento
em cimento queimado, a nova estrutura em aço, os espaços amplos e luminosos,
reflectiam a «poética da economia», um dos princípios que modelam a sua obra.
As marcas do trabalho manual, evidentes na obra final, são fruto de uma
colaboração horizontal entre arquitecto e construtor, um princípio que o autor
sempre reclamou na sua obra prática e teórica.
1. Publicado originalmente em 1976, em duas
partes na revista brasileira Almanaque, foi reeditado em livro pela
Editora Projeto em 1979 e numa segunda edição em 2005. Também em 2005 saiu a
tradução francesa nas Éditions La Villette sob o título Dessin/Chantier
e, em 2006, o texto integrou a antologia Arquitetura e Trabalho Livre,
editada por Pedro Arantes e publicada pela Cosac Naify.
Sérgio Ferro nasceu em Curitiba, no Brasil, e
formou-se na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
(FAUUSP) em 1962. Ainda estudante, fez os seus primeiros projectos de
arquitectura para Brasília, cidade então em construção e onde a violência que
se exercia no trabalho e nos estaleiros de obra o marcou profundamente.[2] Com os colegas Rodrigo Lefèvre e Flávio Império formou o
colectivo Arquitetura Nova, que se dedicou a projectos de escolas e de casas
unifamiliares, em cujos canteiros testaram novas relações de produção.[3] Recém-formado, Ferro leccionou História da Arte e
Estética na FAUUSP, mantendo uma intensa actividade de projecto e pintura.[4] A força repressiva da ditadura militar que se instalou
no Brasil em 1964 acabou por impor a separação do grupo, com a prisão de Ferro
e de Lefèvre, que entretanto tinham integrado a resistência armada. Ao obter a
liberdade condicional, Sérgio Ferro exilou-se em França em 1972 e leccionou na
École Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble até 2003. Foi aí que
fundou o laboratório de investigação em arquitectura e construção Dessin/Chantier,
que funcionou sob sua direcção entre 1982 e 1997.[5] Tendo deixado de projectar, Ferro dedicou-se à docência,
à pintura e à investigação, continuando sempre a escrever e a publicar sobre
arquitectura e artes plásticas.[6]
2. Ver também: André
Tavares, Novela Bufa do Ufanismo em Concreto, Dafne Editora, 2009, pp.
133-134.
3. O nome
consolidou-se a partir do título do ensaio de Sérgio Ferro “Arquitetura Nova”,
publicado em 1967 na revista Teoria e Prática n.º 1 e reeditado
posteriormente em Arte em Revista n.º 4 (1980), em Espaço e Debate
n.º 40 (1997) e em Arquitetura e Trabalho Livre, supra n. 1. A propósito
do trabalho do grupo Arquitetura Nova ver: Pedro Arantes Arquitetura Nova: Sérgio
Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefévre, de Artigas aos mutirões, São
Paulo: Editora 34, 2002; Ana Paula Koury Grupo Arquitetura Nova: Flávio Império,
Rodrigo Lefévre e Sérgio Ferro, São Paulo: Edusp, 2003.
5. Os trabalhos
desenvolvidos no Dessin/Chantier,
ou em português Desenho/Canteiro, faziam uma abordagem historiográfica da arquitectura a partir da
análise das relações e condições de produção no estaleiros de obra. O livro Le
Corbusier: Le couvent de La Tourette, organizado por Sérgio Ferro, Chérif
Kebbal, Philippe Potié e Cyrille Simonnet (Marselha, Parenthèses, 1987),
regista uma síntese do primeiro trabalho de investigação do laboratório.
6. Entre as suas publicações
mais recentes destacam-se A construção do desenho clássico (Belo
Horizonte: MOM Edições, 2021) e Artes plásticas e trabalho livre II: De
Manet ao cubismo analítico (São Paulo: Editora 34, 2022).
Nos últimos anos, a obra de Sérgio Ferro tem
vindo a ser progressivamente reconhecida e valorizada, com várias iniciativas
internacionais de divulgação e de promoção do debate em torno do seu trabalho.[7] Neste contexto,
destaca-se o projecto TF/TK – Translating Ferro/Transforming Knowledges,
que decorreu entre 2020 e 2024 com o
objectivo de traduzir e disseminar a sua obra teórica em inglês.[8] Com a presente edição, participamos no actual movimento
de divulgação do pensamento de Sérgio Ferro, publicando o ensaio mais
representativo de uma obra incontornável para o campo da arquitectura.
7. É o caso da
exposição sobre o grupo Arquitetura Nova, convidado de honra da Bienal de
Arquitectura de Órleans, em 2019, intitulada Des rêves vus de près com
curadoria de Davide Sacconi, ou de publicações como Bauen als freie Arbeit:
Lina Bo Bardi und die Grupo Arquitetura Nova, de Richard Zemp (Berlim: Dom
Publishers, 2021) ou a entrevista por Mariana Meneguetti publicada em Fevereiro
de 2023 pela revista The Architectural Review. O reavivar do interesse
pela sua obra foi impulsionado pelas publicações de Pedro Arantes e Ana Paula
Koury em 2002 e 2003 (supra n. 4) e da antologia de textos organizado por
Arantes em 2006 (supra n.1).
8. Translating
Ferro/Transforming Knowledges of Architecture, Design and Labour for the New
Field of Production Studies, ou na versão em Português Traduzindo
Ferro/Transformando Conhecimentos em Arquitetura, Projeto e Trabalho para um
novo campo de Estudos da Produção, é uma colaboração entre a Universidade
de Newcastle, a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de São
Paulo, coordenado por Katie Loyd Thomas e João Marcos Lopes.
O Canteiro e o Desenho foi escrito há
cerca de cinquenta anos, mas mantém ainda a sua força, originalidade e lucidez.
É um ensaio denso e hermético, inscrito num plano conceptual que integra várias
áreas disciplinares.[9] No sentido de contextualizar a sua recepção e
clarificar a sua formulação, este livro inclui uma longa entrevista com o autor
que tivemos oportunidade de realizar no âmbito dos nossos trabalhos de
investigação.[10] O texto resulta da edição de duas conversas na
sua casa em Grignan, na Primavera de 2019. As transcrições foram revistas por
Ferro, que as aprofundou com novos comentários, identificados nesta edição como
«nota do autor». O conteúdo abrangente e polivalente das entrevistas foi
agrupado em cinco temas, enunciados a partir de questões que consideramos
estruturantes da sua perspectiva crítica. Ambos os textos – entrevista e ensaio
– foram redigidos em português europeu, deixando em nota certas expressões
originais que consideramos indispensáveis. A excepção a essa regra foi a
palavra canteiro, termo brasileiro para estaleiro de obras que,
por integrar o título do ensaio e marcar a identidade do livro, manteve a sua
grafia original. Para dar imagem às palavras de Sérgio Ferro, incluímos também
o valioso registo fotográfico por Fernando Stankuns de duas casas projectadas
pelo grupo Arquitetura Nova, cujos canteiros foram experiências fundamentais
para o ensaio crítico aqui publicado.
9. Em parte, o
hermetismo do texto chegou a ser justificado por Ferro como recurso para fintar
a censura existente na época da sua escrita.
10. Em 2019,
estavam em preparação as teses de doutoramento Funções do desenho de
arquitetura, de Joana Vieira da Silva sob orientação de Silke Kapp e
co-orientação de Jorge Marques, defendida em 2021 na Escola de Arquitetura da
Universidade Federal de Minas Gerais e, Do direito à arquitectura ao direito
à habitação, de Bernardo Amaral sob orientação de Paulo Providência e
co-orientação de Tiago Castela, a defender em 2024 na Universidade de Coimbra.
Em O canteiro e o desenho, redigido já
depois de se refugiar em Grenoble, Ferro elaborou uma teoria crítica da
arquitectura, sintetizando a experiência vivida no Brasil como arquitecto e
professor. Ferro mobilizou a crítica da economia política e conceitos-chave
cunhados por Karl Marx em O Capital, e estruturou o texto a partir do
método dialéctico. O autor revela a contradição que a própria arquitectura
encerra: a separação entre canteiro e desenho, ou entre obra e projecto. Como
anuncia no título, Ferro começa por analisar o canteiro de obras, pondo em
evidência esse lugar «invisível» da produção arquitectónica. O autor observa os
processos de dominação a que são sujeitos os trabalhadores, manifestos na falta
de autonomia e articulação entre as várias equipas de construção que se limitam
a executar tarefas sem poderem colaborar entre si e desenvolver o seu
saber-fazer. Ao revelar o que acontece quando um desenho é construído, mostra
como o processo de trabalho na arquitectura é determinado pela divisão social
do trabalho entre quem concebe e quem constrói. Ferro indica que essa divisão é
instituída pelo «desenho separado», promovendo um corte com o estaleiro e com
as suas condições de trabalho, no plano social, político, técnico e artístico.
O autor recua cinco séculos, até à emergência
do arquitecto moderno e aos fundamentos da arquitectura como cosa mentale,
para situar o momento histórico em que a concepção se separou da construção.
Com a entrada em cena do desenho separado dos processos construtivos, o
projecto passou a incorporar uma linguagem estranha aos construtores,
afastando-se progressivamente da sua anterior lógica produtiva e servindo assim
à subordinação do trabalho nos canteiros de obra.
Com este horizonte crítico, Sérgio Ferro põe
um dedo na ferida da arquitectura como disciplina autónoma, situando-a no
universo da indústria da construção e no cerne do sistema de produção
capitalista. Entendida a partir do seu papel económico, isto é, como uma
mercadoria, a arquitectura serve-se do desenho como prescrição, transformando
os construtores em meros executantes e suprimindo o saber-fazer intrínseco à
arte da construção. Para superar a separação histórica entre desenho e
estaleiro, Ferro sugere que a arquitectura elabore um «desenho da obra» e não
um «desenho para a obra», isto é, um projecto que coordena o processo
construtivo. Uma colaboração entre projectistas e construtores que promova a
autonomia técnica e funcional de cada equipa especializada, permitindo a
incorporação do seu saber-fazer e uma coordenação horizontal e orgânica, «como
numa banda de jazz».
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Bernardo Amaral & Joana Vieira da Silva
Bernardo Amaral é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto (2004) e doutorando no Departamento de Arquitectura da
Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. A sua investigação centra-se
na análise crítica da arquitectura no contexto dos movimentos pelo direito à
habitação. Desde 2010 coordena o gabinete de arquitectura BAAU. É professor de
pós-graduação na Escola Superior Artística do Porto e no curso de Arquitectura
e Urbanismo da Universidade Portucalense.
Joana Vieira da Silva é arquitecta pela Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto (2007). Faz parte do grupo MOM (Morar de Outras Maneiras)
da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, onde defendeu
o seu doutoramento (2021). Tem trabalhado e escrito sobre políticas urbanas, a
construção das favelas brasileiras e os papéis do desenho na arquitectura. É
actualmente arquitecta na Câmara Municipal de Gondomar e professora no curso de
Arquitectura e Urbanismo da Universidade Portucalense.
Nota da edição
O texto que aqui publicamos corresponde à «Introdução» do livro O
canteiro e o desenho editado por Bernardo Amaral e Joana Vieira da Silva,
publicado pela primeira vez em Portugal pela mão da Dafne. A presente edição inclui, para além do texto original
publicado em 1976 que dá nome ao livro, uma extensa entrevista realizada pelos
autores a Sérgio Ferro. O livro será lançado no próximo dia 9 de Março na Casa
da Arquitectura, em Matosinhos, às 18h, e no dia 9 de Abril em Lisboa, pelas
18h30, na Livraria da Travessa. Passará ainda por Newcastle, a 25 de Março, no
contexto da conferência internacional Production Studies, onde será igualmente
apresentado, contando com a presença de Sérgio Ferro.
Imagem
Casa Dino Zammataro, Butantã, São Paulo, 1970. Fotografia Fernando
Stankuns, 2020
Ficha Técnica
«“O Canteiro e o Desenho” de Sérgio Ferro» • Bernardo Amaral &
Joana Vieira da Silva
Data de publicação: 05. 03.2023
Edição #41 • Inverno 2024 •