Palestina — Diário Retrospectivo • Paulo Ávila

«Palestina — Diário Retrospectivo» é um artigo em construção onde se reúnem reflexões pontuais, livres da obrigação cronológica e da actualidade, dirigindo a atenção aos detalhes, imagens e testemunhos, à relação entre os discursos e os acontecimentos, e outros aspectos que tenham passado despercebidos, esquecidos ou ofuscados pelas grandes narrativas.



16 de Julho de 2014

Na imagem, quatro “figuras” correm na praia após um míssil ter atingido o pequeno porto da Cidade de Gaza. Vários jornalistas que acompanhavam aquela que veio a ser conhecida como “Operação Margem Protectora”, entre os quais Peter Beaumont (The Guardian), estavam hospedados em hotéis nas proximidades, de onde testemunharam a explosão. Beaumont escreveu que, apesar da distância, não duvidou que eram crianças a correr na praia, uma percepção partilhada por outras testemunhas que assim exclamaram quando assistiram à detonação de um segundo míssil, desta vez sobre as “figuras” que se debatiam por alcançar a segurança do Hotel Al-Deira.

Foi assim que, em poucos segundos, a família Bakr perdeu Ismail (9 anos), Ahed (10), Zakariya (10), e Muhammad (11), em mais um dos incontáveis “incidentes” em que a destacada tecnologia militar israelita se revelou, aparentemente, obsoleta na hora de distinguir civis de alvos militares. Em plena luz do dia, a câmara do drone não terá sido eficaz a distinguir crianças que jogavam futebol na praia dos supostos comandos navais do Hamas que, segundo o porta-voz da FDI à altura, Peter Lerner, se preparavam para reunir no que parecia ser uma cabana de pesca — alegadamente, um “complexo militar”. Ainda que na ausência de perigo iminente, e apesar de não ter sido possível, segundo o próprio, averiguar a identidade destas “figuras”, os operadores decidiram disparar, não uma, mas duas vezes sobre elas. A possibilidade de massacrar um grupo de crianças, literalmente aos olhos da imprensa internacional e sem sofrer consequências, é bem ilustrativa da impunidade patente na relação das forças israelitas com civis palestinianos. As alegações de que as crianças foram confundidas com “comandos navais” e de que a cabana de pesca era afinal um “complexo militar” foram suficientes para que a auto-investigação conduzida pelas autoridades responsáveis culminasse — imagine-se — na sua auto-exoneração.

Sendo verdade que, depois dos ataques de 7 de Outubro, não foram poucos os oficiais israelitas a engendrar uma retórica explicitamente genocida, não tem sido menos perturbador assistir à persistência de outros em preservar, contra todas as evidências, o que resta do verniz de civilização e de moralidade do Estado que representam. Será mais perigoso o ministro de extrema-direita Amihai Eliyahu, quando admite a hipótese de lançar uma bomba atómica em Gaza, ou o porta-voz Richard Hecht, que após reconhecer o bombardeamento de uma zona densamente povoada, em Jabalia, declara que tudo está a ser feito para prevenir a mortes de civis? O segundo traz-nos à memória as palavras de Daniel Hagari, citadas na primeira entrada deste diário, sobre a liberdade de imprensa em Israel, logo após se “desculpar” pela morte da jornalista Shireen Abu Akleh.

Em entrevista, no (entretanto cancelado) programa de Mehdi Hasan, o conselheiro sénior de Netanyahu, Mark Regev, declarou que em última instância a operação “Espada de Ferro” seria benéfica para o povo de Gaza, nas suas palavras, por este “merecer melhor do que o terrível, autoritário e extremo regime do Hamas”. À altura da entrevista, o número de mortes civis causadas pela operação, divulgado pelo Ministério da Saúde de Gaza, superava os 11.000, dos quais mais de 4.000 crianças — números que o conselheiro descartou sem hesitações por serem “do Hamas”, embora tenha reconhecido na mesma entrevista que os números, apresentados pelo seu governo para as vítimas do 7 de Outubro, tinham sido exagerados, levando à revisão de 1.400 para 1.200 vítimas. Segundo o próprio, esse “erro de contagem” decorreu da contabilização de corpos carbonizados que afinal pertenciam a “terroristas do Hamas” — uma explicação enigmática, que logrou apenas levantar mais dúvidas: estaria o conselheiro a sugerir que as FDI admitiam, até então, ter massacrado 200 dos seus próprios civis? Ou ter-se-iam os militantes auto-incinerado? Infelizmente, o tempo de entrevista seria sempre insuficiente para tantas questões. Neste caso, Mehdi Hasan optou antes por interpelá-lo quanto ao (não menos bizarro) caso do “erro de tradução” — o vídeo em que Daniel Hagari tentou fazer passar um calendário árabe por uma lista de guarda dos “terroristas do Hamas”, justificando o ataque ao Hospital Pediátrico de Al-Rantisi.

Numa primeira leitura, a profusão inconsistente de desinformação, de justificações erráticas e mentiras primárias poderia levar-nos a interpretar o aparente amadorismo e a falta de credibilidade dos oficiais israelitas como resultados previsíveis de décadas de impunidade, em que a cobertura política e mediática do Ocidente sempre os isentou de grandes elaborações na justificação dos seus “erros” frequentes ou na fabricação de mentiras sólidas para os encobrir. Por outro lado, o modo como essa trama de contradições se reproduz nos media ocidentais, prolongando-se no discurso dos seus aliados, permite-nos entrever, no que parece ser um discurso caótico, um sentido estratégico mais abrangente — o mesmo sentido que sobressaiu, com particular clareza, nas afirmações erráticas de Donald Trump e dos seus variados clones pelo mundo, que não se limitaram a emitir sinais contraditórios, mas mobilizaram exércitos de bots para contaminar as redes sociais com desinformação. Quando nos ocupamos em expor as mentiras e as incongruências desse discurso, continua a escapar-nos que é justamente a partir da incoerência radical que ele constrói a sua estratégia mediática.

Qual é o objetivo da lynchiana excursão de Daniel Agari pelas caves do Hospital Pediátrico Al-Rantisi, divulgada em vídeo pelas FDI? A singularidade simbólica das “evidências” apresentadas concede-lhes uma aura propriamente cinematográfica  — uma cadeira com roupas de mulher e uma corda são “provas” da presença de reféns; a marca de uma bala no assento de uma mota “prova” que ela foi usada nos ataques de 7 de Outubro; um biberão pousado numa caixa com o símbolo da Organização Mundial Saúde “prova” a presença de uma criança sequestrada, enquanto transmite uma nítida insinuação sobre a OMS e as Nações Unidas; por fim, o célebre papel na parede, a suposta  “lista onde todos os terroristas escreviam o seu nome”, que afinal era apenas um calendário com os dias da semana em árabe.

Diante da tragédia imensurável e a devastação dos hospitais de Gaza, determinar a veracidade destas “provas” não deixa de ser um exercício supérfluo. Além disso, avaliando pelo caso flagrante do calendário árabe, a produção cinematográfica em causa também não revela grandes preocupações com a eventual exposição das suas farsas. É também por isso que, quando procuramos nela um esforço efectivo na justificação das atrocidades cometidas, o seu sentido permanece, para nós, obscuro. Por outro lado, ele revela-se mais plausível se admitirmos que o seu desígnio não é o de oferecer explicações, mas antes o de transmitir ordens claras sobre aquilo em que devemos acreditar a cada momento, negando e esquecendo, para tal, tudo quanto for necessário.  Num tempo em que a difusão de informação restringe ao limite o alcance da censura, a desinformação ganha relevância na instauração de uma ditadura de actualidade permanente, em que cada um é impelido à existência em pleno esquecimento. Nesse paradigma, a incoerência e, em paralelo, a boçalidade não decorrem de simples descuidos ou de inabilidade discursiva. São antes os meios pelos quais o poder atesta a fidelidade dos seus súbditos, exigindo deles uma obediência incondicional na aceitação da sua narrativa, enquanto define como seus inimigos — neste caso, como anti-semitas e cúmplices do terrorismo — aqueles que ousam questioná-la.

 


15 de Outubro de 2015

Nas imagens, o rabino Arik Ascherman é atacado por um colono israelita, perto de Awarta, na Cisjordânia ocupada. O rabino tentava denunciar os colonos que punham fogo nas oliveiras, quando foi surpreendido por um homem mascarado e armado com uma faca. Em entrevista ao Democracy Now, Ascherman mostrou-se surpreendido por estar vivo, admitindo que o desfecho podia ter sido diferente se fosse palestiniano. Ascherman foi um dos fundadores e era à data presidente de uma ONG religiosa (Rabbis for Human Rights) que promovia, entre as suas iniciativas, a participação de voluntários ao lado de agricultores palestinianos nas colheitas de azeitona. A sua intenção era que essa presença ajudasse a proteger os agricultores e as oliveiras da rotina de ataques violentos, de sabotagem e destruição praticados por colonos israelitas. No entanto, como atestam as imagens, ela não foi suficiente.

O agressor mascarado, que acabou por confessar, era à altura um adolescente de 17 anos e a sua sentença resumiu-se a trabalho comunitário e ao pagamento de compensação monetária, sem pena de prisão. Segundo o The Times of Israel, a juíza Sharon Halevi terá dito que não pretendeu, com uma sentença criminal, e tendo em conta a idade do réu, comprometer o seu serviço militar nas FDI. Dado o que o jovem fez com uma faca a um sacerdote judeu desarmado, resta-nos questionar sobre o que o tornará apto a dispor de armas de assalto ou de precisão em contacto com civis, crianças e adolescentes palestinianos. Se a postura da magistrada nos concede um vislumbre sobre o perfil pretendido ou pelo menos tolerado pela justiça israelita, no que respeita aos operacionais das FDI, um segundo aspecto é também revelador da relação dos políticos no poder com estes casos. Trata-se do advogado que assumiu a defesa do jovem colono mascarado. Ninguém menos que o actual ministro da segurança nacional, Itamar Ben-Gvir, entretanto responsável pelo plano de compra de 10.000 armas de assalto para serem distribuídas por colonos milicianos.

Esta não tinha sido a primeira vez, nem veio a ser a última, que o rabino ou a sua organização sofreram consequências pela defesa de direitos palestinianos, quer da parte do Estado, quer das milícias de colonos. Entre 2004 e 2005, Ascherman tinha sido julgado por desobediência civil, ao obstruir um bulldozer que estava prestes a demolir uma casa palestiniana em Jerusalém Oriental. Em Janeiro de 2021, um acto de sabotagem esteve perto de lhe causar um acidente de carro. Três meses depois, outra agressão foi captada em vídeo, no qual é agredido por um homem com um taco de madeira, enquanto outros assistem. Tratava-se de membros da Hilltop Youth, um grupo extremista cujas práticas passam pela expropriação violenta de palestinianos daquilo que julgam ser a “Terra Santa” e pelos assentamento ilegal de colonatos nas terras sequestradas.

Ascherman é apenas um de entre incontáveis judeus cujas práticas e ideologia estão nos antípodas da actuação do Estado que diz representá-los. No Ocidente, o avolumar preocupante da violência anti-semita explícita, a par da islamofóbica, não justifica a negligência das suas manifestações menos óbvias, até porque são estas que sustentam a primeira. Uma delas, que a custo tem vindo a ser desmantelada, é o silenciamento de milhares de judeus dissidentes através da fusão forçada da sua identidade com a de um Estado colonial e genocida que não os representa nem defende, e inclusive os oprime.

 A recusa da crítica do Estado de Israel através da sua equivalência forçada ao “anti-semitismo” tem como efeito duplo o apagamento dos judeus dissidentes e a negação implícita da sua identidade judia, configurando, por essa razão, um profundo acto de anti-semitismo. Esse artifício discursivo, cujo papel histórico no branqueamento dos crimes israelitas não pode ser ignorado, tem vindo a ser abalado à medida que cada vez mais judeus se levantam em solidariedade com o povo palestiniano e contra o genocídio em curso em Gaza. Foi este o caso, entre muitos outros, da Jewish Voice for Peace, cujos membros foram detidos às centenas pela Polícia de Nova York quando ocuparam a Estação Grand Central de Manhattan. A sua mensagem foi clara: “Jews say cease Fire” e “Not in Our Name”. A administração de Biden, que muito se tem mostrado preocupada com o incremento de mensagens anti-semitas nos campus norte-americanos, recusa-se, no entanto, a ouvir a sua voz.

 


11 de Maio de 2022

Na imagem, a jornalista palestiniana Shatha Hanaysha, testemunha o assassinato da colega Shireen Abu Akleh. O grupo de jornalistas da Al Jazeera preparava-se para cobrir uma incursão das Forças de Defesa de Israel (FDI) no campo de refugiados de Jenin quando foi alvo de disparos à distância.

Numa entrevista, Shatha mencionou os principais motivos que a levavam a suspeitar, tal como outras oito testemunhas, que o ataque fora uma execução dirigida pelas FDI: um deles era o facto de estarem visivelmente identificadas como «PRESS»; outro estava na precisão dos tiros, disparados na sua direcção sempre que tentava resgatar o corpo de Shireen para segurança.

Confrontada com a hipótese, avançada pelas FDI, de terem sido atiradores palestinianos a disparar, Shatha recusou com firmeza. Afirmou que não havia palestinianos armados no local e que, como jornalista e como ser humano, não se colocaria numa situação de perigo. Vídeos verificados vieram reforçar as suas palavras, revelando a ausência de conflitos ou de fogo cruzado nos instantes que antecederam o ataque. O grupo armado palestiniano mais próximo encontrava-se, afinal, para além dos 200 metros de alcance dos disparos, estando, para além disso, do outro lado das forças israelitas.

Perante evidências incontornáveis, passados vários meses, as FDI acabaram por admitir a «elevada possibilidade» de terem atingido «acidentalmente» Shireen, numa alegada «troca de tiros». Após um «exame compreensivo» e dadas as «circunstâncias do incidente», o Advogado-Geral Militar decidiu que não havia razões de suspeita que justificassem a abertura de uma investigação criminal.

Passado um ano, o mundo teve direito a um breve «pedido de desculpas», dito pelo porta-voz das FDI Daniel Hagari, em entrevista à CNN, rapidamente seguido desta ressalva:

«Israel é uma democracia, e na democracia valorizamos muito o jornalismo e a imprensa livre, e queremos que os jornalistas se sintam seguros em Israel, especialmente em tempo de guerra. E mesmo que nos critiquem, queremos que se sintam seguros. Somos todos pela democracia e nós somos uma democracia liberal.»

Não consta que a execução de uma jornalista seja conciliável com qualquer conceito de democracia, por mais vago que seja. Porém, convenientemente, os simpatizantes de Israel no Ocidente não revelam grandes exigências a este respeito. Avaliando pelas vozes que persistem em reiterar, plenas de convicção, que Israel é uma democracia, podemos supor que, para muitos dos que nos rodeiam, as palavras de Hagari terão sido mais que suficientes para derrubar as graves suspeitas e precipitar no esquecimento Shireen Abu Akleh, convertida em mero dano colateral, vítima de um «erro» bizarro, inexplicável e sem responsáveis.

Por outro lado, não será difícil reconhecer um efeito distinto das mesmas palavras para outro grupo particular de pessoas, a quem este crime imprimiu na memória, como uma marca indelével, a imagem de Abu Akleh. Jornalistas na Palestina estão entre aqueles que nunca se puderam dar ao luxo de partilhar com os líderes e comentadores ocidentais as convicções benevolentes sobre a natureza do Estado Israelita. A quem cabe acompanhar e documentar as operações das FDI no terreno, não terá passado despercebido que, entre as volumosas afirmações que seguiram o breve «pedido de desculpas» de Hagari, não teve lugar qualquer explicação, responsabilização ou garantia relativamente ao sucedido, um silêncio que introduz uma contradição assinalável relativamente ao vago «desejo» expresso de que «os jornalistas se sintam seguros em Israel».

À hora a que escrevo, desde os ataques de 7 de Outubro, o Comité para Protecção dos Jornalistas já confirmou a morte de trinta e um jornalistas e membros da imprensa, na sua grande maioria vítimas de ataques aéreos israelitas. Para além de destruírem sistematicamente as redes e infra-estruturas de comunicação, as forças israelitas recusam-se dar qualquer garantia de segurança a quem arrisque dar a conhecer ao mundo o que está a acontecer em Gaza.

O problema não fica por aqui. Não é apenas a jornalistas e trabalhadores da imprensa que não é dada essa garantia. A 25 de Outubro, o repórter veterano e chefe de escritório da Al Jazeera na cidade de Gaza, Wael Al Dahdouhé, recebeu em directo a notícia da morte de vários membros da sua família, entre os quais a mulher, um filho de quinze anos, uma filha de sete, e um neto. Ao contrário do repórter, que arriscou a vida ao permanecer na Cidade de Gaza, a sua família obedecera dias antes às ordens de evacuação israelitas, procurando abrigo numa área supostamente segura, no campo de refugiados de Nuseirat. Porém, como se veio a confirmar, e como o próprio afirmou, «não há lugar seguro na Faixa de Gaza».

Partindo de que seja aceitável para os aliados de Israel, como de resto tem sido, que as vidas de milhares de homens, mulheres e crianças sejam sacrificadas em nome do «combate ao terrorismo», e ademais pela ausência de órgãos isentos que averigúem no terreno as alegações das FDI, ninguém em Gaza estará a salvo de ser reduzido a qualquer momento a um alvo para os bombardeiros israelitas.

Para quem ainda se permite duvidar das intenções genocidas do Estado de Israel expressas por vários dos seus representantes, deixou ao menos de ser possível negar que as condições necessárias à sua concretização têm vindo a ser rigorosamente reunidas. Particularmente decisiva, de entre elas, é a névoa impenetrável que envolve Gaza quando toda a imprensa é silenciada.

 

 

Paulo Ávila

Paulo Ávila (1994) é arquitecto pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Colabora com o Jornal Punkto desde 2017.

 

Nota de Edição

«Palestina — Diário Retrospectivo» é um artigo em construção onde se reúnem reflexões pontuais, livres da obrigação cronológica e da actualidade, dirigindo a atenção aos detalhes, imagens e testemunhos, à relação entre os discursos e os acontecimentos, e outros aspectos que tenham passado despercebidos, esquecidos ou ofuscados pelas grandes narrativas.

 

Ficha técnica

«Palestina — Diário Retrospectivo» • Paulo Ávila

Data de publicação • 27.02.2024

Edição #41 & 42 • Outono & Inverno 2024