Que a eternidade nos abrace • Toni Negri




Por vezes sinto-me completamente estranho face ao mundo que me rodeia. Sensação curiosa para quem preencheu três volumes com uma história de intensa imersão no existente. Provavelmente, digo a mim mesmo, é porque estou velho; por mais que me agite, tentando manter aberta a comunicação com amigos mais jovens e despertos, a minha percepção é obtusa. Mas depois pergunto-me: não serão, esta visão do mundo e esta noção de estranheza, verdadeiras?  Verdadeiras? Quero dizer que esta percepção de estranheza não depende de mim, da minha insuficiente ou diminuída atenção, mas que o mundo que me rodeia se tornou, de facto, feio e inconsistente. Será que a minha confiança no ser, a minha admiração pelo que é vivo, já não corresponde a algo que se possa amar?

Feio, belo, vivo, amado... são adjectivos de difícil definição e de grande relatividade. Sendo assim, talvez não deva confiar nestes termos para constatar a minha dúvida. Talvez o único adjectivo válido, entre os muitos que utilizei desde o início, seja «estranho». Um efeito de estranhamento é aquilo que provocam em mim as linguagens e os estados de espírito, não importa se individuais ou colectivos, que ressoam na sociedade, fora de mim. Julgo que estou surdo e que escuto sons confusos. Na realidade, um pouco surdo, eu estou, mas os sons confusos, não os escuto com os ouvidos, mas com a alma, com o cérebro. Escapa-me o mundo à minha volta. Tive uma vida longa, conheci contradições enormes e conflitos mortais, todavia sempre soube do que se tratavam, os elementos da contradição e do conflito estavam dentro de um quadro conhecido, de qualquer modo, significante — por que razão é que o significado dos acontecimentos que se desenrolam hoje em torno de mim se obscurece e me escapa?  Em que consiste a sua insignificância? Há todo um mundo novo que representa esta estranheza. Um mundo novo, mas cansado, prostrado diante das dificuldades físicas, políticas e espirituais da sua própria reprodução. Dificuldades económicas e declínio das referências políticas, colectivas, de valores. A comunicação tornou-se frenética, mas os significantes esbatem-se na velocidade. Há confusão nos espíritos. Há corrupção nas linguagens. As velhas referências de luta desapareceram:  direita e esquerda, sindicatos e partidos, sentido e significado da história… este é o mundo que me rodeia. Não depende da minha velhice, do meu cansaço: é assim.

Quando reflicto sobre esta fenomenologia do presente, quanto mais afino o olhar, mais a única, a última figura valorativa e descritiva, que me parece investir o mundo de significado e permitir descrevê-lo é aquela do niilismo.  Os signos carecem de sentido, os rostos carecem de sorrisos e os discursos estão vazios. Não sabemos do que falar. Vejo no rosto altivo do interlocutor um esgar — é sempre o mesmo que encontro em grande parte dos meus interlocutores. Por isso é uma grande festa quando se encontra alguém indemne desta patologia. A gente está  desesperada. Quando penso naqueles que, no meu tempo, já antigo, desenvolveram concepções niilistas para a sua filosofia, e culminaram, com frequência, na krisis, no pessimismo e na expectativa da catástrofe (e os meus leitores sabem com que persistência e com que dureza os combati) — todavia, quando penso neles, quase me comovo agora com a sua doença, que era consciente e sofrida. Ao passo que hoje tenho diante de mim personagens cuja ética é niilista e catastrófica, não como resultado de um labor crítico, mas porque a sua existência não tem consistência, ainda que quando, ao convivermos, pareçam levar uma vida comum. Não têm paixões, na realidade, não têm significantes, não têm fé — por tudo isso, pensam que a linguagem devia ser depurada, lavada e re-lavada, e conduzida a uma pureza significativa, a pureza do lavatório onde foi depurada. Na verdade, deitam fora o significante com a água suja do banho. Resta-lhes esse ideal de pureza — o  «reine» da razão, da sensibilidade, do conceito — que se tornou adjectivo do vazio, do mero resto depois do esvaziamento do ser. Quando olho à minha volta, sinto-me rodeado destes zombies, de milhões de zombies.

É realmente novo este mundo? É certo que se consolidou recentemente, e está a crescer, em breve este «novo» ocupará tudo. Mas não é novo. Eu tenho 85 anos. Até aos meus 25-30 anos, este «novo» mundo era, em formas sólidas e efectivas, o mundo de entre-guerras e do segundo pós-guerra. Foi o mundo que me oprimiu e contra o qual lutei. Tínhamo-lo metido no sótão e parcialmente destruído, e  agora esse mundo velhíssimo ressurge hegemónico. É o mundo fascista da minha infância e juventude. Era o mundo no qual «patriarcado-exploração capitalista-soberania da nação» dominavam, como patrões, a vida e as mentes das pessoas. E traíam a generosidade e a inteligência dos jovens para conduzi-los em aventuras ilusórias: o patriotismo, a nação, a raça, a identidade, a masculinidade eram assumidos como valores superiores. Chama-se fascista, esse mundo, não só conservador, mas reaccionário, não só religioso mas fanático na destruição de toda a liberdade. Um mundo onde o cansaço de viver dominava todas as outras paixões, e onde uma dura disciplina forçava as almas à insensibilidade perante a dor. A opressão impelia à insignificância. É a isto que regressou o mundo presente?

Mas, se for esse o caso, como poderão ler-me, e como poderão compreender-me, os jovens de hoje? O meu livro parecer-lhes-á afundar-se em longínquas profundezas, dificilmente acessíveis. Será, para eles, um documento arqueológico. E o meu editor, porque deverá publicar este texto, no máximo, digno de arquivo? Haverá ainda um número suficiente de velhos que apreciarão esta história e agradecerão ao editor por este a ter publicado?

Quando — não há muito tempo — um horrendo personagem fascista ascendeu à presidência de um grande país, o Brasil, alguns jovens amigos perguntavam: «O que podemos fazer? Como agir para resistir?», respondi: «Não tenham medo». Esta é a condição para construir uma grande e efectiva resistência. O fascismo rege-se pelo medo, produz o medo, institui e mantém o povo no medo. Não ter medo: é tudo o que temos de ser capazes de dizer ao povo, entre o povo, na multitude que hoje sofre o regresso da barbárie fascista, também aqui, sob o nosso sol. Não ter medo de romper a prisão da linguagem vazia que nos é imposta e rir da autoridade, onde quer que ela se apresente com a grotesca máscara fascista. Não ter medo significa libertar as paixões e, desse modo, preencher  aquelas formas linguísticas que o processo fascista de subjugação deixou vazias. Parece que o século se obscureceu: repelir o medo, produzir resistência, é, antes de mais, dissipar as sombras, reconquistar o sentido das palavras. Preenchê-las com coisas, com realidade, com liberdade. Subjectivá-las. Mas a operação principal consiste em reconhecer que o fascismo é sempre o mesmo, é sempre a repetição da violência para bloquear a esperança, é o velho — os desvalores absolutos do patriarcado, da violência da exploração e da soberania — que volta a ser ilusoriamente proposto como uma necessidade do espírito e uma obrigação da moral, quando, na verdade, é fundamento de uma cultura de morte. «Viva a morte» é a palavra de ordem do fascismo.

«Viva a vida» é a resposta de quem não tem medo. A Primavera regressará. Regressa sempre! O fascismo parece eterno e, de facto (embora breve), parece uma pena demasiado longa, mas o fascismo é frágil. Em confronto com a paixão do viver livre, quão pouco se poderá sustentar. A liberdade impõe-se necessariamente contra o fascismo, pois com a liberdade estarão as outras paixões políticas fortes, como aquela pela igualdade e aquela pela fraternidade. A Primavera regressará e será uma  verdadeira estação do novo. Porque, se o fascismo é sempre igual, a Primavera da liberdade é sempre nova, sempre diversa, sempre plena de dons.

Olhem para o passado, olhem de novo para as grandes estações de luta. Poderíamos recuar tanto… bastam dois exemplos. 1848 e 1968 são datas fundamentais para a minha geração. A primeira, a inauguração do socialismo na Europa, dentro e contra o desenrolar das contradições vindas da revolução francesa e da maturação da acumulação capitalista. Deste encontro surgiu o antagonismo entre liberdade e igualdade e aquele da igualdade como fraternidade do povo versus a liberdade como nacionalismo e soberanismo. Os reaccionários estão sempre de um lado, rígidos, encerrados na defesa dos seus privilégios; os revolucionários, pela primeira vez, erguiam a bandeira vermelha da fraternidade entre os povos. Um século de lutas ferozes seguiu-se a 48. O socialismo afirmou-se, e depois foi derrotado, deixando, porém, uma enorme herança de bens públicos, ou melhor dito, de «comuns» para as novas gerações. Foi sobre este terreno de inovação e de potência que se abriu 68. O «comunismo» era o seu horizonte. Tratava-se de tornar «comum» aquilo que era público, de obter mais comum do público conquistado no jogo democrático. O fruto do socialismo tinha de ser multiplicado.

Estivemos e continuaremos dentro desta batalha, nossa e dos nossos filhos. Foi nova, essa vaga de vontade democrática que uma vez mais pôs o mundo de pernas para o ar. E repete-se: a cada dez anos, mais ou menos, teremos grandes episódios, alargados e difusos, de revolta. Os ciclos de Kondriatev acabaram. Os ciclos de subjectivação do comum tomaram a dianteira: de cada vez adaptando a resistência para superar os obstáculos criados por uma repressão agora convertida em «ciência de governo». Cada «governamentalidade» é uma operação capitalista, soberana, para bloquear e constranger os movimentos produtivos do trabalho vivo. A resposta a isto é feita através de um ataque renovado dos movimentos cidadãos-trabalhadores e com a capacidade de fazer valer as conquistas alcançadas.

Olhemos  com atenção para este jogo que se joga desde 68. Resistência dos trabalhadores para conquistar a satisfação de velhas e novas necessidades, seguida de repressão. Mas pode a repressão cumprir o seu objectivo de bloquear a acção subversiva? Muitas vezes, vimo-nos forçados a responder positivamente a esta pergunta. Mas, mesmo quando o movimento subversivo é bloqueado, é preciso averiguar se a luta tem, de facto, um resultado negativo (ou relativamente negativo). Pois bem, não é assim. As reformas que as lutas, ainda que perdedoras, acumulam são importantes, são um incremento do «comum» nas mãos das multidões do proletariado. Cuidado com as velhas vozes do passado: a positividade deste processo significa que devemos ser «reformistas» na condução do movimento? De modo algum. Os reformistas não acumulam nada de comum, acumulam somente derrotas e demolições do comum, colaboram na governance capitalista, corrompem e pervertem as lutas. Pelo contrário, só as lutas de resistência, que se tornam subversivas, acumulam a riqueza comum e a subdividem pelas instituições do comum. Rodeados de instituições do comum, conquistámos um certo progresso para as nossas vidas e para as vidas dos nossos filhos. Testemunho-o de bom grado na minha velhice.

Mas para manter aberto este dispositivo do «comum», da sua conquista e acumulação, a história das lutas ensina-nos que é preciso organizarmo-nos. Passei a minha vida a tentar resolver esta tarefa. Não creio que tenha conseguido — isto é, descobrir uma fórmula organizativa que tivesse a eficácia do «sindicato» na Segunda Internacional ou do «soviete» na Terceira. Identificámos o terreno da multitude como um conjunto de singularidades, operando como um enxame, como uma rede, provavelmente organizável numa verdadeira democracia directa. No entanto, nunca conseguimos ir além das experiências in vitro. Mas esse é o caminho, e percorrê-lo já permite à dialéctica da resistência e da subversão, desestabilizar o poder inimigo e desestruturar o seu sistema produtivo, e assim preparar a conquista do comum e a construção de instituições do comum. Há ainda, no entanto, um longo caminho a percorrer, e a falta de organização, os tempos vazios da empresa subversiva, têm um preço.

Confrontamo-nos com um fascismo ressurgente. Sabemos que a luta se está a tornar difícil. Não tenhamos medo. Estamos na  linha da frente. Pensemos que a nossa resistência é eficaz. Mas temos de nos preparar para as consequências extremas a que o fascismo pode conduzir: a guerra. Quem viveu a guerra, quem a sofreu, sabe que a guerra é, foi e será uma irresistível máquina de destruição. E, desta vez, da humanidade inteira, dados os meios bélicos de que as grandes potências capitalistas dispõem. Guerra entre potências = destruição das raízes da humanidade. O fascismo pode produzir este desastre do humano, este massacre da sua história no planeta. Por isso, lutar contra o fascismo é lutar pelo humano. Sem esquecer jamais que o fascismo é capaz de o destruir, quando se apercebe que as regras patriarcais da sociedade, a estrutura de comando para a exploração e a soberania do seu próprio interesse na forma política do Estado estão em perigo. Concentremo-nos neste ponto e organizemo-nos para não sofrermos a decisão de guerra de um capital que se cruzou com o fascismo. Evitar a guerra, lutar e vencer o capital sem passar pela guerra é a nossa tarefa. Como fazê-lo? O pacifismo será a nossa arma, porque a paz é o nosso desejo.

Vivi e sofri o fascismo. O meu coração fica ofendido e o meu cérebro traumatizado quando penso nessa experiência. Vivi depois, desde 68 até hoje, sem medo do fascismo. Os crimes de que foi acusado, a Shoah em primeiro lugar, impediram-no de voltar a ser desejado, a grande massa da população parecia tê-lo repudiado definitivamente. Só os funcionários da soberania puderam acompanhar na memória (e sendo coniventes na prática) essas condutas criminosas — renovando-as, por vezes. A repressão do 68 europeu foi um exemplo disso. No entanto, nunca tive medo, apenas desenvolvi desprezo por esses criminosos. Hoje as coisas são diferentes: somos envolvidos por uma nuvem de fumo sulfuroso, uma atmosfera espessa, impossível de atravessar a olho nu. O fascismo é omnipresente. Temos de nos revoltar. Há que resistir. A minha vida está a esvair-se, lutar depois dos 80 anos torna-se difícil. Mas o que resta da minha alma conduz-me a esta decisão.

Na resistência ao fascismo, na tentativa de quebrar este domínio, na certeza de o conseguir, este livro foi escrito. Só me resta, meus amigos, deixar-vos. Com um sorriso, com doçura, dedicando estas páginas, estes três volumes que estou a concluir, aos homens virtuosos que na arte da subversão e da libertação me precederam, e aos que se seguirão. Dissemos que são «eternos» — que a eternidade nos abrace.


 

Antonio Negri

Antonio Negri é um filósofo e militante marxista e comunista com um longa participação política e percurso intelectual. Preso e exilado em Paris pela sua participação e mobilização no movimento da Autonomia Operaia que liderou. Foi ainda profícuo autor, escrevendo, entre outros, Crisi dello Stato-piano: comunismo e organizzazione rivoluzionaria, Dall'operaio massa all'operaio sociale: intervista sull'operaismo, L’anomalia selvaggia: saggio su potere e potenza in Baruch Spinoza, e com Michael Hardt Impero: il nuovo ordine della globalizzazione, Moltitudine: guerra e democrazia nel nuovo ordine imperiale e Commonwealth. Morreu em Dezembro de 2023, em Paris.

 

Nota da edição

Este texto foi publicado em italiano na Euronomade no dia da morte de Negri a 16 de Dezembro de 2023. Foi escrito a propósito do lançamento do terceiro e último livro da série Storia di un comunista 3 – Da Genova a domani, lançado em 2020. A tradução esteve a cargo de Paulo Ávila a partir da tradução italiana e espanhola publicada no Lobo suelto!

 

Imagem

Toni Negri durante uma audiência em 1983. Fotografia de Tano D'Amico. Via il manifesto

 

Ficha técnica

«Que a eternidade nos abrace» • Toni Negri

Data de publicação •07.02.2024

Edição #41 • Inverno 2024