Dizer qualquer coisa de esquerda • Pedro Levi Bismarck




«Um festival de demagogia», foi assim que uma jornalista e representante do comentariado nacional — talvez a mais ilustre instituição política da direita em Portugal — sintetizou o debate entre Mariana Mortágua e André Ventura. O comentariado nacional foi obrigado a reconhecer a capacidade e a preparação de Mariana Mortágua perante o líder do Chega. Mas para o fazer teve de reduzir o debate «a um confronto entre duas demagogias»: isto é, concede a «vitória» à coordenadora do Bloco, mas apenas na medida em que esvazia o debate de todo o conteúdo político — como se o debate do dia anterior entre Ventura e Montenegro tivesse sido uma lição ímpar de conteúdo político. Ao reduzir o debate a um «festival de demagogia», o comentariado utiliza o Chega — e a incoerência das suas propostas — para englobar o Bloco e os juntar nesse estranho lugar político-geométrico onde os «extremos se tocam». Dizer qualquer coisa de esquerda — para recordar o desânimo de Nanni Moretti, no filme Aprile, enquanto observava o debate de D’Alema contra Berlusconi — passou a ser considerado hoje uma demagogia.

É verdade que Mariana Mortágua poderia ter procurado explicar com mais detalhe algumas das propostas que foi elencando, algo difícil de fazer no modelo que o próprio debate impõe. Não é possível explicar em trinta segundos a relação constitutiva entre vistos gold, corrupção e especulação imobiliária, muito menos fazê-lo com André Ventura do outro lado da mesa. Não há nenhuma demagogia política nas propostas do BE ou da CDU ou do Livre há, sim, opções políticas que visam reduzir o peso implacável da máquina financeira sobre as cidades e sobre aquilo que era, até há bem pouco tempo, um direito constitucional e não apenas um activo bancário: a habitação. A conversão da habitação em activo de fundos de investimentos sem rosto, escondidos nessa utopia do liberalismo financeiro que é o offshore, é um problema central de uma economia cada vez mais dependente de um rentismo monopolista que, na verdade, tem vindo a pôr em causa a liberdade do próprio mercado, dos pequenos empresários e comerciantes. Basta ver o que se passa hoje nas cidades, onde as altas rendas são um entrave ao estabelecimento não apenas de habitantes, mas de novos negócios, neutralizando a própria dinâmica da economia.

Permitam-me um pequeno desvio. É preciso que se diga, de uma vez por todas: não foi o alojamento local que reabilitou os centros históricos das cidades, mas sim todo um conjunto integrado de políticas que fizeram do turismo o núcleo fundamental da economia e apostaram no investimento estrangeiro. Do mesmo modo, o abandono e a desertificação das cidades não foi um processo natural, mas foi o resultado de cinquenta anos de políticas de esvaziamento dos centros urbanos. A democracia impôs um modelo suburbano, capaz de responder às exigências de estatuto das classes médias, que se baseou no entrelaçamento de três eixos fundamentais: casa, carro e centro comercial; um modelo que assentava na valorização urbana dos solos periféricos, no sistema do crédito bonificado e num sector da construção civil pouco profissionalizado e sem grande capacidade para intervir em processos de reabilitação. Esse modelo terminou definitivamente em 2008, com o início da crise financeira, obrigando Portugal, ao longo dos anos da Troika, a redireccionar a sua economia para o turismo.

Ora, voltando ao debate, para André Ventura — e  para a direita no seu todo — qualquer medida que vise mexer no mercado é reunida sob o epiteto de «mais Estado», «Estado por todo o lado», mas a verdade é que sem um quadro regulatório mínimo não são apenas as cidades que se tornarão inabitáveis, é o próprio mercado que implodirá. A mão invisível do mercado, o sonho de uma auto-regulação divina do mercado: isso sim é um «festival de demagogia» que a história já se encarregou de expor vezes sem conta. Foi, aliás, precisamente contra esse liberalismo laissez-faire, que mergulhou a Europa numa grave crise económica e social, que a social-democracia se afirmou definitivamente após a Segunda Guerra Mundial. Mas na «era da finança», na era de uma economia rentista, é de novo o desmantelamento de qualquer quadro regulatório que se tornou um alvo. Mas não só: é toda a ideia de uma protecção social colectiva, é toda uma noção de bens comuns e de direitos essenciais básicos — saúde, habitação, educação — que é preciso privatizar, para que estes possam entrar no gigantesco circuito de despossessão da finança.

A direita quer menos impostos, mas quer o Estado a pagar o acesso a uma saúde providenciada pelo privado. O neoliberalismo não quer menos Estado, quer que o Estado, isto é, os contribuintes, sejam financiadores do negócio privado. E que o façam duplamente, inscrevendo-os simultaneamente na lógica dos seguros de saúde. É que, ao contrário do que Montenegro dizia a Mortágua, o privado não «somos você e eu», não é a classe média, não são os pequenos «proprietários»; pelo contrário, são os grandes grupos económicos, os grandes monopólios que fazem da exploração dos direitos básicos colectivos  que a democracia elegeu como seus  funções absolutas do seu negócio. Essa é a grande armadilha política que se esconde sob a lógica e sob o nome «privado».

É por isso que o Chega é o grande partido da classe média, isto é, da classe média dos pequenos proprietários endividados: ele não representa os privados, representa, sim, uma fatia considerável daqueles que estão hoje nas mãos dos privados, endividados pelo mercado, endividados pelo capital rentista, endividados pelos bancos. A oposição histórica da Sociedade contra o Estado é transformada na oposição Mercado contra o Estado. E é essa a operação político-teológica que consuma o sucesso actual da extrema-direita: mobilizar o ressentimento contra o mercado como ressentimento contra o Estado (social), isto é, como ressentimento contra a própria democracia. É esse o papel da extrema-direita: fazer com que o Mercado permaneça intocável, que este possa continuar o desmantelamento da Social-democracia e do Estado social; isto é, fazer aquilo que a direita não foi até agora capaz de levar a cabo, nem que para isso se coloque em causa a própria democracia. É essa a ironia da extrema-direita: permitir o avanço derradeiro do neoliberalismo financeiro à custa daqueles que diz defender, a classe média. A direita do Chega não é anti-sistema, ela é o sistema — neoliberal e financeiro —, Saturno devorando os filhos da social-democracia.

Estamos, portanto, numa situação política singular: o Estado, essa entidade demiúrgica e totalizadora que mobilizou a crítica da esquerda, transformou-se no último baluarte da defesa dos direitos inalienáveis da constituição democrática. E mais, fez da esquerda o seu último grande defensor. É por isso que o epíteto «festival de demagogia» é, ele próprio, tão demagógico e intelectualmente ignorante: porque nada nas posições de um partido como o BE, a CDU ou o Livre é extremista: eles são, pelo contrário, os últimos defensores do projecto da social-democracia — esse mesmo que o PS provou na última década ser incapaz de defender. Eles, CDU, Bloco e Livre, são o centro político: oferecem uma reflexão estruturada — bastou ver os debates entre cada um dos partidos —, medidas e um programa mínimo de regulação para que o mercado, ele próprio, possa funcionar tanto economicamente, como socialmente, isto é, para a sociedade no seu todo, para essa sociedade dos pequenos proprietários e não apenas para a sociedade dos grande proprietários.

E este é o paradoxo que determina a difícil posição em que a esquerda se encontra: ela está na posição de falar para aqueles que foram sempre os seus inimigos políticos e que sempre viram na esquerda o espectro capaz de colocar em causa a ordem social-democrata da classe média — papel destruidor que afinal veio a caber aos próprio partidos sociais-democratas. Hoje, no entanto, classe média e esquerda, são aliados e não o sabem. É também neste sentido que devemos perceber o papel da extrema-direita: ela visa neutralizar a possibilidade de uma frente comum, de uma aliança entre classe trabalhadora e classe média. Mas o seu sucesso só é possível porque a social-democracia no seu processo de pacificação política e depois o neoliberalismo, no seu processo de precarização laboral e social, fizeram da classe média um gigantesco vazio político e intelectual, uma massa politicamente dessubjectivada e politicamente iletrada. Mas há ainda um outro aspecto fundamental da crise da esquerda, porque o proletariado ainda existe ou, melhor, existe economicamente e socialmente, mas não politicamente: isto é, a grande massa de trabalhadores é hoje mão-de-obra migrante, trabalhadores migrantes sem qualquer direito político. Temos um proletariado internacional e móvel que não detém representação política suficiente dentro do quadro democrático para lutar pelos seus direitos, isto é, não vota. E é esse um aspecto que diz também muito do momento histórico que atravessamos.

Mas há uma última reflexão que interessa fazer. Acusar as propostas do Bloco de Esquerda de demagógicas não reflecte apenas uma radicalização da direita política, mas a condição de um comentariado nacional que fez da posição de isenção e objectividade com que o jornalismo os dotou, o campo de uma batalha sem tréguas não apenas contra a social-democracia, não apenas contra a democracia, mas diga-se contra o próprio jornalismo. O sistema de avaliação por notas no final dos debates exprime lapidarmente isso mesmo ao esconder, por detrás da objectividade e da fria neutralidade do número, todo um programa ideológico e político que vê demagogia por todo o lado excepto nos seus próprios argumentos, excepto na sua própria posição de jornalista-ideólogo. A indicação em rodapé identifica o comentador como jornalista, mas será essa a posição a partir da qual este fala? É verdade, dirá o leitor atento, que o jornalismo viveu sempre de uma ambiguidade e de um confronto entre os critérios de objectividade e isenção que definem o seu campo e o posicionamento ideológico e político em que naturalmente se insere. Mas a questão que se coloca, precisamente por causa de toda esta reconfiguração do espectro político, é a da pluralidade. Ora, se a pluralidade política é o princípio fundamental da democracia, aquilo que hoje o sistema do comentariado nacional — mas também os meios de comunicação social no seu todo — revela de forma tão evidente é o fim dessa pluralidade da democracia.

É provável que, para a jornalista aqui citada, não exista nenhum problema em que um fundo de investimento sem rosto possa deter uma casa ou mesmo uma cidade, porque isso é «bom» para a economia. E, no entanto, aquilo que a crise do grupo Global Media, hoje nas mãos de um fundo de investimento sem rosto localizado num offshore, expôs de forma tão evidente — e expôs ao próprio jornalismo — é a contradição absoluta de entregar determinados sectores — sectores fundamentais à vida social e democrática — à lógica da mão invisível do mercado, aptos a serem desbaratados como activos no negócio sem tréguas da finança, ainda que isso possa ser «bom» para a economia. Chegamos ao momento em que o capitalismo já não serve a liberdade de imprensa. E não sou eu que o digo, é o jornalista Pedro Coelho, em entrevista a Daniel Oliveira no programa «Perguntar Não Ofende». A crise do jornalismo é também a crise da democracia. Mas não é apenas porque este deixou de ser rentável para o capitalismo: é porque o princípio que fundou a sociedade democrática no seu todo, o princípio da autonomia de uma esfera pública e crítica — à qual o jornalismo, mas também, por exemplo a Universidade, pertencem — está hoje em crise. E está em crise, por uma razão muito simples: porque o capitalismo deixou de ter necessidade de se legitimar, primeiro contra a velha ordem da aristocracia, depois contra o espectro do comunismo. Quem diria que, com a queda do muro de Berlim e da União Soviética, em 1989, se consumaria não a vitória, mas a queda, lenta e penosa, da social-democracia?

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Ficha técnica

«Dizer qualquer coisa de esquerda» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 15.02.2024

Edição #41 • Inverno 2024