«Um festival de demagogia»,
foi assim que uma jornalista e representante do comentariado nacional — talvez
a mais ilustre instituição política da direita em Portugal — sintetizou o
debate entre Mariana Mortágua e André Ventura. O comentariado nacional foi
obrigado a reconhecer a capacidade e a preparação de Mariana Mortágua perante o
líder do Chega. Mas
para o fazer teve de reduzir o debate «a um confronto entre duas demagogias»: isto
é, concede a «vitória» à coordenadora do Bloco, mas apenas na medida em que
esvazia o debate de todo o conteúdo político — como se o debate do dia anterior
entre Ventura e Montenegro tivesse sido uma lição ímpar de conteúdo político.
Ao reduzir o debate a um «festival de demagogia», o comentariado utiliza o
Chega — e a incoerência das suas propostas — para englobar o Bloco e os juntar
nesse estranho lugar político-geométrico onde os «extremos se tocam». Dizer
qualquer coisa de esquerda — para recordar o desânimo de Nanni Moretti, no
filme Aprile, enquanto observava o debate de D’Alema contra Berlusconi —
passou a ser considerado hoje uma demagogia.
É verdade que
Mariana Mortágua poderia ter procurado explicar com mais detalhe algumas das
propostas que foi elencando, algo difícil de fazer no modelo que o próprio
debate impõe. Não é possível explicar em trinta segundos a relação constitutiva
entre vistos gold, corrupção e especulação imobiliária, muito menos
fazê-lo com André Ventura do outro lado da mesa. Não há nenhuma demagogia
política nas propostas do BE ou da CDU ou do Livre há, sim, opções políticas
que visam reduzir o peso implacável da máquina financeira sobre as cidades e
sobre aquilo que era, até há bem pouco tempo, um direito constitucional e não
apenas um activo bancário: a habitação. A conversão da habitação em activo de
fundos de investimentos sem rosto, escondidos nessa utopia do liberalismo
financeiro que é o offshore, é um problema central de uma economia cada
vez mais dependente de um rentismo monopolista que, na verdade, tem vindo a pôr
em causa a liberdade do próprio mercado, dos pequenos empresários e
comerciantes. Basta ver o que se passa hoje nas cidades, onde as altas rendas
são um entrave ao estabelecimento não apenas de habitantes, mas de novos
negócios, neutralizando a própria dinâmica da economia.
Permitam-me um
pequeno desvio. É preciso que se diga, de uma vez por todas: não foi o alojamento
local que reabilitou os centros históricos das cidades, mas sim todo um
conjunto integrado de políticas que fizeram do turismo o núcleo fundamental da
economia e apostaram no investimento estrangeiro. Do mesmo modo, o abandono e a
desertificação das cidades não foi um processo natural, mas foi o resultado de
cinquenta anos de políticas de esvaziamento dos centros urbanos. A democracia impôs
um modelo suburbano, capaz de responder às exigências de estatuto das
classes médias, que se baseou no entrelaçamento de três eixos fundamentais: casa,
carro e centro comercial; um modelo que assentava na valorização
urbana dos solos periféricos, no sistema do crédito bonificado e num sector da
construção civil pouco profissionalizado e sem grande capacidade para intervir
em processos de reabilitação. Esse modelo terminou definitivamente em 2008, com
o início da crise financeira, obrigando Portugal, ao longo dos anos da Troika,
a redireccionar a sua economia para o turismo.
Ora, voltando ao
debate, para André Ventura — e para a
direita no seu todo — qualquer medida que vise mexer no mercado é
reunida sob o epiteto de «mais Estado», «Estado por todo o lado»,
mas a verdade é que sem um quadro regulatório mínimo não são apenas as cidades
que se tornarão inabitáveis, é o próprio mercado que implodirá. A mão
invisível do mercado, o sonho de uma auto-regulação divina do mercado: isso
sim é um «festival de demagogia» que a história já se
encarregou de expor vezes sem conta. Foi, aliás, precisamente contra esse liberalismo
laissez-faire, que mergulhou a Europa numa grave crise económica e
social, que a social-democracia se afirmou definitivamente após a Segunda
Guerra Mundial. Mas na «era da finança», na era de uma economia rentista, é de
novo o desmantelamento de qualquer quadro regulatório que se tornou um alvo. Mas não só: é toda a ideia de uma protecção social colectiva, é toda uma
noção de bens comuns e de direitos essenciais básicos — saúde, habitação,
educação — que é preciso privatizar, para que estes possam entrar no
gigantesco circuito de despossessão da finança.
A direita quer menos impostos, mas quer o Estado a pagar o acesso a uma saúde providenciada pelo privado. O neoliberalismo não quer menos Estado, quer que o Estado, isto é, os contribuintes, sejam financiadores do negócio privado. E que o façam duplamente, inscrevendo-os simultaneamente na lógica dos seguros de saúde. É que, ao contrário do que Montenegro dizia a Mortágua, o privado não «somos você e eu», não é a classe média, não são os pequenos «proprietários»; pelo contrário, são os grandes grupos económicos, os grandes monopólios que fazem da exploração dos direitos básicos colectivos — que a democracia elegeu como seus — funções absolutas do seu negócio. Essa é a grande armadilha política que se esconde sob a lógica e sob o nome «privado».
É por isso que o
Chega é o grande partido da classe média, isto é, da classe média dos pequenos
proprietários endividados: ele não representa os privados, representa, sim,
uma fatia considerável daqueles que estão hoje nas mãos dos privados,
endividados pelo mercado, endividados pelo capital rentista, endividados pelos
bancos. A oposição histórica da Sociedade contra o Estado é transformada
na oposição Mercado contra o Estado. E é essa a operação
político-teológica que consuma o sucesso actual da extrema-direita: mobilizar
o ressentimento contra o mercado como ressentimento contra o Estado (social),
isto é, como ressentimento contra a própria democracia. É esse o papel
da extrema-direita: fazer com que o Mercado permaneça intocável, que este possa
continuar o desmantelamento da Social-democracia e do Estado social; isto é,
fazer aquilo que a direita não foi até agora capaz de levar a cabo, nem que
para isso se coloque em causa a própria democracia. É essa a ironia da
extrema-direita: permitir o avanço derradeiro do neoliberalismo financeiro à
custa daqueles que diz defender, a classe média. A direita do Chega não é
anti-sistema, ela é o sistema — neoliberal e financeiro —, Saturno devorando os
filhos da social-democracia.
Estamos, portanto,
numa situação política singular: o Estado, essa entidade demiúrgica e totalizadora
que mobilizou a crítica da esquerda, transformou-se no último baluarte da
defesa dos direitos inalienáveis da constituição democrática. E mais, fez da
esquerda o seu último grande defensor. É por isso que o epíteto «festival de demagogia»
é, ele próprio, tão demagógico e intelectualmente ignorante: porque nada nas
posições de um partido como o BE, a CDU ou o Livre é extremista: eles são, pelo
contrário, os últimos defensores do projecto da social-democracia — esse mesmo que
o PS provou na última década ser incapaz de defender. Eles, CDU, Bloco e Livre,
são o centro político: oferecem uma reflexão estruturada — bastou ver os
debates entre cada um dos partidos —, medidas e um programa mínimo de regulação
para que o mercado, ele próprio, possa funcionar tanto economicamente, como
socialmente, isto é, para a sociedade no seu todo, para essa sociedade dos
pequenos proprietários e não apenas para a sociedade dos grande proprietários.
E este é o
paradoxo que determina a difícil posição em que a esquerda se encontra: ela
está na posição de falar para aqueles que foram sempre os seus inimigos políticos
e que sempre viram na esquerda o espectro capaz de colocar em causa a ordem
social-democrata da classe média — papel destruidor que afinal veio a caber aos
próprio partidos sociais-democratas. Hoje, no entanto, classe média e esquerda,
são aliados e não o sabem. É também neste sentido que devemos perceber o papel
da extrema-direita: ela visa neutralizar a possibilidade de uma frente comum,
de uma aliança entre classe trabalhadora e classe média. Mas o seu sucesso só é
possível porque a social-democracia no seu processo de pacificação política e depois
o neoliberalismo, no seu processo de precarização laboral e social, fizeram da
classe média um gigantesco vazio político e intelectual, uma massa
politicamente dessubjectivada e politicamente iletrada. Mas há ainda um outro
aspecto fundamental da crise da esquerda, porque o proletariado ainda existe ou,
melhor, existe economicamente e socialmente, mas não politicamente: isto é, a
grande massa de trabalhadores é hoje mão-de-obra migrante, trabalhadores
migrantes sem qualquer direito político. Temos um proletariado internacional e móvel
que não detém representação política suficiente dentro do quadro democrático
para lutar pelos seus direitos, isto é, não vota. E é esse um aspecto que diz
também muito do momento histórico que atravessamos.
Mas há uma
última reflexão que interessa fazer. Acusar as propostas do Bloco de Esquerda de
demagógicas não reflecte apenas uma radicalização da direita política, mas a
condição de um comentariado nacional que fez da posição de isenção e
objectividade com que o jornalismo os dotou, o campo de uma batalha sem tréguas
não apenas contra a social-democracia, não apenas contra a democracia, mas diga-se
contra o próprio jornalismo. O sistema de avaliação por notas no final dos debates
exprime lapidarmente isso mesmo ao esconder, por detrás da objectividade e da
fria neutralidade do número, todo um programa ideológico e político que vê
demagogia por todo o lado excepto nos seus próprios argumentos, excepto na sua
própria posição de jornalista-ideólogo. A indicação em rodapé identifica o
comentador como jornalista, mas será essa a posição a partir da qual este fala?
É verdade, dirá o leitor atento, que o jornalismo viveu sempre de uma
ambiguidade e de um confronto entre os critérios de objectividade e isenção que
definem o seu campo e o posicionamento ideológico e político em que
naturalmente se insere. Mas a questão que se coloca, precisamente por causa de
toda esta reconfiguração do espectro político, é a da pluralidade. Ora, se a
pluralidade política é o princípio fundamental da democracia, aquilo que hoje o
sistema do comentariado nacional — mas também os meios de comunicação social no
seu todo — revela de forma tão evidente é o fim dessa pluralidade da
democracia.
É provável que,
para a jornalista aqui citada, não exista nenhum problema em que um fundo de
investimento sem rosto possa deter uma casa ou mesmo uma cidade, porque isso é
«bom» para a economia. E, no entanto, aquilo que a crise do grupo Global Media,
hoje nas mãos de um fundo de investimento sem rosto localizado num offshore,
expôs de forma tão evidente — e expôs ao próprio jornalismo — é a contradição
absoluta de entregar determinados sectores — sectores fundamentais à vida
social e democrática — à lógica da mão invisível do mercado, aptos a serem
desbaratados como activos no negócio sem tréguas da finança, ainda que isso
possa ser «bom» para a economia. Chegamos ao momento em que o capitalismo já não
serve a liberdade de imprensa. E não sou eu que o digo, é o jornalista Pedro
Coelho, em entrevista a Daniel Oliveira no programa «Perguntar Não Ofende». A
crise do jornalismo é também a crise da democracia. Mas não é apenas porque
este deixou de ser rentável para o capitalismo: é porque o princípio que fundou
a sociedade democrática no seu todo, o princípio da autonomia de uma esfera pública
e crítica — à qual o jornalismo, mas também, por exemplo a Universidade,
pertencem — está hoje em crise. E está em crise, por uma razão muito simples:
porque o capitalismo deixou de ter necessidade de se legitimar, primeiro contra
a velha ordem da aristocracia, depois contra o espectro do comunismo. Quem
diria que, com a queda do muro de Berlim e da União Soviética, em 1989, se
consumaria não a vitória, mas a queda, lenta e penosa, da social-democracia?
•
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Ficha
técnica
«Dizer
qualquer coisa de esquerda» • Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 15.02.2024
Edição #41 • Inverno 2024