O bom, o mau e o militante. Toni Negri (1933 - 2023) • Luhuna Carvalho




Os situacionistas diziam que tinham um pai que amavam, Dada, e um pai que odiavam, o Surrealismo. Para muitos de nós, Toni Negri cumpria ambos os papeis. O longo Maio de 68 italiano permanece um dos nossos últimos mitos, ainda que demasiado jovens para o ter vivido em primeira mão. Grande parte das nossas lutas, nas ocupações e nas ruas, ocorreu dentro dos repertórios fragmentados que herdámos desse período, quer o saibamos que não, sendo essas lutas a única forma de comunidade que alguma vez conhecemos.

O Negri que amámos foi o Negri que abandonou uma carreira académica confortável e promissora para se tornar num agitador subversivo. Foi o Negri que nos ensinou que a raiva, o desespero, o ódio e a alienação que sentíamos não eram senão um desejo febril de uma vida e de um mundo diferentes, não eram senão uma estranha e profunda paixão pelos nossos camaradas e companheiros, não eram senão uma obsessão com a questão da abolição do capitalismo. O Negri que amámos foi o Negri que afirmou que ricominciare da capo non significa andare indietro (recomeçar do início não significa andar para trás), transformando o partido Potere Operaio na rede rizomática de colectivos da Autonomia Operaia. Foi o Negri que celebrou a recusa proletária da memória de esquerda, sempre tão melancólica e institucional. Foi o Negri que leu cada conceito económico enquanto uma categoria de antagonismo. Foi o Negri que nos mostrou uma dignidade, um fervor e uma alegria inerentes ao acto de lutar que o cinismo da teoria crítica nunca realmente conseguiu compreender. Foi o Negri que levou a sério quando Marx disse que o comunismo era «o movimento real de abolição do estado de coisas existente», percebendo como os momentos de luta eram também momentos de comunhão, e portanto instâncias concretas de algo ainda por vir.

O Negri que rejeitámos, com uma impaciência reservada a quem nos é próximo, foi o Negri da busca desesperada por um novo sujeito colectivo, as suas sucessivas hipóteses desaparecendo desvanecendo uma após a outra. Foi o Negri que lia cada nova moda enquanto uma expressão de «resistência», sem nunca explicar bem como ou porquê. Foi o Negri que transformou o pós-operaismo numa sociologia vulgar. Foi o Negri da União Europeia, o Negri do rendimento básico universal, o Negri constituinte, o Negri democrático, o Negri aceleracionista, etc.

Não houve, na verdade, qualquer oposição entre o Negri do passa-montanhas e o Negri cidadão. Ante a sua morte, temos de admitir que essa distinção foi uma invenção toda nossa. Negri foi profundamente consistente. A continuidade do seu pensamento reside em como o seu optimismo beckettiano esteve inerentemente presente ao largo de todo o seu trabalho político e filosófico.

Tudo começou com a famosa «viragem coperniciana» de Mario Tronti, o lendário parágrafo vermelho da capa da revista Classe Operaia: «temos de inverter o problema, mudar o signo, recomeçar do início, e o início são as lutas de classe operárias». Foram as lutas operárias que obrigaram os capitalistas a criar o capitalismo e o desenvolvimento capitalista foi sempre dirigido pelas suas lutas mais avançadas. A tradução para inglês deste parágrafo foi sempre complexa. O original diz «luta de classe operária» e não apenas «luta de classes». A primazia da lutas estava ancorada nas especificidades concretas do trabalho industrial da classe operária italiana do pós-guerra, e não na «classe trabalhadora» ou no «povo» por inteiro. O antagonismo espontâneo e criativo desta classe operária surgia de uma conjugação particular entre a sua inclusão económica e a sua exclusão política, uma tensão que alcançava a sua maior expressão nas fábricas do milagre económico italiano. A ontologia política do Operaismo foi fundada na distinção entre os operários e a classe trabalhadora enquanto tal.

Negri abole esta diferença trontiana, um gesto ao mesmo tempo brilhante e espúrio. A essência desse antagonismo não era qualquer forma de trabalho produtivo per se,  mas as formas de separação e alienação concretas sofridas por estes operários. A extensão do domínio capitalista sobre a reprodução social significava que essa separação e alienação estavam agora em todo o lado.

Ao observar o modo como esse antagonismo selvagem se estendia da fábrica para a metrópole, Negri desenvolveu as ferramentas conceptuais com que nomear, armar e organizar esse antagonismo difuso, algo que nem o situacionismo nem o anarquismo conseguiram verdadeiramente fazer. Negri desenvolveu a possibilidade de um comunismo imediato e imanente às lutas em si próprias. O comunismo não era um prémio à espera no final da caminhada pelas etapas toscas e aldrabadas do materialismo dialético, era algo que estava já aqui, presente na inteligência violenta, radical e colectiva que emergia por entre mil actos de antagonismo, insurreição e comunização.

A primazia absoluta que Negri lia nas lutas postulava um conteúdo positivo dentro do fenómeno da recusa do trabalho. Por trás da sabotagem, das greves selvagens nas fábricas e da subversão na metrópole estava a afirmação social de um modo proletário de produção. «Auto-valorização» foi um dos seus primeiros nomes, «multitude» um dos seus últimos.

A omnipresença social desse antagonismo foi evidente durante os anos setenta, mas tornou-se cada vez menos evidente à medida que o longo Maio Italiano terminava. Como poderia esse «conteúdo positivo» inerente à recusa do trabalho expressar-se quando essa recusa do trabalho deixava de ser uma prática de ruptura? Se Negri defendia uma primazia social das lutas, não ancorada na fábrica, então essa primazia tinha de se tornar numa teoria da vida social contemporânea, capaz de redescobrir algo semelhante à agitação das décadas anteriores numa sociedade civil cada vez mais fragmentada e insipiente. O pós-operaismo acabou por ver cada mínimo espasmo do corpo social enquanto «auto-valorização» e enquanto possibilidade de «resistência», sem nunca desenvolver qualquer critério para distinguir essa resistência de tudo o resto. O resultado final é que tudo era «resistência» e portanto nada era resistência.

Negri foi frequentemente acusado de ser pouco dialéctico. Ele próprio concordaria, sorrindo, mas se Negri pode ser acusado de algo é de ser demasiado dialéctico. Se Tronti foi, nas suas próprias palavras, primeiro um político e só depois um «pensador», Negri foi, com orgulho, antes de tudo um militante e só depois um filósofo. Negri escrevia para o «movimento», consciente de que escrever para esse sujeito era um modo de o criar. Não havia razão externa ao movimento subjectivo da classe, à afirmação do seu conteúdo positivo, e consequentemente a consistência do trabalho conceptual de Negri apenas seria confirmada nas próprias lutas. «Auto-valorização» e «multitude» eram conceitos válidos na medida em que a ideia negriana de movimento se reconhecia neles e nos processos políticos pressupostos neles. Por outras palavras, a «multitude» só existia quando ela própria acreditava existir.

Esse «movimento» não podia senão pressupor as suas condições históricas, o estado e o capital. O seu antagonismo triunfante existia apenas na medida em que partilhava um campo de jogo com a equipa oposta, mas isso significava que cada golo marcado reforçava a aceitação das regras do jogo. É por isso que Negri nunca foi anarquista, nem nunca o afirmou ser, apesar da sua escrita ter sido sempre colorida por um libertarianismo vago e de o anarquismo moderno tanto lhe dever. Para ele, os conceitos e as ideias só existiam quando se tornavam movimento, e o movimento só existia quando se articulava com as realidades institucionais do seu período — fossem elas o Partido Comunista Italiano ou a União Europeia, a Mirafiori ou o empreendedorismo neoliberal.

No entanto, à medida que as insurreições vinham e iam, a coerência interna de qualquer instância de movimento parecia dissipar-se cada vez mais. O Negrismo funcionava na presunção de que o núcleo dinâmico da política contemporânea residia na oscilação entre formas constituintes e constituídas. Mas hoje o poder afirma-se através da sua capacidade de destruir, desmantelar e aniquilar o seu próprio corpo social, através da austeridade, da exclusão ou da guerra. A coerência da sua ontologia política, assente numa substância revolucionária, só era sustentável enquanto essa dialéctica constitucional também o era, mesmo que a ideia negriana de «potência constituinte» almejasse uma suspensão dessa lógica soberana. O optimismo irredutível de Negri ganhou, a pouco e pouco, um sabor cada vez mais amargo, como se a única estratégia restante fosse repetir «estamos a ganhar» ante a óbvia derrota. A autonomia operaia dos anos 70, para Negri, existia enquanto modo de libertar o PCI da sua ortodoxia e complacência, não enquanto modo de o destruir. Mas a União Europeia não é o PCI e a bitcoin não é a Mirafiori.

Ainda assim, Negri estava certo, de um modo que poucos outros estiveram, precisamente nessa insistência de que o comunismo é algo sempre já presente. A sua própria vida foi, nas suas palavras, uma «vida comunista». Afirmar que uma vida é comunista não significa afirmar que o comunismo se realizou na integridade ética dos próprios gestos, afectos e acções, ou acreditar que uma história pessoal se pode afirmar enquanto exemplo do que é o comunismo. Significa, pelo contrário, que se escolheu viver dentro da questão do comunismo, com as suas singulares alegrias e tristezas. A morte de Negri, como a de Tronti e outras, levanta uma questão de continuidade, especialmente para os que, de um modo ou de outro, foram criados dentro de tradições militantes devedoras a essas figuras. Num mundo que suscita pouca esperança, a sua tenacidade lendária é simultaneamente inspiradora e um fardo. Talvez o único modo de lhe permanecer fiel seja, nos nossos termos, ensaiar novamente a ruptura inerente ao seu pensamento. É precisamente porque podemos celebrar o optimismo de Negri que podemos também sugerir que, hoje, recomeçar de novo pode querer dizer recuar. Recuar precisamente até à questão do que pode ser essa vida comunista.

 

 

Luhuna Carvalho

Lisboa (1980). Estudou Cinema em Barcelona. Fez um estágio em Nova Iorque. Mestrado na FCSH. Universidade Nova de Lisboa. Doutoramento no Centre for Research on Modern European Philosophy, Kingston University, Londres. Autor de Depois da Lei, Língua Morta, 2022.

 

Nota da edição

Este texto foi publicado em inglês em Ill Will. No próximo dia 5 de Fevereiro, na Biblioteca Nacional, irá realizar-se o colóquio Ao encontro de Antonio Negri com organização de Amedeo Policante, Bruno Peixe Dias e José Neves.

 

Imagem

Capa da revista Potere Operaio, Novembro 1973.

 

Ficha técnica

«O bom, o mau e o militante. Toni Negri (1933 - 2023)» • Luhuna Carvalho

Data de publicação • 30.01.2024

Edição #41 • Inverno 2024