Os
situacionistas diziam que tinham um pai que amavam, Dada, e um pai que odiavam,
o Surrealismo. Para muitos de nós, Toni Negri cumpria ambos os papeis. O longo
Maio de 68 italiano permanece um dos nossos últimos mitos, ainda que demasiado
jovens para o ter vivido em primeira mão. Grande parte das nossas lutas, nas
ocupações e nas ruas, ocorreu dentro dos repertórios fragmentados que herdámos
desse período, quer o saibamos que não, sendo essas lutas a única forma de
comunidade que alguma vez conhecemos.
O
Negri que amámos foi o Negri que abandonou uma carreira académica confortável e
promissora para se tornar num agitador subversivo. Foi o Negri que nos ensinou
que a raiva, o desespero, o ódio e a alienação que sentíamos não eram senão um
desejo febril de uma vida e de um mundo diferentes, não eram senão uma estranha
e profunda paixão pelos nossos camaradas e companheiros, não eram senão uma
obsessão com a questão da abolição do capitalismo. O Negri que amámos foi o
Negri que afirmou que ricominciare da capo non significa andare indietro
(recomeçar do início não significa andar para trás), transformando o partido Potere
Operaio na rede rizomática de colectivos da Autonomia Operaia. Foi o
Negri que celebrou a recusa proletária da memória de esquerda, sempre tão
melancólica e institucional. Foi o Negri que leu cada conceito económico
enquanto uma categoria de antagonismo. Foi o Negri que nos mostrou uma
dignidade, um fervor e uma alegria inerentes ao acto de lutar que o cinismo da
teoria crítica nunca realmente conseguiu compreender. Foi o Negri que levou a
sério quando Marx disse que o comunismo era «o movimento real de abolição do
estado de coisas existente», percebendo como os momentos de luta eram também
momentos de comunhão, e portanto instâncias concretas de algo ainda por vir.
O
Negri que rejeitámos, com uma impaciência reservada a quem nos é próximo, foi o
Negri da busca desesperada por um novo sujeito colectivo, as suas sucessivas
hipóteses desaparecendo desvanecendo uma após a outra. Foi o Negri que lia cada
nova moda enquanto uma expressão de «resistência», sem nunca explicar bem como
ou porquê. Foi o Negri que transformou o pós-operaismo numa sociologia vulgar.
Foi o Negri da União Europeia, o Negri do rendimento básico universal, o Negri
constituinte, o Negri democrático, o Negri aceleracionista, etc.
Não
houve, na verdade, qualquer oposição entre o Negri do passa-montanhas e o Negri
cidadão. Ante a sua morte, temos de admitir que essa distinção foi uma invenção
toda nossa. Negri foi profundamente consistente. A continuidade do seu
pensamento reside em como o seu optimismo beckettiano esteve
inerentemente presente ao largo de todo o seu trabalho político e filosófico.
Tudo
começou com a famosa «viragem coperniciana» de Mario Tronti, o lendário parágrafo
vermelho da capa da revista Classe Operaia: «temos de inverter o
problema, mudar o signo, recomeçar do início, e o início são as lutas de classe
operárias». Foram as lutas operárias que obrigaram os capitalistas a criar o
capitalismo e o desenvolvimento capitalista foi sempre dirigido pelas suas
lutas mais avançadas. A tradução para inglês deste parágrafo foi sempre
complexa. O original diz «luta de classe operária» e não apenas «luta de
classes». A primazia da lutas estava ancorada nas especificidades concretas do
trabalho industrial da classe operária italiana do pós-guerra, e não na «classe
trabalhadora» ou no «povo» por inteiro. O antagonismo espontâneo e criativo
desta classe operária surgia de uma conjugação particular entre a sua inclusão
económica e a sua exclusão política, uma tensão que alcançava a sua maior
expressão nas fábricas do milagre económico italiano. A ontologia política do Operaismo
foi fundada na distinção entre os operários e a classe trabalhadora enquanto
tal.
Negri
abole esta diferença trontiana, um gesto ao mesmo tempo brilhante e espúrio. A
essência desse antagonismo não era qualquer forma de trabalho produtivo per
se, mas as formas de separação e
alienação concretas sofridas por estes operários. A extensão do domínio
capitalista sobre a reprodução social significava que essa separação e alienação
estavam agora em todo o lado.
Ao
observar o modo como esse antagonismo selvagem se estendia da fábrica para a
metrópole, Negri desenvolveu as ferramentas conceptuais com que nomear, armar e
organizar esse antagonismo difuso, algo que nem o situacionismo nem o
anarquismo conseguiram verdadeiramente fazer. Negri desenvolveu a possibilidade
de um comunismo imediato e imanente às lutas em si próprias. O comunismo não
era um prémio à espera no final da caminhada pelas etapas toscas e aldrabadas
do materialismo dialético, era algo que estava já aqui, presente na
inteligência violenta, radical e colectiva que emergia por entre mil actos de
antagonismo, insurreição e comunização.
A
primazia absoluta que Negri lia nas lutas postulava um conteúdo positivo dentro
do fenómeno da recusa do trabalho. Por trás da sabotagem, das greves selvagens
nas fábricas e da subversão na metrópole estava a afirmação social de um modo
proletário de produção. «Auto-valorização» foi um dos seus primeiros nomes, «multitude»
um dos seus últimos.
A
omnipresença social desse antagonismo foi evidente durante os anos setenta, mas
tornou-se cada vez menos evidente à medida que o longo Maio Italiano terminava.
Como poderia esse «conteúdo positivo» inerente à recusa do trabalho
expressar-se quando essa recusa do trabalho deixava de ser uma prática de
ruptura? Se Negri defendia uma primazia social das lutas, não ancorada na
fábrica, então essa primazia tinha de se tornar numa teoria da vida social
contemporânea, capaz de redescobrir algo semelhante à agitação das décadas
anteriores numa sociedade civil cada vez mais fragmentada e insipiente. O
pós-operaismo acabou por ver cada mínimo espasmo do corpo social enquanto «auto-valorização»
e enquanto possibilidade de «resistência», sem nunca desenvolver qualquer
critério para distinguir essa resistência de tudo o resto. O resultado final é
que tudo era «resistência» e portanto nada era resistência.
Negri
foi frequentemente acusado de ser pouco dialéctico. Ele próprio concordaria,
sorrindo, mas se Negri pode ser acusado de algo é de ser demasiado dialéctico.
Se Tronti foi, nas suas próprias palavras, primeiro um político e só depois um «pensador»,
Negri foi, com orgulho, antes de tudo um militante e só depois um filósofo.
Negri escrevia para o «movimento», consciente de que escrever para esse sujeito
era um modo de o criar. Não havia razão externa ao movimento subjectivo da
classe, à afirmação do seu conteúdo positivo, e consequentemente a consistência
do trabalho conceptual de Negri apenas seria confirmada nas próprias lutas. «Auto-valorização»
e «multitude» eram conceitos válidos na medida em que a ideia negriana
de movimento se reconhecia neles e nos processos políticos pressupostos neles.
Por outras palavras, a «multitude» só existia quando ela própria acreditava
existir.
Esse
«movimento» não podia senão pressupor as suas condições históricas, o estado e
o capital. O seu antagonismo triunfante existia apenas na medida em que
partilhava um campo de jogo com a equipa oposta, mas isso significava que cada
golo marcado reforçava a aceitação das regras do jogo. É por isso que Negri
nunca foi anarquista, nem nunca o afirmou ser, apesar da sua escrita ter sido
sempre colorida por um libertarianismo vago e de o anarquismo moderno tanto lhe
dever. Para ele, os conceitos e as ideias só existiam quando se tornavam
movimento, e o movimento só existia quando se articulava com as realidades
institucionais do seu período — fossem elas o Partido Comunista Italiano ou a
União Europeia, a Mirafiori ou o empreendedorismo neoliberal.
No
entanto, à medida que as insurreições vinham e iam, a coerência interna de qualquer
instância de movimento parecia dissipar-se cada vez mais. O Negrismo funcionava
na presunção de que o núcleo dinâmico da política contemporânea residia na oscilação
entre formas constituintes e constituídas. Mas hoje o poder afirma-se através
da sua capacidade de destruir, desmantelar e aniquilar o seu próprio corpo
social, através da austeridade, da exclusão ou da guerra. A coerência da sua
ontologia política, assente numa substância revolucionária, só era sustentável
enquanto essa dialéctica constitucional também o era, mesmo que a ideia negriana
de «potência constituinte» almejasse uma suspensão dessa lógica soberana. O
optimismo irredutível de Negri ganhou, a pouco e pouco, um sabor cada vez mais
amargo, como se a única estratégia restante fosse repetir «estamos a ganhar»
ante a óbvia derrota. A autonomia operaia dos anos 70, para Negri,
existia enquanto modo de libertar o PCI da sua ortodoxia e complacência, não
enquanto modo de o destruir. Mas a União Europeia não é o PCI e a bitcoin não
é a Mirafiori.
Ainda
assim, Negri estava certo, de um modo que poucos outros estiveram, precisamente
nessa insistência de que o comunismo é algo sempre já presente. A sua própria
vida foi, nas suas palavras, uma «vida comunista». Afirmar que uma vida é
comunista não significa afirmar que o comunismo se realizou na integridade
ética dos próprios gestos, afectos e acções, ou acreditar que uma história
pessoal se pode afirmar enquanto exemplo do que é o comunismo. Significa, pelo
contrário, que se escolheu viver dentro da questão do comunismo, com as suas
singulares alegrias e tristezas. A morte de Negri, como a de Tronti e outras,
levanta uma questão de continuidade, especialmente para os que, de um modo ou
de outro, foram criados dentro de tradições militantes devedoras a essas
figuras. Num mundo que suscita pouca esperança, a sua tenacidade lendária é
simultaneamente inspiradora e um fardo. Talvez o único modo de lhe permanecer
fiel seja, nos nossos termos, ensaiar novamente a ruptura inerente ao seu
pensamento. É precisamente porque podemos celebrar o optimismo de Negri que podemos
também sugerir que, hoje, recomeçar de novo pode querer dizer recuar. Recuar
precisamente até à questão do que pode ser essa vida comunista.
•
Luhuna
Carvalho
Lisboa
(1980). Estudou Cinema em Barcelona. Fez um estágio em Nova Iorque. Mestrado na
FCSH. Universidade Nova de Lisboa. Doutoramento no Centre for Research on
Modern European Philosophy, Kingston University, Londres. Autor de
Depois da Lei, Língua Morta, 2022.
Nota
da edição
Este
texto foi publicado em inglês em Ill Will. No próximo dia 5 de Fevereiro, na Biblioteca Nacional,
irá realizar-se o colóquio Ao encontro de Antonio Negri com organização de Amedeo
Policante, Bruno Peixe Dias e José Neves.
Imagem
Capa
da revista Potere Operaio, Novembro 1973.
Ficha
técnica
«O
bom, o mau e o militante. Toni Negri (1933 - 2023)» • Luhuna Carvalho
Data
de publicação • 30.01.2024
Edição #41 • Inverno 2024