A co-memoração de algo implica
um recordar que é co-lectivo e co-electivo. Trata-se de trazer
para o presente a qualidade de algo que se identifica como pertença de todos e
que é fundacional. E, de facto, se Fernando Távora — cujo centenário agora se assinala
— pode ser co-memorado é porque nele podemos identificar a condição
fundadora de todo um espaço comum que define a existência de um modo próprio de
ver, entender e praticar, a arquitectura, que aqui e ali tomou a designação de escola
do Porto.
Confesso que ao longo da minha formação
na Faculdade de Arquitectura senti sempre uma certa ambivalência, talvez mesmo
um certo desconforto, relativamente a essa designação. Sei-o agora porquê.
Porque, na verdade, exceptuando alguns poucos, ninguém sabia bem o que era:
«É o desenho!», dizia-se, «É o projecto!» declarava-se, «É a história!»,
exclamava-se; «É a síntese de tudo!», afirmava-se por fim.
Neste sentido, a expressão escola do
Porto tinha, de facto, a força de um mito: porque pertencia aquele
domínio das coisas que se sabem apenas na condição de não se saber o que são.
Parafraseando Gertrude Stein, podia-se efectivamente dizer que «A escola do
Porto é a escola do Porto é a escola do Porto é a escola do Porto» [«uma
rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa»]. Mas se a escola se tornou
ou se foi tornando mito, se se mitificou, foi precisamente porque
em determinado momento esta teve de mistificar as suas próprias
condições de existência no contexto de uma rápida transformação da profissão,
mas também das universidades a partir do final da década de noventa até ao
derradeiro golpe que foi a crise de 2008-2014. A crise financeira e económica
não colocou apenas em causa todo um modelo de prática da construção e da
arquitectura que vingou a partir dos anos oitenta em Portugal, mas as próprias
condições materiais — políticas, sociais e económicas — que suportaram esse
modelo: isto é, o fim do projecto do Estado Social e a afirmação definitiva de
uma ordem de mercado neoliberal.
Ao mesmo tempo, a delapidação lenta e
penosa de uma ideia de universidade, em que a «transmissão de saber»
cedeu lugar à «aquisição de competências», com um perfil de aluno cada
vez mais mobilizado pela lógica do portfolio e do empreendedorismo, mas
também assombrado pelas perspectivas de proletarização e precarização da
profissão, exacerbou ainda mais um devir técnico-tecnicista do ensino da
arquitectura: um devir positivista do projecto, poderíamos dizer, sempre
mais lançado em direcção ao «como se faz?», do que a perguntar «porque se
faz?», ainda que confortado aqui e ali pelo horizonte da «professione
poetica».
Curiosamente, os únicos que pareciam
reflectir uma preocupação relativamente a todo este estado de coisas já não
estavam na escola — exceptuando Manuel Mendes e Carlos Machado — mas
fora dela. Sérgio Fernandez, Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza e até Eduardo
Souto de Moura, pareciam ser os únicos a demonstrar uma certa inquietação
pública face a esse processo de transformação. Na escola: o mito era a
forma ou, melhor, a fórmula de um silêncio.
Ora, foi precisamente em conversa com
Eduardo Souto de Moura, em Abril do ano passado, numa entrevista para a revista
Electra, que pude finalmente reconhecer qual era o elemento constituinte
comum que unia todas estas gerações de arquitectos — Távora, Siza, Souto de
Moura — e que parecia definir o core dessa entidade que dava pelo nome
de escola do Porto. Ora, se fosse possível reduzir esse elemento a uma
só palavra arriscava dizer: desassossego. Talvez pudesse mesmo ser o título
de uma monografia: «Escola do Porto. Um princípio de desassossego».
Não é o desenho, não é projecto, não é a história, aquilo que define essa escola,
mas o sentido de uma interpelação das coisas do mundo a partir da arquitectura;
um sentido de desassossego marcado pela tensão entre uma missão ética e social
da arquitectura e a possibilidade (in)adiada da sua efectualização enquanto
projecto de todos para todos — cidade, locus architectonicus; mas
também, um sentido de desassossego presente na relação entre a
disciplina e a profissão, na tensão entre as condições locais da prática, do
atelier, e da língua universal do saber disciplinar da arquitectura.
Para Fernando Távora, como para Álvaro
Siza ou Souto de Moura, a arquitectura não tem simplesmente a forma de uma
prática, mas tem a forma de um saber. Na entrevista à Electra, Eduardo
Souto de Moura sintetiza esse princípio na expressão: «não há desenho sem
cultura». E a mesma advertência relativamente à escola e ao ensino
encontrava-se já em Távora, em 1971, quando este dizia, tão candidamente como
lapidarmente, que «a ideia de que um arquitecto deve ser sobretudo um lápis
maravilhoso é uma ideia ultrapassada, pois não há lápis maravilhosos sem
cabecinhas maravilhosas».
Se Álvaro Siza, Eduardo Souto de Moura
são, entre os arquitectos reconhecidos, os poucos, os únicos, em Portugal, que
têm aproveitado a sua visibilidade para expressar dúvidas relativamente às
condições actuais da arquitectura é porque guardam consigo uma ideia de
«arquitectura como projecto» que está hoje definitivamente posta em causa. Mas
é também porque guardam intacto consigo uma condição de homme des lettres
— como fazia questão de se designar a si mesmo Le Corbusier — que os define não
apenas como arquitectos, mas como intelectuais. Ah, intelectuais, que
palavra tão fora de moda! E, no entanto, foi precisamente essa figura do arquitecto
como intelectual que marcou e construiu a herança disciplinar do século XX.
E é essa condição que Siza e Souto de Moura transportam, cada um à sua maneira:
uma vocação de permanente interpelação, reflexão sobre si mesmo, não naquilo
que os faz ser singular, mas naquilo que os faz ser plural. Não
apenas introspecção, mas extrospecção.
Uma vocação de desassossego para o
mundo, poderíamos dizer, que ambos devem indubitavelmente a Fernando Távora; um
principio de desassossego que animou todo um modo de ser arquitectura
que está, no entanto, cada vez mais longe daquilo que é a condição actual da escola
do Porto. É que o problema da escola não é — como se ouve tantas
vezes dizer — o estar parada no tempo, é antes o de ter perdido a relação
crítica com o tempo: com o tempo passado, com o tempo presente, com o tempo
futuro. É um pouco como em O Castelo de Kafka: os mensageiros
continuam a circular incansavelmente de um lado para outro com as suas
mensagens, mas já ninguém sabe verdadeiramente o que elas significam e a quem
se destinam. É que a tradição, a herança, como escreve algures Jacques Derrida,
não é um dado, mas uma tarefa.
É por isso que o problema que a co-memoração
nos coloca é tão fundamental como decisivo. Porque o risco que impende sobre
toda a comemoração é sempre o de ir ao encontro do passado, quando se trata
precisamente do movimento contrário: aquilo que é preciso é fazer com que o
passado vá ao encontro do presente, que interpele a nossa condição presente, a
nossa imersão contínua na passividade do tempo do agora. Em suma, fazer do
passado o nosso fiel contemporâneo — foi isso, aliás, que procurei fazer no texto
sobre o Mercado de Vila da Feira.
Co-memorar Fernando Távora deve, por isso, servir inevitavelmente para
re-reconhecer a sua obra, para re-conhecer a sua biografia e o seu legado
histórico, mas deve igualmente servir para re-conhecer o presente: confrontar
um modelo de ser arquitecto — um modelo que Távora não se cansou de animar e
mobilizar — e que hoje parece definitivamente a caminho da extinção; confrontar um modelo de profissão e um
sentido social e político da disciplina que está hoje em crise; confrontar um
modelo de ensino universitário, de escola, de aprendizagem da
arquitectura que está em profunda agonia. Mas significa também — por último e
não menos importante — confrontar todo um modelo — que é hoje absolutamente
dominante — de desqualificação e desvalorização do trabalho intelectual, da
investigação e do estudo — um trabalho a que Távora também se dedicou de forma
tão apaixonada ao longo da sua vida. E esta é uma responsabilidade inadiável
que cabe, em primeiro lugar, a instituições como esta onde estamos aqui hoje. Mas,
sem providenciar as condições materiais mínimas e necessárias a todos aqueles
que se dedicam a este tipo de trabalho, são as próprias formas da co-memoração
que são definitivamente colocadas em causa.
De que serve acumular o passado se ele
se transformou num souvenir, se nos tornamos incapazes de o conhecer? De
que serve erigir grandes arquivos, se as condições de possibilidade da
investigação escasseiam e esta é tratada como uma espécie de hobbie
voluntarista? Porque é preciso não esquecer, como o fez o Walter Benjamin em
plena expansão do nazismo e do fascismo, no início dos anos quarenta do século
passado, que a história não é um arquivo morto, mas um combate sem tréguas:
«Cada
época — diz Benjamin — deve tentar sempre arrancar a tradição da esfera
do conformismo que se prepara para a dominar (…) Só terá o dom de atiçar no
passado a centelha da esperança aquele historiador que tiver apreendido isto:
nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E este inimigo nunca deixou
de vencer»
•
Nota
do autor
Cumpriu-se em 2023, o
centenário do arquitecto Fernando Távora, assinalado por um conjunto de
iniciativas organizadas pela Fundação Marques da Silva. A exposição «Fernando
Távora. Pensamento livre», comissariada por Alexandre Alves Costa, é um dos
eixos programáticos fundamentais deste centenário, propondo um percurso pela arquitectura
de Fernando Távora a partir de 7 obras —
Mercado da Feira (1953/1959); Casa de Ofir (1957/1958); Pavilhão de Ténis da
Quinta da Conceição (1956/1960); Escola do Cedro (1957/1961); Pousada de Santa
Marinha da Costa (1972/1985); Anfiteatro da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra (1993/2000) e Casa dos 24, (1995/2003) e 5 núcleos
temáticos com curadoria de 5 convidados: «Referências», Ana Tostões, «Viagens»,
Sergio Fernandez, «Tratados de Arquitetura», Domingos Tavares, «Literatura
Modernista», Celeste Natário, «Aulas», Manuel Correia Fernandes. O
catálogo da exposição, lançado no dia 25 de Janeiro, contém ainda «uma nota
interpretativa de críticos da nova geração» sobre cada uma das obras em
exposição. Foi nessa qualidade que participei com um texto sobre o mercado de
Vila da Feira, com o título «A solidão da arquitectura», apresentado numa
sessão de debate que decorreu no dia 20 de Janeiro na FIMS — uma sessão que
juntou também Eliana Sousa Santos (que apresentou a Escola do Cedro), José
António Bandeirinha (que moderou a sessão) e Alexandre Alves Costa. A
apresentação sobre o mercado foi concluída com uma breve nota de reflexão mais
ampla sobre o sentido da palavra comemoração. É essa nota que aqui se
reproduziu integralmente.
Pedro
Levi Bismarck
Editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Imagem
Mercado
de Vila da Feira, Fernando Távora (1953-1959). Fotografia de autor desconhecido
(s/d), publicada na Revista Arquitectura nº 71 (Julho 1961) a acompanhar
o artigo que Nuno Portas escreveu sobre Fernando Távora. © Fundação Marques da
Silva, Arquivo Fernando Távora [FIMS/FT/0022-Foto15.1]
Ficha
técnica
«Escola
do Porto: um princípio de desassossego (— a propósito do centenário de
Fernando Távora)»
• Pedro Levi Bismarck
Data de
publicação • 25.01.2024
Edição #41 • Inverno 2024