Lobby & Lithium • Pedro Levi Bismarck



1.

A demissão de António Costa e o eventual envolvimento, entre outros, do anterior ministro do ambiente e da acção climática — João Matos Fernandes — e do seu secretário de Estado — João Galamba, que foi constituído arguido — em processos relacionados com as concessões de exploração de lítio, levantam, mais uma vez, dúvidas relativamente à transparência pública destes processos num tipo de economia em que as categorias do chamado «interesse público» e do «interesse privado» só parecem poder existir num grau de permanente indistinção; não porque se trate de uma questão de ordem moral — passível de um determinado código de ética — ou de ordem legal — passível de um determinado enquadramento jurídico —, mas pelo papel que o próprio Estado desempenha enquanto instituição da instituição do consenso social, e que no modelo das chamadas democracias liberais opera através não do exercício da violência, mas das figuras do consenso e do lobby.

Lobby, um curioso termo, que significa, em inglês, tanto átrio de um edifício como o acto de influenciar um legislador — provavelmente, remetendo para as salas do Parlamento inglês onde os deputados se podem encontrar com os chamados «members of the public». Neste sentido, poderíamos dizer que o topos que melhor caracteriza e elucida toda uma ideia de democracia liberal é, precisamente, o lobby: esse local onde privado e público não só se encontram, mas se tornam indiscerníveis e quase, poderíamos dizer, intercambiáveis: onde os interesses do público se tornam os interesses do privado e os interesses do privado se tornam os interesses do público.

Daí a grande atracção do Capital pela figura arquitectónica do lobby. Talvez o primeiro a notar uma certa afinidade entre este e a burguesia terá sido Walter Benjamin, para quem o centro do edifício da Ópera de Paris (de Charles Garnier) não era o palco ou a sala, mas o grande átrio onde a nova burguesia recém-chegada ao poder observava e era observada. Um espaço de representação individual certamente, mas sobretudo de representação — podemos acrescentar — da união colectiva dos interesses privados enquanto soma geral do interesse do Estado-Capital, sublimado pela monumentalidade gracioso-trágica da arquitectura e da ópera. Trata-se de um máximo de visibilidade que, no entanto, não é sinónimo de transparência, bem pelo contrário, torna impossível qualquer transparência através de um jogo permanente de luzes e sombras, de silêncios e murmúrios.

A legalização e a instrução de um quadro legal para o lobby, como acontece nos EUA, é uma tentativa de definir um véu de nitidez nessa relação entre o privado e o público, estabelecendo regras próprias de conduta e limites legais. Mas a aceitação do lobby não conduz a nenhuma transparência, apenas institui a forma específica de uma relação monetária com a própria democracia — onde o «power of the people to the people» é, na verdade, o «power of the money to the money». Em certa medida, o lobby institucionaliza e legaliza a própria corrupção, fazendo-a aparecer como o motor da própria democracia. E não é preciso percorrer os «corredores do poder» para perceber que tal coisa como uma separação do poder político e do poder económico é uma quimera que só a moralidade burguesa no seu idealismo transcendental pode aceitar como possível. Na Europa, esse grande reino da moralidade, a institucionalização clara de um lobby permanece algo difícil de aceitar, embora a estrutura da Comissão Europeia assuma já esse formato como «business as usual» — a expressão, aliás, não poderia ser melhor aplicada.

 

2.

As virtudes do lobby para as democracias ocidentais serão certamente objecto de um debate que alimentará as certezas e as dúvidas do «comentariado». Mas há um tema sobre o qual já poucas dúvidas restam: as consequências devastadoras da extracção mineira do lítio — tanto para as populações locais, como para os ecossistemas naturais. Não vale a pena explicar aqui — já muitos o fizeram — os impactos ambientais: contaminação dos recursos hídricos, poluição sonora, destruição de culturas e degradação ambiental generalizada. No caso do Barroso, onde o processo avança, tudo isso é mais grave porque estamos dentro de um perímetro considerado «património agrícola mundial», designação atribuída pela FAO. A extracção do lítio, mais ou menos controlada e regulada, não traz nenhum efeito positivo ou «mais-valia» para as comunidades afectadas por essa exploração, essas são consideradas, aliás, dispensáveis em nome do — e cito a APA — do «interesse estratégico do lítio para o cumprimento das metas da neutralidade carbónica e transição energética». Que transição verde é essa para quem as populações são apenas números na estatística dos Estados, podemos perguntar? Enquanto a «mais-valia» essa, é sempre para as empresas que tem a cargo a exploração.

Não há nada de «verde», de «limpo», de «ecológico», na extracção do lítio. A chamada «economia verde» tem servido para muitas coisas, mas muito poucas tem que ver com a crise ambiental em que vivemos — e que não pode, e não deve, ser reduzida à questão específica das alterações climáticas, mas a todo um processo de destruição brutal e violento da natureza na era do Capitaloceno — mais do que do Antropoceno — e que tem vindo a significar uma redução exaustiva dos ecossistemas com a extinção acelerada de múltiplas espécies vegetais e animais: como se de um movimento de exaustão da própria Terra se tratasse. Mas até nisso o Barroso é paradigmático: aquilo que poderia ser o território de uma experiência política de sustentabilidade ambiental capaz de articular agricultura, pecuária, comunidades locais, paisagem e outros modelos de produção e cooperação, corre o risco real de se tornar numa terra estéril e devastada, despovoada e esquecida, mas tudo em nome do princípio sagrado e da promessa verde da «neutralidade carbónica».

Ora, é preciso voltar a dizê-lo, o princípio da transição energética não é mais que a fórmula mágica que a Europa encontrou para garantir a sua autonomia energética e fugir da dependência do petróleo árabe e do gás russo, a fórmula que permite assegurar o funcionamento e o crescimento da sua indústria —nomeadamente automóvel — e das suas cadeias logísticas de produção e circulação num mercado global em reconfiguração acelerada, a fórmula que permite à Europa salvaguardar o seu poder político sobre a economia mundial no seu todo. Se o princípio da «economia verde» fosse o de responder à actual crise ambiental — como escreve Godofredo Pereira em O elixir da eterna juventude — haveria muitas outras medidas que poderiam ser, desde já, tomadas e levadas a cabo. Mas trata-se de iniciativas que colocam em causa, de uma maneira ou de outra, os princípios constitutivos da economia capitalista. É o Capital aquilo que a economia verde procura salvar, não o ambiente, não a vida humana, animal e vegetal, não a própria Terra. É a sua voragem, é a sua condição de desterritorialização infinita, que se exprime de forma lapidar no modo como toda uma ideia de PIB — produto interno bruto — continua a definir e a mobilizar políticas económicas que dizem mais respeito à felicidade dos Estados do que das suas populações.

Ora, nada disso é colocado em causa pela economia verde. Godofredo Pereira relembra apropriadamente uma velha máxima: «É preciso que tudo mude para que tudo fique como está». Mas esta frase — conhecida sobretudo por representar o espírito sagaz e prático do herdeiro do Príncipe de Salina na Sicília de Il Gattopardo, perante a revolução burguesa italiana — é, na verdade, o princípio do próprio Capital. E é preciso citar a frase de Marx no Manifesto que dá ainda título ao fabuloso livro de Marshall Berman: «All that is solid melts into the air» e que condensa todo o princípio constitutivo da burguesia e do capitalismo: a necessidade de renovação incessante dos instrumentos de produção, a abertura e a expansão permanente de novos mercados, o processo intensificado de exploração e apropriação de todas as coisas do mundo de forma a convertê-las em mercadorias, o processo de desagregação e recomposição de todas as formas e relações sociais.

Não é por acaso que «revolução» seja um termo especificamente burguês. Ele exprime a ordem técnica e política do Capital: a revolução — que significa dar uma volta completa — é a imagem paradoxal de toda uma ordem que assenta na capacidade de um movimento puro permanente e sem fim, mas, ao mesmo tempo, estável e universal. É esse o termo, precisamente, que Copérnico usa em 1543 no De revolutionibus orbium coelestium para descrever o movimento dos planetas em torno do Sol. Neste sentido, a revolução é o dispositivo que permite a resolução política de um paradoxo: mobilizar o avanço do movimento desterritorializante do Capital, mas assegurando simultaneamente um controlo absoluto sobre este, assegurando que a burguesia mantém o seu domínio político, isto é, que tudo possa permanecer como está, ainda que tudo esteja em movimento, ainda que tudo mude. Progresso e Revolução: o movimento linear infinito sans rêve et sans merci do Capital e a sua estrutura cíclica de recomposição e crise. É que o Capital funciona por crise, precisa da crise, precisa da revolução. Precisa da revolução para que tudo possa ficar como está.

 

3.

Podemos dizer que chegamos ao momento histórico de desenvolvimento do capitalismo em que é o próprio planeta que corre o risco de se dissolver no ar. Todos os que colocaram no seu horizonte político a luta pelo clima, não podem senão pôr em causa todo este princípio revolucionário do Capital, o princípio substancial da sua economia de guerra: da guerra que o Capital declarou contra o mundo. Ora, talvez tenha sido Walter Benjamin, entre todos, aquele que melhor intuiu que uma verdadeira concepção de revolução só poderia supor um gesto de interrupção do movimento da história, do movimento do Capital. Como escreve numa pequena nota paralela às suas teses «Sobre o Conceito da História»:

«Marx diz que as revoluções são a locomotiva da história universal. Mas talvez as coisas se passem de maneira diferente. Talvez as revoluções sejam o gesto de accionar o travão de emergência por parte do género humano que viaja nesse comboio»

 

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).

 

Imagem

Silvy Crespo, The Land of Elephants

 

Ficha técnica

«Lobby & Lithium» • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 09.11.2023

Edição #40 • Outono 2023