O elixir da eterna juventude • Godofredo Enes Pereira





No dia 31 de Maio, a APA – Agência Portuguesa do Ambiente emitiu uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) favorável condicionada ao projecto da Mina do Barroso, de 593 hectares, pela Savannah Lithium, Lda. Tratando-se do principal projecto para a mineração de lítio em Portugal, são urgentes algumas observações.

A justificação ‘ecológica’ da mineração assenta na ideia de que o lítio é importante para a transição energética na medida em que propõe substituir a dependência fóssil no sector dos transportes pela electromobilidade. Contudo, é sabido que a aceleração global na procura de lítio resulta principalmente da expansão do mercado do carro eléctrico (EV) individual (em 2022, 80% do lítio extraído mundialmente foi usado em baterias, onde mais de 60% corresponde a EVs).

Diversos estudos indicam que ao longo do seu ciclo de vida, um EV individual é menos poluente que um carro a combustão interna. Contudo, estes cálculos dependem do modo como é produzida a electricidade usada para carregar as suas baterias – se tem origem renovável, ou em gás ou carvão. Enquanto não se descarbonizar a produção de electricidade, as reduções a nível de emissões de um EV serão mínimas. Pior ainda, falar em reduzir emissões faz pouco sentido quando ao mesmo tempo se promove uma indústria assente no aumento de vendas de carros individuais: pois para cada EV é necessária a extracção de lítio, mas também de cobre, cobalto, grafite, aço, alumínio, plásticos, borrachas e muitas outras matérias-primas!

Parece-me óbvio que se o caso fosse de justiça climática, a UE e seus governos estariam a tentar identificar qual o mínimo possível de extracção necessário para a transição energética – visto que não há nada de sustentável na destruição de ecossistemas pela mineração. Mas não é esse o caso. A corrida ao lítio é exclusivamente geopolítica, uma luta pelo controlo de uma matéria-prima com elevado valor de mercado.

Relativamente à importância do investimento, não deixa de ser curioso que em Portugal estejam a investir apenas companhias juniores, tais como a Savannah Resources, Lusorecursos, Felmica ou Aldeia e Irmão, todas estas com experiência mínima em mineração. Nenhuma das ‘majors’ como Gangfeng, Albemarle ou Rio Tinto se dignou a investir no lítio de Portugal.

Noto também que frequentemente se diz que Portugal tem enormes ‘reservas’ de lítio. Ora aqui há uma confusão, que me parece propositada, entre ‘reservas’ e ‘recursos’. Por ‘recursos’ entenda-se o facto geológico da presença de lítio no subsolo. Mas não é lícito que tenha assim tantas ‘reservas’ – o nome que se dá à quantidade desses recursos que será de facto economicamente viável explorar, e cujo valor se vai ajustando à medida que avançam os processos de prospecção.

Além disso, os principais fabricantes de baterias, como a BYD e CATL, têm investido no desenvolvimento de baterias de sódio. A péssima taxa de reciclagem das baterias de lítio (actualmente uma média de 5% apenas), os seus custos de produção e reconhecidos impactos socioambientais são as principais razões para procurar alternativas.

Quanto aos impactos compensarem a longo-prazo, é preciso notar a pressão que têm sofrido as populações para que vendam as suas terras, gerando conflitos internos difíceis de sarar. Desde o momento em que se anuncia a prospecção, a possibilidade de captar investimento para outros futuros fica severamente afectada: valorização dos recursos existentes? Apoio à produção agrícola local? Apesar de ter sido declarada Património Agrícola Mundial pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a região do Barroso enfrenta não um – mas dezenas de projectos de mineração! Pensemos: depois da mineração, o que fica para trás é um território qualificado social e ecologicamente – ou desqualificado? Com população capaz de atrair investimento sustentável – ou dependente de novos empregos industriais?

E ao começar a operação da mina, então aí falamos de explosões diárias por vários anos que terão consequências graves sobre a saúde mental das pessoas; impactos sobre os solos e sobre a biodiversidade devido à necessária decapagem dos solos, terraplanagem e abertura de cortas para a mineração a céu aberto; apropriação de centenas de hectares de terrenos baldios desconsiderando o sustento económico que permitem às populações; destruição de ecossistemas vegetais e aquáticos; retenção de enormes quantidades de água num país em seca; elevados riscos para os rios e aquíferos, entre outros. Por mais medidas de monitorização que se proponham, garantir dezenas de anos de operações sem fugas, infiltrações, acidentes ou imprevistos é uma raridade no mundo da mineração.

Notemos também que os impactos ambientais de uma mina não se fazem sentir apenas ao nível local ou nacional, pois as emissões de CO2 resultantes da extracção e de toda a cadeia logística de produção de baterias não ficam no local: elas vão para a atmosfera, adicionando-se às demais emissões de CO2 globais, de uma forma que nos afecta a todos, assim como às gerações futuras.

Em vez do lítio, o Governo deveria dar prioridade à reabilitação do parque habitacional, por forma a menorizar os consumos e a situação de tantas famílias em pobreza energética – incluindo apoios ao autoconsumo eléctrico; em vez de apostar em baterias para transportes individuais, um plano sistemático de transportes colectivos; em vez de constantes movimentos pendulares, um planeamento urbano adequado, complementado pela redução da semana de trabalho; em vez de deflorestação, monocultura e destruição dos solos, investimento na regeneração de ecossistemas, silvicultura e permacultura; em vez de mineração de novos metais, desenvolvimento de tecnologias para minerar aterros; em vez da actual dependência do agronegócio, apoio à transição para dietas à base de plantas. Há muitas mais medidas a considerar. Mas a mineração descontrolada não é uma delas.

Sem enfrentar as causas que levam à actual dependência do carro individual, e sem transformar uma indústria assente no aumento da produção de veículos individuais, não é possível justificar, ecológica ou eticamente, a destruição de ecossistemas, de territórios e das vidas das pessoas. Infelizmente, fica claro que a UE vê o lítio como um elixir da eterna juventude. Como dizia Sérgio Godinho, permitindo que tudo mude para que tudo fique igual.

 

 

Godofredo Enes Pereira

Godofredo Enes Pereira é arquitecto e investigador. É director do MA Environmental Architecture no Royal College of Art, em Londres.

 

Nota da edição

Artigo publicado no Jornal Público em Julho de 2023 e incluído no Punkto no contexto do caderno especial em construção sobre lutas ambientais.


Imagem

Silvy Crespo, The Land of Elephants

 

Ficha técnica

O elixir da eterna juventude • Godofredo Enes Pereira

Data de publicação • 07.11.2023

Edição #40 • Outono 2024